NATAL INCÓMODO

         Em minha casa, o período natalício inaugura-se com uma ida ao campo, onde a família apanha musgos e ramos de variada vegetação para com eles montar e ornamentar o presépio. Se ainda é fácil encontrar a indispensável gilbardeira, com as suas bagas vermelhas nascidas de folhas duras e espinhosas, vai sendo cada vez mais difícil encher o balde com o tapete que há-de fingir um chão verde e fresco. Andamos todos a pagar os desmandos da ignorância e da ambição desmedida e a Natureza vai dando sinais muito preocupantes... Neste ano, quando chegou a altura de colocar a imagem do Menino no lugar que lhe pertence, houve uma saudável disputa entre as crianças. Quem teria a honra de colocar "O mais importante" no seu lugar? Comoveu-me a solução encontrada pelos miúdos: cada um pegou em seu braço e assim desceu ao centro a imagem mais pequena, mostrando que o ínfimo pode bem ser expressão do maior, daquele que mais importa.
         Terminada a “obra de arte” efémera, divulguei pelos amigos e conhecidos o resultado, não resistindo ao exibicionismo ingénuo de que todos vamos sendo mais ou menos vítimas incautas. Horas depois, ao abrir a minha caixa de correio, estavam lá depositadas as palavras de um (verdadeiro) amigo. Sem vocativo nem despedida, percebi que tinham sido escritas após a observação das fotografias do nosso presépio. Não seria curial trazê-las para o domínio público, mas interessa-me registar que elas me recordaram, picando-me, como se fossem um pampilho dos campinos ribatejanos, o que mais importa no Natal: o ínfimo que alcança a suprema importância.
         Época de alegrias, de felicidade - mas também de euforias fabricadas, manipuladas pelo consumo -, o Natal leva-nos, frequentemente, ao esquecimento daqueles que assim não sentem, travando diariamente uma terrível luta com a angústia, com o vazio ou com o negrume, mal conseguindo esboçar um sorriso perante as agruras da doença, do desemprego ou de uma dignidade perdida, tentando arranjar uma réstia de ânimo para se levantarem da cama sabendo-se alvo de injúrias e de incompreensões, querendo elevar o coração apesar de se verem sem tecto, sem alimentos dignos, sem uma companhia ao lado ou à distância, sem os seus entes queridos. Mesmo quando os lembramos nesta época de preparação para a festa do nascimento de Jesus Cristo, tantas vezes os olhamos como grãos de pó que é importante sacudir da lembrança, não vá ela ficar toldada (menos “alegre”) pelas suas nuvens incómodas. E, no entanto, foi sobretudo para estes nossos companheiros de existência que a encarnação do Divino Infante aconteceu e continua a acontecer, enquanto recordação rediviva e actuante. Bem sei que esse acontecimento milenar pouco ou nada interessa a uma sociedade onde o dinheiro é deus e rei, mas a verdade não tem outro conteúdo nem a festividade outro sentido, mesmo que o alheamento das luzes comerciais e financeiras nos tentem virar o olhar para lugares distintos e sentimentos menos nobres. Esquecer o sentido do Natal é esquecer tudo. Não há outro caminho. Ou somos incomodados por ele ou não vale a pena comemorá-lo.
         Nestes dias que nos conduzem à tão desejada jornada, teríamos certamente vontade de ser um pouco subversivos e, de uma vez por todas, substituirmos a correria pelas lojas por uma correria por muitos daqueles que precisam da nossa presença ou, pelo menos, da nossa palavra. De boas intenções está cheio o mundo inferior, pensarão... Muitos temos compromissos familiares ou sociais e facilmente, nestas semanas e naquela noite venturosa, esquecemos os que estão sós, sem ânimo ou com a sua dignidade erodida. Não é fácil irmos ter com eles ou trazê-los à nossa presença. Não é contudo difícil, no momento certo, marcarmos o nosso companheirismo com uma palavra oportuna ou, até, com um gesto ou com uma mensagem que vá além daquelas que mandamos por atacado a todos os nossos "amigos" que, tantas vezes, nem conhecidos são na verdadeira acepção do vocábulo. Se calhar será esse o momento mais alegre ou mais feliz da noite. O momento em que o Natal nos incomodou. Creio que sim. Afinal o Paráclito é aquele que nos espicaça e consola... (Espero, sinceramente, não ser como frei Tomás...)

RUY VENTURA


PROFANAÇÃO, APENAS PROFANAÇÃO
(OU TALVEZ O "MISTÉRIO DA INIQUIDADE")

Ruy Ventura


         Para entendermos com ponderação o que se tem passado no Panteão Nacional de Santa Engrácia, bem como noutros lugares altos do nosso país, onde a memória de Portugal deveria ser salvaguardada, temos de recordar um conceito que vai desaparecendo das nossas mentes, ainda que vá permanecendo nos dicionários: profanação. Para que seja possível tal exercício mental, temos de conceber que no nosso mundo há (ou deveria haver) espaços sagrados, objectos consagrados, ritos sacros que fazem com que o tempo não seja todo igual, com que haja locais distintos, com que os utensílios não tenham todos o mesmo fim quotidiano e descartável e haja alguns destinados a fins mais altos. Quem estabelece a distinção? A comunidade, seja ela de crentes, de militantes ou de compatriotas. O que vem sucedendo neste nosso tempo perigosamente instável e iníquo é sintoma da erosão desta separação entre o sagrado e o profano, para usar o velho título de uma grande antropóloga, em grande parte promovida pelos nossos semelhantes que têm no lucro o seu único objecto de veneração.
         Mesmo entre aqueles que deveriam exercer a salvaguarda dessa distinção (políticos, clérigos, artistas, líderes comunitários…), tornou-se corrente aceitar a profanação como algo normal, concebível e até aceitável. No fundo, quem assim age já não consegue sentir a diferença. Para quem assim pensa (se pensa), já não há sagrado nem profano. Tudo tem o mesmo valor - e esse valor reduz-se frequentemente à valia que lhe confere a utilidade e/ou ao rendimento que pode gerar. Para quem assim pensa (se pensa), qualquer espaço, qualquer objecto ou qualquer rito só vale a pena se gerar dinheiro (se "fomentar a economia", dizem) ou se produzir espectáculo com adesão massiva de gente que possa pagar ("fomentando a economia", não se cansam de repetir) ou possa reproduzir comportamentos desejáveis, sobretudo ao nível do consumo ou do conformismo político, social e cultural. A isso se chama, todavia, alheamento ou apoucamento da dignidade da pessoa. Mas quem se lembra de tal afirmar?
         Neste quadro, não devemos estranhar que a direcção de um lugar onde se guarda a memória dos maiores de um país ache normal que naquele monumento se dêem jantares bem pagos, onde os comensais se banquetearão alarvemente, sem qualquer espécie de respeito por tudo quanto os rodeia. Não devemos estranhar outros comportamentos semelhantes que, de maneira idêntica ou falsamente distinta, se vão e irão reproduzindo por aqui e por ali, perante o sorriso aparvalhado ou mefistofélico de alguns políticos, clérigos, empresários, académicos, artistas, curadores, programadores, animadores ou simples espectadores. "Ninguém sabe que coisa quer. / Ninguém conhece que alma tem, / Nem o que é mal nem o que é bem", escreveu Pessoa. Num mundo assim, coisa boa não deveremos esperar. E, mesmo que nos indignemos, devemos evitar o espanto, porque fenómenos como os jantares no Panteão são apenas pequenos sintomas de um mundo às avessas, onde vamos assistindo, tantas vezes perdidos, ao "mistério da iniquidade".
         Tenhamos todavia a coragem de ser novos beneditinos, resguardando e salvaguardando o que for possível salvar deste mundo sem norte. Valerá decerto a pena, ainda que tal nos traga o veneno alheio, nas diversas espécies que abundam por aí.


PS - Será bom alguém lembrar às distraídas sumidades da gerência do país que Portugal tem vários panteões: Santa Cruz de Coimbra, Batalha, Jerónimos (claustro e igreja) e S. Vicente de Fora. Não vá o demo lembrar-se de lá servir jantaradas um dia destes... e termos de assistir, envergonhados, à triste de cena de umas centenas de tipos manducando, quem sabe, enguias fritas ou sarrabulho ao lado dos túmulos de Fernando Pessoa, de Alexandre Herculano ou de outra figura grada da nossa História. Quando os gerentes da pátria têm como única bitola de valor o lucro e a utilidade, nunca se sabe...


Em defesa do património religioso 
– agir é preciso... E depressa!

Foi há um par de anos. Entrei na loja de uns missionários em Fátima, uma das maiores do centro da localidade. Falando com um familiar de uma peça de arte sacra antiga a precisar de conservação competente (hoje felizmente bem restaurada, com critérios éticos e científicos), fui prontamente interpelado pela empregada do estabelecimento. Solícita, sem grande noção das conveniências, interrompeu a conversa e atirou, de arrancada: “Se quiser, temos um senhor muito jeitoso que a põe como nova...”
Percebi que a senhora me confundira com um sacerdote. Fiquei estupefacto, respondi de forma evasiva, mas fiquei a pensar: “Quem resiste a estas abordagens se não tiver ética, educação, juízo, pudor ou um bispo com mão de ferro e sabedoria de um diplomata? Quem?”
Multiplicam-se pelo nosso país casos de raspagem e repinte de esculturas e retábulos das nossas paróquias, de vandalismo aplicado a telas, tábuas e pinturas murais centenárias. São peças importantes do património espiritual dos crentes e, também, elementos inalienáveis da nossa memória coletiva. São obras de arte e criações inspiradas e, como tal, merecem o mais escrupuloso respeito. Outra coisa não diz, aliás, o Direito Canónico. A situação a que chegámos é todavia muito grave, mesmo que vejamos alguns exemplos de boas práticas, pontuais e minoritários, que não escondem a “selva” que por aí vai, do Algarve ao Alto Minho, com exemplos recentes de perigoso retrocesso.
Enquanto tivermos como fiéis depositários do património religioso pessoas que, à parte a sua competência pastoral, revelam (como autarcas deslumbrados ou construtores civis siderados) uma ânsia incontrolável, querendo “deixar obra” construída, esculpida ou pintada a todo o custo, continuaremos a assistir atónitos à destruição do nosso património artístico e espiritual. Enquanto se manifestar um insaciável voluntarismo que olha para as obras de arte como objectos utilitários sem valor intrínseco e não como manifestações materiais, visíveis, de Deus connosco, continuaremos a testemunhar um vandalismo cujos agentes, ainda por cima, se apresentam com ares de esteticistas ou maquilhadoras de bairro pobre. Enquanto quem de direito não agir com rapidez, ciência e firmeza, parando os desmandos que violam as leis do País e o Código do Direito Canónico, ou deixando mesmo de colaborar com eles, continuaremos a multiplicar os lamentos por um património perdido, quiçá para sempre.
Não será tempo de todos nós – investigadores, conservadores-restauradores, museólogos, amantes da arte, sacerdotes com sabedoria, fiéis com ética e estética, simples amantes do património – fazermos algo além dos simples comentários no “feicebuque”? Se o não fizermos, talvez seja tarde. E não valerá a pena tecermos mais tarde um rol de lamentações.

