Maria Teresa Lobato


INSTRUMENTOS DE SOPRO
DE RUY VENTURA



Devo confessar que tive alguma dificuldade em sintetizar o que este livro me sugere em termos de análise. Essa análise recairia, primeiramente, na escrita do poeta, mas também na relação que as suas palavras estabeleceram comigo. Porque é disso mesmo que se trata: o poeta para mim e não eu para o poeta.

Ou será que sim? Posso questionar. Estabelecida a relação escritor-leitor, estabelece-se a relação com o mundo, com as coisas belas que nos trazem a paz e com as coisas mais sombrias, que nos trazem a inquietação.

Porque se escreve? Para quem? Como se escreve? Eu sou a imagem que vejo reflectida no mundo. Porque escreve um poeta? Para quem escreve o poeta? Será lícito dissecarmos os poemas que alguém escreveu? É para conhecermos o poeta ou para nos conhecermos a nós mesmos?



*



A obra poética de Ruy Ventura tem vindo a crescer e a revelar-se como da melhor poesia que se escreve na actualidade. E é tão difícil falar dela como das memórias e dos lugares a que ela nos obriga – e ainda bem – a visitar, tão vastas são as referências a que as palavras do poeta nos reportam.



*



Em “aparição” (pp. 17 a 20) encontramos a busca constante de um abrigo, um pedido de socorro que pode surgir ou do nevoeiro que se ergue de cada poema, ou dos lugares sem espaço que o poeta inventa.

Catábase” (p. 23) apresenta-nos a busca da verdade, um caminho penoso e sem fim. “Nada…”, diz-nos o poeta. As casas, figuras poéticas que nos poderiam trazer alguma tranquilidade, surgem como fantasmas, disformes e voláteis, não nos permitindo nem repouso nem pousio, antes mais um passo na busca da verdade eterna que é a essência da vida.

Mas nem tudo é escuridão na poesia de Ruy Ventura. Como no poema “nudez” (pp. 50-51), há dias em que o sol brilha e das mãos do autor parecem nascer tardes claras, iluminadas pelo fogo do sentir que dá vida a palavras mortas: “nem ouro, nem prata”, “não encontro negrume nessa face”. Assim, o clarão do lume descobre os sentidos escondidos no poema, entre as linhas, frutos dessa alma que se reconstrói das cinzas, que se ergue no “cume da manhã”.



*



A poesia de Ruy Ventura não é uma poesia fácil. E dói. Dói aqui no peito, aqui na memória dos nossos dias. Porque incomoda, porque mexe connosco e nos faz questionar a essência da vida, da nossa vida. Não há roseiras floridas nem passarinhos a chilrear. Ruy Ventura prefere ser curto, despido de delicadezas de salão, reafirmando uma mão segura, firme, certa dos caminhos que quer percorrer. Nada é fácil, tudo se transforma.

Poeta do enfeite? Da escuridão nasce a luz. Assim se concebe a literatura, assim se concebem essas palavras colocadas no sítio certo, no exacto momento em que da sombra nasce a luz.



*



A poesia de Ruy Ventura é marcada pelo compasso da enxada que lavra a terra. Um compasso binário, ritmado ao som da ondulação de uma seara seca pelo estio, mas fértil, pronta a oferecer-nos os versos em forma de espiga, o poema em forma de dádiva, mas não gratuita, sofrida.

O nome e o verbo, símbolos da essência e da “coisa”, predominam na escrita de Ruy Ventura. O nome despido. O verbo completo. Porque bastam enquanto significantes, sem precisarem de rodeios. Como a espiga, nua, presa à terra, que, só por si, dará lugar aos alicerces, às paredes, enfim, à casa onde mora esta poesia pura.

Poeta da terra, poeta da ceifa, Ruy Ventura despreza o recurso à adjectivação e concentra-se no essencial. Eis aqui este campo que precisa de ser lavrado.



[Lido em Azeitão a 22 de Abril de 2010.]

Sem comentários: