UM BONÉ, UMA MULA E UMA PEDRA
(sobre as estátuas derrubadas e vandalizadas)


Quando era miúdo, tive um vizinho com hábitos curiosos. Era, como eu, um gaiato de aldeia, um pouco mais novo, mas com modos que o afastavam das descidas à minas de água (onde íamos apanhar morcegos), das passeatas pelos abrigos abandonados das tapadas, das conversas debaixo da figueira gigante e de outras tropelias a que mesmo os mais controlados (como eu) não perdiam o franco gosto a liberdade.
O Calixto (nome que agora invento para esconder o seu) raramente saía da nossa rua. Tinha modos encolhidos. Falava pouco, embora brincasse connosco, dentro dos seus limites espaciais. Era, todavia, um patusco. Quando algo lhe corria mal, mesmo que fosse coisa de somenos, não se atirava ao causador da frustração. Cerrava os dentes, tirava o boné da cabeça e atirava-o ao chão, pulando-lhe em cima, com a maior veemência, como se a desgraçada boina fosse a causadora dos seus males. Havia também dias em que pontapeava as paredes e as portas, mas esses eram mais raros...
Outro dos seus hábitos era o choro selectivo e cronometrado. Mesmo que ninguém lhe batesse, se alguém o contrariava não deixava o crédito por mãos alheias. Calava-se ou resmungava baixo. Não dava mostras de zangamento, mas, quando a mãe chegava do trabalho, afastava-se de nós e, sentindo-se já distante e em segurança, desatava num berreiro de sirene, acusando até os inocentes das mais graves sevícias. Escusado será dizer que a progenitora o consolava e acreditava em tudo quanto o Calixto dizia, berrando como cabrito com a faca ao pescoço. Minutos depois, havia raia certa, com a mãe do catraio a pedir despique às nossas mães, acusando-as de não darem educação aos seus filhos... Era o bom e o bonito! Imaginem...
Porque recordo agora, passados quase quarenta anos, o comportamento deste estranho rapaz, hoje pai de filhos e gordo marido? Ora... bem sabeis o que pôs a minha memória a funcionar... Sois bons entendedores... Calixtos há muitos. Só que agora derrubam estátuas (quem nos dera que rasgassem apenas as suas fotos...) e berram - com razão ou sem ela - perante certas madrastas, bem mais perigosas do que a crédula mãe do meu vizinho.

*

Certo dia, indo Iñigo López a caminho do santuário de Nossa Senhora de Monserrat, encontrou-se com um mouro. Agradou-lhe o companheiro de viagem e foram conversando os dois, em amena cavaqueira. Aconteceu, a dado passo, falarem sobre Nossa Senhora. O muçulmano, lembrando decerto passagens do "Alcorão", afirmou a sua certeza de que Maria havia concebido Jesus sem intervenção humana; manifestou no entanto dúvidas quanto à possibilidade natural de essa virgindade se manter depois do parto. Por mais razões que advogasse o biscainho, não havia maneira de convencer o seu interlocutor da verdade em que piamente acreditava.
Separados os viajantes, Inácio ficou a matutar no assunto. Roía-lhe a consciência, pensando que talvez não tivesse defendido com o ardor devido o bom nome da Virgem. Passou-lhe pela cabeça procurar o homem com quem discutira e dar-lhe umas punhaladas. A consciência não o deixava no entanto quieto. Tentava discernir o melhor caminho e nada lhe ocorria. Sabendo para onde tinha ido o mouro, não conseguia ainda assim decidir-se a vingar o bom nome da mãe de Cristo. O santo de Loyola tomou então uma decisão. Assim a conta na sua "Autobiografia", usando a terceira pessoa:
"E assim depois de cansado de examinar o que seria bom fazer, não encontrando coisa certa a que se determinasse, resolveu deixar ir a mula com a rédea solta até ao lugar onde se dividiam os caminhos. E que se a mula fosse pelo caminho da vila, ele buscaria o mouro e lhe daria punhaladas; e se não fosse em direcção à vila, mas pelo caminho real, não lhe faria nada. E fazendo aquilo que pensou, quis Nosso Senhor que, ainda que a vila estava a poucos mais de trinta ou quarenta passos, e o caminho que levava a ela era muito largo e muito plano, a mula tomasse o caminho real, e deixasse o da vila."
Louvado seja Deus por dar bom tino às bestas de carga, quando ele parece faltar aos humanos! Ninguém se livra de, em certos momentos de insanidade ou menor calma, ter vontade de "untar as molas" a quem não concorda consigo... ou defende o indefensável. Mas o caminho tem de ser outro, a bem da concórdia... Quem nos dera que as hordas "vingadoras" de ofensas verdadeiras, inventadas ou supostas tivessem a capacidade de discernir a mais justa forma de descarregarem a sua ira e, se necessário, confiassem mais nas criaturas que espelham o Criador do que nas vozes que envenenam a mente e as decisões. Se assim fosse, decerto poderíamos dormir em paz e mais descansados...

*

Nunca como agora, em tempos de ignorância e de arrogância, fez tanta falta a humildade. Só através dela temos a certeza de que sabemos muito pouco ou mesmo nada. Só ela nos garante a capacidade de ver que todos cometemos erros ao longo da vida.
Perante este vendaval "purificador" que deseja derrubar estátuas, obras de arte, filmes, livros, mas sobretudo pessoas, porque em determinado momento do seu passado se revelaram menos "puros", cometeram erros ou foram apenas homens do seu tempo, tenho-me lembrado muito da narrativa do encontro de Cristo com a mulher adúltera, que tantos queriam apedrejar. Não desculpabilizando os seus actos menos correctos, mas olhando o interior de cada um dos membros da multidão em fúria, autorizou: "Quem não tiver pecados, atire a primeira pedra."
A mesma pergunta gostaria de fazer a quantos, sob a capa do anonimato, têm andado a subverter causas justas (ou menos justas), pensando-se perfeitos e, assentes nessa perfeição, promovendo a discórdia e dando armas àqueles que, do "outro lado", não são melhores do que eles.
Há figuras paradoxais que mereceram homenagem pública? Pois há. Ainda bem. Mal vai ao ser humano quando não se defronta com os seus paradoxos, com o paradoxo da existência, lutando contra os seus demónios e tornando-se cada dia um pouco melhor, mesmo que de vez em quando dê grandes quedas e vá com a face à lama (ou tenha mesmo de regressar ao início do percurso). Seres "monolíticos", "sem" paradoxos - quase sempre muito louvados pela sua "coerência" -, são em geral fanáticos ou sectários, achando-se "modelos", quando não passam de moldes que desejam ver-se reproduzidos no outro, retirando-lhes qualquer ponta de livre arbítrio. Nunca hesitam, nunca repensam, nunca se arrependem, nunca têm remorsos, nunca emendam nada, nunca voltam atrás. A humanidade humilde é, todavia, outra coisa. Um caminho ao contrário disto tudo. E esse caminho faz-se a andar, como escreveu Antonio Machado.
"Que não tiver pecados, atire a primeira pedra". Derrube o que quiser e como quiser. Mas não esqueça que, antes disso tudo, se derrubou a si próprio.

RUY VENTURA
(in "O Sesimbrense", Julho de 2020)
INFÂNCIA - UM BEM EM VIAS DE EXTINÇÃO


            A infância é um bem em vias de extinção. Não me refiro à natalidade diminuída que vai transformando Portugal num dos países mais envelhecidos do mundo. Falo na deliberada, continuada e perniciosa erosão e destruição do que há de mais verdadeiro nos primeiros anos de vida de um ser humano. Se “o melhor do mundo são as crianças”, como escreveu Pessoa, atribuindo-lhes como cerne a liberdade que deu título ao seu poema, então temos de estar muito atentos ao veneno doce, melífluo, suave, brilhante, colorido e atraente com que a infância está a ser corroída.
            Nem sempre pensei assim. Caí da minha ingenuidade quando um dia, numa das minhas aulas, uma criança me respondeu que queria ser médica porque assim poderia enriquecer mais depressa. Fiquei estupefacto! Comecei a dirigir então outra atenção ao que estava à minha volta. As escolas são excelentes observatórios… Abri os olhos e vi o que não queria ver.
            Desde aí, tenho descoberto imensas famílias que massacram os seus filhos, obrigando-os a alcançarem objectivos pré-estabelecidos e martelando-lhes a ideologia do sucesso a todo o custo desde tenra idade. Exercem inimagináveis pressões; excluem da vida familiar qualquer “pedagogia do fracasso”; atacam como feras todos quantos ponham em causa essa via que transforma os seres humanos em máquinas de arrasto. No reverso da medalha, venho encontrando pais e mães desinteressados do sucesso educativo dos seus filhos, mas focados em manter os miúdos em equipas juvenis e infantis de futebol para que, talvez um dia, venham a ser como aquele madeirense que "ganha milhões" e "até ajuda a família". E quem diz a participação em equipas de futebol, diz a entrada em programas de TV, diz a reiterada participação em castings, diz a valorização da actividade youtuber por mais degradante que seja, diz o apoio a outras práticas degradantes que me dispenso de arrolar… O sucesso dos filhos é visto como o seu sucesso – e ai de quem se meta no caminho com ideias contrárias ou pondo pedrinhas na engrenagem. Nem vos conto…
            A resposta da miúda também me obrigou a estar atento a outras manifestações de envenenamento, só na aparência pouco nefastas ou laterais. Passei a sentir náuseas, por exemplo, ao verificar a sexualização precoce a que se sujeitam tantos miúdos e, sobretudo, miúdas, com consequências que se adivinham. Deixei de achar graça às pessoas que mantêm os miúdos calados pondo-os à frente de um ecrã, seja ele de televisão, computador ou telemóvel. Não sabem ainda falar nem andar, mas já fixam os olhos no rectângulo, procuram canais e, sobretudo, passam o dedo pelo ecrã, na missa, no café, no restaurante, no jardim, em todo o lado, tornando-se insensíveis a qualquer estímulo externo, mas estimulando a baba dos familiares, enternecidos com tão precoces habilidades dos pimpolhos. Mesmo quando alguém ousa avisar essas famílias e esses progenitores do mal que estão a causar aos seus miúdos, olham para o portador da mensagem como se fosse um extraterrestre ou alguém vindo do passado numa máquina do tempo, uma espécie de fóssil sem qualquer valor. Encolhem os ombros, por vezes resmungam – e continuam pelo mesmo caminho rente ao abismo.
            Levei uma pancada ao ouvir a resposta daquela miúda simpática, mas envenenada (por quem?). Passei a topar e a entender de outro modo as doces trapaças com que as nossas crianças são envenenadas todos os dias, a toda a hora, por muita e muita gente. A infância é, por isso, um bem em vias de extinção. O que se passa não é inevitável. É todavia calculado, sub-repticiamente inoculado, como quase tudo o que de venenoso nos bate à porta neste tempo de chumbo onde nos foi dado viver. Somos seduzidos como se andássemos permanentemente por corredores de hipermercado. A promoção constante e avassaladora de contra-valores como o poder, a vaidade, o orgulho, a riqueza, o sucesso, o consumo, o individualismo, a violência ou o impudor vai produzindo um autismo fabricado com consequências perigosíssimas para a dignidade humana, erodindo ou quebrando sentimentos como a empatia, a compaixão, o diálogo, o sentido do dever ou o altruísmo. Tudo isto está a criar catástrofes pessoais e sociais inimagináveis, mas discretas, violências nunca vistas, mas "simpáticas", comportamentos alienados, mas manipuláveis, frustrações assustadoras, mas boas para usar em proveito alheio.
            O que se vai vendo pelas redes sociais é eloquente do estado mental a que chegámos: “Ninguém sabe que coisa quer. / Ninguém conhece que alma tem. / Nem o que é mal nem o que é bem” (Pessoa). Um dos exemplos é o que se está a passar numa boa parte das nossas escolas e das nossas famílias. A promoção da igualdade de oportunidades vai-se impondo como miragem, pois não é compatível com uma estratégia baseada no controlo tecnológico de professores, pais e crianças e com a exclusão do conhecimento, do pensamento e da imaginação da vida dos estabelecimentos de ensino. Há quem aplauda, como é costume e expectável. Há quem achincalhe os que pensam pela sua cabeça ou os mais fracos. Há quem use tudo isto para trepar… Quem não se verga ou não pode ter os meios que os outros têm, fica de fora; é posto à margem, como traste sem préstimo. O plano foi montado há muito, sabe o demo onde e por quem. Aproveitou apenas, agora, a embalagem covidiana como uma “janela de oportunidades”, acelerando algo que há muito estava em marcha.
            O envenenamento começa na mais tenra idade, praticado por aqueles que deveriam educar as nossas crianças. A trapaça é diversa e atinge todos. No fundo, quem provoca directamente tal erosão nas crianças nem sequer é culpado, pois não passa também de uma incauta vítima, de uma espécie de títere em mãos desconhecidas. Não é preciso sermos muito inteligentes para descobrirmos quem ganha com isto. São em geral pessoas para quem não há valores sociais, morais ou éticos estáveis além do dinheiro, do poder, do sucesso e do prazer. Quem promove esta "doutrina" deseja dominar e inchar como peru recheado com notas de banco. No fundo, julga-se membro de uma "espécie superior", com direito a espezinhar o seu semelhante. Rostos sem face visível, vêem o "outro" apenas como um "isso", como uma ferramenta, um degrau na sua escadaria egoísta - seja o "outro" uma criança, um adolescente, um adulto ou um velho. Se serve, manipula-se com as técnicas mais ardilosas. Se não serve, lixo! São eles quem ganha com esta extinção da infância e do bom que ela traz ao equilíbrio vital, enquanto semente de liberdade, de curiosidade e de imaginação.
            Há dias, o Papa Francisco lembrou-nos de que nunca se sai igual de uma crise como aquela que estamos a viver e que é necessária a participação de toda a família humana para que possamos sair mais unidos desta tempestade longa e perigosa. Podemos sair dela “melhores ou piores”, mas não sairemos “iguais”, afirmou. De uma vez por todas, temos de ter “a coragem de mudar”. Mas só lá chegaremos, se recusarmos com veemência os venenos mais sedutores e tivermos a coragem de devolver a infância às crianças, olhando o mundo como elas.

RUY VENTURA

(investigador e escritor)

Publicado na edição on-line do jornal "Público" (3/6/2020)
COM UMA FISGA NA MÃO

Como eterno buscador da esperança contra toda a esperança - aquela esperança que não nasce se a vileza não for morta -, tenho recordado bastante nos últimos tempos a figura de um puto chamado David. Ninguém dava grande coisa por ele. Parecia frágil, ao ponto de nem ser lembrado por Jessé, seu pai, quando o profeta Samuel lhe perguntou pelos filhos. Não obstante, foi ele o escolhido. Foi ele quem teve a capacidade de matar Golias, dispensando pesadas e incómodas armaduras e usando uma funda ou fisga como arma de propulsão de uma pedrada certeira. Tendo apenas coragem e poucos meios bélicos, soube derrotar a sua arrogância, a sua soberba e os insultos que dirigia a todos quantos se pusessem no seu caminho. Perante o cadáver do inimigo, nem espada teve para dar o golpe final. Usou por isso a melhor lâmina, a espada do adversário; e assim o decapitou, pondo os inimigos em debandada.
Não faltam filisteus neste mundo em que vivemos. Com maior ou menor descaramento, insultam a nossa inteligência, tentam espezinhar ou espezinham a dignidade alheia, apresentam como desejável o que é moral ou eticamente reprovável ou abjecto, arrotam soberba sobre o rosto de quem se atravesse no seu caminho e tente confrontá-los na sua violenta demanda do poder social, político ou financeiro. Alguns são bem visíveis, como Golias era há três mil anos. Outros escondem-se por entre multidões ululantes, não dando a cara, mas manobrando contra os seus semelhantes, usando tantas vezes a mais sórdidas seduções para enganarem os incautos. Quantas vezes sorrindo... bajulando... assumindo atitudes paternalistas...
Está na nossa mão encontrarmos em nós a fortaleza e, transformando-a em coragem, sermos capazes de afugentar estes exércitos, cortando o mal pela raiz. Não é tarefa fácil, tantos são os enganos de que nos vemos rodeados, tão grande o alheamento para que fomos atirados, tão ardilosas as estratégias de terrorismo psicológico a quem estamos a ser submetidos neste tempo de chumbo, tão sedutoras as tentações com que tentam ludibriar-nos. É preciso sermos simples como as pombas e astutos como serpentes, sobretudo perante aqueles que, ao nosso lado, fingem ser amigos ou cúmplices ou "bons samaritanos".




Se tomarmos a narrativa de David como história de proveito e exemplo, talvez aprendamos algo. Não são precisas grandes armas para travarmos o bom combate, nem sequer armaduras topo de gama. Basta apenas a simplicidade desarmante, a humildade e a confiança. Contra o medo, basta a coragem - esse coração que ao alto não tem medo de agir. Basta uma fisga, a pedra apropriada e alguma pontaria. Se um rapazola insignificante conseguiu, não havemos nós de conseguir? Ouço alguém que me diz: "Bem-aventurados os que usam funda porque hão-de tombar a arrogância dos gigantes..." Que ninguém se negue à batalha, nem que seja resistindo pacificamente às investidas e à arrogância do inimigo. Não podemos estar distraídos. A atenção e o discernimento são absolutamente necessários. Somos diariamente espicaçados para assumirmos esta luta que é, antes de mais, uma luta dentro de nós. Escutemos os apelos - e façamos o que é preciso fazer. Conscientes, prudentes, mas sem medo.

RUY VENTURA
(in "O Sesimbrense")



APESAR DE TUDO, A LIBERDADE

Ruy Ventura

         Sinto a doença à minha volta e à volta dos meus. E, nesta reclusão involuntária, lembro-me de Trujillo e de suas altas torres. Não de todas, mas de uma que, na sua delgada altivez, se assumiu como mirante.
         A terra de Pizarro sempre me pareceu estranha. À sua volta quase não distinguimos vegetação e, no meio da planura, alcandora-se a rocha; sobre ela, ruas e casas que nada arranca dali. A cidade é pontuada por estreitas construções de pedra, emergindo do meio de habitações mais baixas, servidas por ruas estreitas. Parecem árvores sem grande ramaria que procuram um sol que lhes permita o crescimento. Talvez cactos gigantes, como o do Convento da Arrábida, hoje com vários metros de altura e transformado em madeira dura. Vemos campanários, torres evidenciando soberbas senhoriais, locais de vigilância militar e, no centro imaginário de tudo, meio coberto por heras que não param de subir, o “mirante das Jerónimas”. Diz-me um guia que foi torre defensiva, sobrevivendo a um derruído palácio que depois foi eremitério. Não tenho dados para confirmar ou contrariar. Pela sua configuração, permite o resguardo e ao mesmo tempo a longa contemplação da distância, cuja leitura nos permite encontrar melhor o infinito. O edifício a que pertence é ainda hoje habitado por monjas da ordem religiosa que tem como patrono o santo tradutor da Bíblia para latim. Sem nunca lá ter entrado, tenho recordado muito o seu perfil no mundo e fora do mundo. Talvez por sentir, pela primeira vez (embora obrigado pelas circunstâncias) o que seriam o olhar e a vida daquelas mulheres que dos mirantes faziam observatório, oratório, salvaguarda e farol. Em Trujillo, como em muitas e muitas partes do mundo.
         Não sei se elas viam o mundo como ameaça, como via infectada pelas mais diversas enfermidades morais e corporais de que queriam fugir. Os seus textos dizem-me que sim, mas nem sempre há concordância entre a letra e o espírito. Já se estudaram muitas dessas comunidades e sabe-se hoje que muitas das mulheres que aí se acolhiam por vontade própria o faziam para fugir da violência que as despersonalizava e, de algum modo, matava. Eram lugares onde conseguiam uma liberdade acrescida, liberdade que para algumas delas se transformava numa escada por onde subiam à libertação maior que era ter saudade do infinito e, nele, de Deus. De modo distinto na forma, mas afinal semelhante nas intenções, foi essa purgação e essa fuga que moveram também tantos homens a tornarem-se eremitas – organizados ou não em comunidade – nas mais variadas parte do mundo. Como na Arrábida, onde Frei Agostinho da Cruz (1540 – 1619), franciscano-poeta convivente e vivente de um cristianismo depurado, à sombra de grandes vultos como São Francisco de Assis ou Erasmo de Roterdão, soube enaltecer uma vida pobre, afastada e mais livre: “Agora dei a volta por caminhos / De solitários bosques enramados, / De feras bravas, mansos passarinhos; // Que ainda que entre espinhos conversados, / Mais quero pé descalço entre espinhos, / Que dos homens humanos espinhados”.
         Nestes dias estranhos, em que fomos forçados a uma existência de espera e de suspensão, rodeada pelo perigo, vivemos quase todos em reclusão. Vivendo, apesar de tudo, num lugar privilegiado, senti este confinamento como uma prisão domiciliária. Nem as exigências da tutela do meu ministério – ficcionando uma escola que de facto está parada e não pode ser substituída por um “novo paradigma tecnológico” (que prejudica sobretudo os alunos pobres, sem recursos materiais e sociais) – me fizeram desligar desse incómodo sentimento de pena maior, apesar da ausência da pulseira electrónica. Fui tentando, com os meus, ocupar o tempo, distraindo-me. Cumpri obrigações. Correspondi a devoções. Descobri tarefas sempre adiadas e que, agora, viram finalmente a sua concretização chegar a bom porto. Um arbusto finalmente cortado. As ervas do quintal arrancadas, ao fim de meses de selvagem crescimento. O pó do escritório erradicado, depois de tanta preguiça. O artigo que pelos vistos avança, após tantos pedidos ouvidos mas não escutados. A leitura retomada. O filme redescoberto e, no reencontro, aquela peça musical nunca atendida… Sem largar o medo, lutei e luto contra o medo, sabendo que o temor não irá impedir a entrada do vírus, se ele tiver de entrar e fazer das suas. Nada disto era, todavia, capaz de pelo menos atenuar o toque das grades numa gaiola invisível.
         Até que resolvi redescobrir a varanda do primeiro andar que, não fossem as restrições da arquitectura do bairro, já teria desaparecido. Pela manhã, depois de uns minutos de conversa com o miúdo, resolvi deixar-me estar por ali. A ler. Coisa que nunca ali fizera, pela falta de resguardo que sentia retirar-me a privacidade para mim inerente ao acto de leitura. Quase sem gente pelas ruas, desta vez afoitei-me com o livro na mão. Senti-me como as monjas jerónimas do mosteiro de Trujillo, mesmo sem ter a sua virtude nem a sua torre nem o seu horizonte. Tudo se tornou mais leve, mesmo sem afastar da mente o chumbo que nos domina e condiciona. Virei-me para sul e, acompanhado pela passarada, sobretudo por uma família de corvos pela qual tenho particular afeição, redescobri no horizonte essa Serra que nos “move a contemplar mais fermosura”.
         Afinal, “não há melhor manjar que liberdade”, como diz o poeta-frade que nasceu há 480 anos. Mesmo que só possamos comer o que resta do açambarcamento diário nos supermercados, mesmo que nos vejamos obrigados ao recolhimento que talvez seja apenas uma forma de salvaguarda, mesmo que as perdas nos angustiem, só tendo o poliedro da liberdade no pensamento conseguiremos transformar a reclusão em clausura, encontrando novas formas de resistência e de elevação. Talvez consigamos, assim, ver no “hortus clausus”, no horto fechado da nossa casa e das nossas vidas (afinal povoado por muitas ínfimas alegrias a descobrir), um lugar propício onde o vazio e o abalo destes dias se transformem em detergente. Talvez assim sejamos obrigados a limpar de nós e desta civilização muita da sujidade que, há demasiado tempo, vai entupindo os nossos poros, impedindo a nossa mais subtil respiração. Talvez. Não sei. Não obstante, assim desejo. E nesse desejo creio ser acompanhado por muitos.


