(sobre as
estátuas derrubadas e vandalizadas)
Quando
era miúdo, tive um vizinho com hábitos curiosos. Era, como eu, um gaiato de
aldeia, um pouco mais novo, mas com modos que o afastavam das descidas à minas
de água (onde íamos apanhar morcegos), das passeatas pelos abrigos abandonados
das tapadas, das conversas debaixo da figueira gigante e de outras tropelias a
que mesmo os mais controlados (como eu) não perdiam o franco gosto a liberdade.
O Calixto (nome que agora invento para esconder
o seu) raramente saía da nossa rua. Tinha modos encolhidos. Falava pouco,
embora brincasse connosco, dentro dos seus limites espaciais. Era, todavia, um
patusco. Quando algo lhe corria mal, mesmo que fosse coisa de somenos, não se
atirava ao causador da frustração. Cerrava os dentes, tirava o boné da cabeça e
atirava-o ao chão, pulando-lhe em cima, com a maior veemência, como se a
desgraçada boina fosse a causadora dos seus males. Havia também dias em que pontapeava
as paredes e as portas, mas esses eram mais raros...
Outro dos seus hábitos era o choro selectivo e cronometrado. Mesmo que ninguém lhe batesse, se alguém o contrariava não deixava o crédito por mãos alheias. Calava-se ou resmungava baixo. Não dava mostras de zangamento, mas, quando a mãe chegava do trabalho, afastava-se de nós e, sentindo-se já distante e em segurança, desatava num berreiro de sirene, acusando até os inocentes das mais graves sevícias. Escusado será dizer que a progenitora o consolava e acreditava em tudo quanto o Calixto dizia, berrando como cabrito com a faca ao pescoço. Minutos depois, havia raia certa, com a mãe do catraio a pedir despique às nossas mães, acusando-as de não darem educação aos seus filhos... Era o bom e o bonito! Imaginem...
Outro dos seus hábitos era o choro selectivo e cronometrado. Mesmo que ninguém lhe batesse, se alguém o contrariava não deixava o crédito por mãos alheias. Calava-se ou resmungava baixo. Não dava mostras de zangamento, mas, quando a mãe chegava do trabalho, afastava-se de nós e, sentindo-se já distante e em segurança, desatava num berreiro de sirene, acusando até os inocentes das mais graves sevícias. Escusado será dizer que a progenitora o consolava e acreditava em tudo quanto o Calixto dizia, berrando como cabrito com a faca ao pescoço. Minutos depois, havia raia certa, com a mãe do catraio a pedir despique às nossas mães, acusando-as de não darem educação aos seus filhos... Era o bom e o bonito! Imaginem...
Porque recordo agora, passados quase quarenta
anos, o comportamento deste estranho rapaz, hoje pai de filhos e gordo marido?
Ora... bem sabeis o que pôs a minha memória a funcionar... Sois bons
entendedores... Calixtos há muitos. Só que agora derrubam estátuas (quem nos
dera que rasgassem apenas as suas fotos...) e berram - com razão ou sem ela -
perante certas madrastas, bem mais perigosas do que a crédula mãe do meu
vizinho.
*
Certo
dia, indo Iñigo López a caminho do santuário de Nossa Senhora de Monserrat,
encontrou-se com um mouro. Agradou-lhe o companheiro de viagem e foram
conversando os dois, em amena cavaqueira. Aconteceu, a dado passo, falarem
sobre Nossa Senhora. O muçulmano, lembrando decerto passagens do
"Alcorão", afirmou a sua certeza de que Maria havia concebido Jesus
sem intervenção humana; manifestou no entanto dúvidas quanto à possibilidade
natural de essa virgindade se manter depois do parto. Por mais razões que
advogasse o biscainho, não havia maneira de convencer o seu interlocutor da
verdade em que piamente acreditava.
Separados
os viajantes, Inácio ficou a matutar no assunto. Roía-lhe a consciência,
pensando que talvez não tivesse defendido com o ardor devido o bom nome da
Virgem. Passou-lhe pela cabeça procurar o homem com quem discutira e dar-lhe
umas punhaladas. A consciência não o deixava no entanto quieto. Tentava
discernir o melhor caminho e nada lhe ocorria. Sabendo para onde tinha ido o
mouro, não conseguia ainda assim decidir-se a vingar o bom nome da mãe de
Cristo. O santo de Loyola tomou então uma decisão. Assim a conta na sua
"Autobiografia", usando a terceira pessoa:
"E
assim depois de cansado de examinar o que seria bom fazer, não encontrando
coisa certa a que se determinasse, resolveu deixar ir a mula com a rédea solta
até ao lugar onde se dividiam os caminhos. E que se a mula fosse pelo caminho
da vila, ele buscaria o mouro e lhe daria punhaladas; e se não fosse em
direcção à vila, mas pelo caminho real, não lhe faria nada. E fazendo aquilo
que pensou, quis Nosso Senhor que, ainda que a vila estava a poucos mais de
trinta ou quarenta passos, e o caminho que levava a ela era muito largo e muito
plano, a mula tomasse o caminho real, e deixasse o da vila."
Louvado
seja Deus por dar bom tino às bestas de carga, quando ele parece faltar aos
humanos! Ninguém se livra de, em certos momentos de insanidade ou menor calma,
ter vontade de "untar as molas" a quem não concorda consigo... ou
defende o indefensável. Mas o caminho tem de ser outro, a bem da concórdia...
Quem nos dera que as hordas "vingadoras" de ofensas verdadeiras,
inventadas ou supostas tivessem a capacidade de discernir a mais justa forma de
descarregarem a sua ira e, se necessário, confiassem mais nas criaturas que
espelham o Criador do que nas vozes que envenenam a mente e as decisões. Se
assim fosse, decerto poderíamos dormir em paz e mais descansados...
*
Nunca
como agora, em tempos de ignorância e de arrogância, fez tanta falta a
humildade. Só através dela temos a certeza de que sabemos muito pouco ou mesmo
nada. Só ela nos garante a capacidade de ver que todos cometemos erros ao longo
da vida.
Perante
este vendaval "purificador" que deseja derrubar estátuas, obras de
arte, filmes, livros, mas sobretudo pessoas, porque em determinado momento do
seu passado se revelaram menos "puros", cometeram erros ou foram
apenas homens do seu tempo, tenho-me lembrado muito da narrativa do encontro de
Cristo com a mulher adúltera, que tantos queriam apedrejar. Não
desculpabilizando os seus actos menos correctos, mas olhando o interior de cada
um dos membros da multidão em fúria, autorizou: "Quem não tiver pecados,
atire a primeira pedra."
A mesma
pergunta gostaria de fazer a quantos, sob a capa do anonimato, têm andado a
subverter causas justas (ou menos justas), pensando-se perfeitos e, assentes
nessa perfeição, promovendo a discórdia e dando armas àqueles que, do
"outro lado", não são melhores do que eles.
Há
figuras paradoxais que mereceram homenagem pública? Pois há. Ainda bem. Mal vai
ao ser humano quando não se defronta com os seus paradoxos, com o paradoxo da
existência, lutando contra os seus demónios e tornando-se cada dia um pouco
melhor, mesmo que de vez em quando dê grandes quedas e vá com a face à lama (ou
tenha mesmo de regressar ao início do percurso). Seres "monolíticos",
"sem" paradoxos - quase sempre muito louvados pela sua
"coerência" -, são em geral fanáticos ou sectários, achando-se
"modelos", quando não passam de moldes que desejam ver-se
reproduzidos no outro, retirando-lhes qualquer ponta de livre arbítrio. Nunca
hesitam, nunca repensam, nunca se arrependem, nunca têm remorsos, nunca emendam
nada, nunca voltam atrás. A humanidade humilde é, todavia, outra coisa. Um
caminho ao contrário disto tudo. E esse caminho faz-se a andar, como escreveu
Antonio Machado.
"Que
não tiver pecados, atire a primeira pedra". Derrube o que quiser e como
quiser. Mas não esqueça que, antes disso tudo, se derrubou a si próprio.
(in "O Sesimbrense", Julho de 2020)