O SILÊNCIO COMO MEMÓRIA E CONHECIMENTO
Manuel G. Simões(Fanal, suplemento cultural de O Distrito de Portalegre, nº 15, de 27 de Julho de 2001: 3.)


Uma leitura do livro de Ruy Ventura (Prémio Revelação de poesia APE/IPLB 1997) passa inevitavelmente pelo título (“Arquitectura do Silêncio”), primeiro signo descodificador, e pelas duas epígrafes inseridas no exórdio dos dois capítulos: “Nós não somos. A casa é que nos habita”, de Fernando Guerreiro; e “Nada é, tudo coexiste”, de Bernardo Soares. E se “arquitectura” é a arte de edificar, o sintagma global concentra-se e projecta-se no segundo elemento do título, balizado como é pela contraposição exibida nas duas epígrafes. Isto pressupõe as relações do ser com as coisas (mundo) num processo de construção epistemológico que assiste ao fazer e desfazer de uma atmosfera / paisagem, colocando em primeiro lugar a casa, às vezes representada pela árvore em que os ramos funcionam como janelas de um espaço que se transforma na “memória do lugar” e em que os alicerces se ensaiam “dentro da linguagem”. A geometria da casa surge então quer como espaço interior (de silêncio), com efémeras ligações ou prolongamento com o espaço externo, quer como representação memorial de contornos esbatidos pelo tempo, pre(s)-sentidos do exterior. Em ambas as situações é a janela / vidraça (significantes com alto índice de frequência) o elemento que permite a intercomunicação de dois mundos, fronteira que “define a imagem entre as linhas e a textura das emoções” (p. 52), susceptível por isso de fornecer uma visão opaca (“uma vidraça / corpo volátil na insondável / textura do / abismo”, p. 55) ou ofuscada pela voragem do tempo que conduz à construção do silêncio: “a janela transforma o próprio espaço / acumula dentro de sua inquietação os instrumentos que vão transformando / a luz e a paisagem” (p. 51).
Na invenção verbal, a Natura passa de ambiente a “personagem” com que se confronta o sujeito poético na tentativa de sondar o enigma da viagem ou do fluir existencial, tornado obsessivo até pela gramática da intertextualidade, com a reutilização frequentíssima de segmentos textuais, dispostos embora noutra configuração prosódica. Mas ao mesmo tempo a voz poetante evidencia a sua função obsidente em torno do conhecimento, seguindo um processo gnoseológico só relativizado pela possibilidade de “erro” dos sentidos ou dos sentimentos.
Neste processo o sujeito desencadeia um mecanismo dialógico, interpelando, por exemplo, outra memória da casa (“recordarás aqui a máquina / de escrever”, p. 29; “vê como estremecem as flores”, p. 33; “não nos tirem daqui esta vidraça”, p. 53), embora tudo pareça apontar para um artifício retórico, isto é, de âmbito monologante. E o mesmo acontece quando o discurso invoca e evoca a memória como construção do silêncio em que o sujeito dual (“calemo-nos calemo-nos os dois”, pp. 77, 78 e 79) não obstante a iteração intratextual, tende a manifestar-se no sentido da opacidade: “somos / os dois apenas neblina / ou chuva nos limites do abismo”, p. 75).
O memorialismo que, ao fim e ao cabo, assoma à superfície do texto, indica como na construção está implícita uma reconstrução, ou seja, que a invenção é um lembrar de novo, um reflectir e um reflectir-se na memória; e que sob o véu problemático da invenção subjectiva se oculta sempre uma história real e objectiva (“memória do avô”, por exemplo, pp. 89-91) em relação à qual “as perguntas subsistem”: os rastos e os restos de antigas imagens.

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