Editado no jornal "Público", edição on-line (21/3/2020):
https://www.publico.pt/2020/03/21/politica/opiniao/apesar-liberdade-1908677
ELOGIO 
DE UM SUBMARINO


O mundo está cheio de torrentes. Algumas de água limpa. Outras muito turvas, com lama e detritos. Há mesmo extensões que, de tão largas, não deixam ver as margens se nos colocarmos no meio do leito. O afastamento é demasiado largo, profundo. E quem assim se vê afastado não se conhece, torna-se hostil ao outro, pensa em combates, competições, rivalidades. "A minha margem é melhor do que a tua. Não posso consentir que passes para este lado. Não quero saber do que pensas, do que sentes, da tua visão do mundo..."
O mundo está cheio de torrentes. Existindo redes que nos põem em contacto, parecem apenas enredar-nos e estimular o nascimento e o crescimento das tribos. E as torrentes tornam-se lamaçais perigosos. Levam tudo pela frente. Afogam até os inocentes. Derrubam as suas moradas. São por isso muito importantes as pontes. E, com delas, os veículos que contra tempestades e enxurradas, conseguem pôr-nos em contacto, vencendo a indiferença, o desconhecimento e a hostilidade. Podem ser jangadas, barcos, submarinos até. Nunca serão demasiados os elogios que lhes possamos dirigir. Bem-aventurados aqueles que vencem as torrentes e põem em contacto as margens indiferentes ou desavindas.
António Fournier (1966 - 2019), nascido numa ilha, foi um desses instrumentos pontifícios que ainda nos fazem crer na humanidade, com esperança contra toda a esperança. Conheci-o, quase por acaso, numa rua da Baixa de Lisboa e logo me apercebi disso. Professor da Universidade de Turim, aproveitou essa condição de emigrante para se transformar num veículo de comunicação entre a cultura portuguesa e a cultura italiana, entre as suas literaturas. Quase não se dava pelo facto de, também ele, ser um escritor e investigador com imenso mérito. A sua preocupação era, sempre, a do transporte, pondo gente desconhecida em contacto, entrelaçando o que parecia inconciliável. Não quis ser ponte. Percebendo que uma ponte é por vezes muito vulnerável, quis ser submarino. Assim intitulou a revista de que era director, sabendo que o submarino é muito mais eficaz no transporte e na comunicação em tempos de conflito e de brutalidade como os nossos. Não um submarino de guerra, mas um submarino de paz que via nas palavras transformadas pela poesia um campo de entendimento e de resistência.
Lembrei-me de tudo isto quando soube da sua morte, em pleno Natal, no dia em que acabara de fazer 53 anos. Recordei a forma calorosa como sempre contactámos, o modo como me recebeu no aeroporto de Turim e me guiou, passava da meia-noite, pelas ruas belíssimas da cidade, as palavras com que me apresentou o território do "nosso" Pavese, a gentileza com que me irmanou com Albano Martins ou Maria João Reynaud, o modo como me introduziu naquele meio e nele sempre me acarinhou, as palavras com que acolheu os poemas que a urbe me ofereceu. Nesses três dias na capital de Piemonte muito mudou em mim. A ele o devo. Encontrámo-nos mais algumas vezes, em Lisboa. Sem sermos propriamente amigos, cultivávamos aquela espécie de amizade que não precisa de muitas palavras nem de grandes patuscadas para saber reconhecer-se como admiração mútua e atenta. Incitou-me a escrever sobre Herberto Helder um ensaio que ainda permanece inédito. A ele devo - e muitos deverão, como eu - a gentil atenção e fortes leituras dotadas de rara profundidade.
Não têm preço, neste mundo tribalizado, aqueles que ousam transportar e se tornam veículos culturais, sociais ou religiosos de construção do encontro e da concórdia. Bem-aventurados decerto são. António Fournier era um deles. Como submarino. Fica-nos como exemplo e semente.

Ruy Ventura