Artigo publicado nos jornais "Diário do Alentejo" (Beja), "Alto Alentejo" (Portalegre) e "Raio de Luz" (Sesimbra).
DOS LEITORES:

CASÉ LONTRA MARQUES


"Sua poesia me movimenta de muitos modos [...] No caso específico do volume de agora ["Detergente"], há nele uma densidade suculenta - a leitura todo o tempo se depara com construções inquietas, formal e semanticamente. O confronto com a dor, com a catástrofe até. A força arrancada das entranhas da adversidade... [...] o seu “Detergente” como que me pegou pelo pescoço. E me agitou - eletrocutando a espinha. Que poesia a sua [...]!

[...] a poesia tem essa voltagem capaz não digo de amparar, mas de impulsionar. Inclusive impulsionar em direção de outras perturbações..."

(Comunicação particular, a 18/10/2017.)
DOS LEITORES:

MARTA LÓPEZ VILAR


"Detergente", del poeta portugués Ruy Ventura, es uno de los mejores libros de poesía que he leído este año. Escritura que es una placa tectónica que remueve el silencio, la parte germinal de lo que estamos hechos. Aquí os dejo unos breves fragmentos:
"JUAN:
Quien escribe encuentra el organismo: la inestabilidad de la materia -color y polvo, memoria y gangrena-, un grupo de células que el fuego no destruye, que la tierra no pudre, ni tan siquiera cuando la ceniza nos cubre y va blanqueando los tejidos. ¿Vivir es dudar? [...]"
"RAÚL:
Limpio los árboles de todos los brotes. Piso los gusanos que devoran las hojas, aunque la tinta y la sangre tengan el mismo color. La clorofila no necesita mis ojos. Y, sin embargo, ensucio los dedos, dejo crecer dentro de mí toda la vegetación que un día me matará".

(in Facebook, a 1/9/2017).


António Carlos Cortez

"Ruy Ventura: há uma luz ao fundo?"
Jornal de Letras, Artes e Ideias
n.º 1224, de 30 de Agosto a 12 de Setembro de 2017
pp. 16 e 17




UM HOMEM BOM

por Ruy Ventura
(in "Raio de Luz", de 27/7/2017)

         Ao longo dos últimos vinte anos, Sesimbra foi um município afortunado. Nem todos os concelhos se podem gabar de ter tido à frente dos seus destinos dois homens bons, como Amadeu Penim e Augusto Pólvora. Não me refiro, como é óbvio, à bondade destes cidadãos e homens políticos exemplares que me habituei a admirar, mesmo discordando dalgumas das suas opções políticas, estratégicas ou pessoais. Tendo embora notícia das suas qualidades éticas e morais, nestes anos que levo de munícipe e, agora, amigo da digna Piscosa, não me sinto autorizado a tecer ditirambos a essa qualidade que, segundo rezam os testemunhos mais fidedignos, sempre lhes assistiu enquanto foram edis da capital da Arrábida e do seu território. Também não me refiro, como é óbvio, à bitola económica, fundiária ou profissional que, na Idade Média, seleccionava aqueles que podiam votar e ser votados nos órgãos municipais. Felizmente vivemos noutros tempos, nos quais a democracia, ainda que muito imperfeita, nos garante outros critérios na escolha de quem nos governa e na dispensa daqueles que nos vão desgovernando.
         Recentemente retirado do número dos vivos, Augusto Pólvora era para mim – e ficará sendo – um homem bom do seu concelho e da sua região. Posso afirmar, sem rebuço, que nisso foi um bom sucessor de Amadeu Penim, garantindo a continuidade de uma política autárquica que, na minha modesta opinião distante, soube aliar proximidade e empatia com o necessário rigor na gestão da causa pública, sendo simultaneamente humilde e estratega, atenta e proactiva. Em qualquer das personalidades, não creio que o seu legado possa ser reivindicado seja por que força política for, seja por quem for, sob pena de desrespeito ao trabalho que deixaram como património e como semente. Homens da terra, pela terra trabalharam. Tudo o mais foram ferramentas e circunstâncias de somenos, necessárias, mas secundaríssimas.
         Quando me ponho a recordar as memórias que guardo e guardarei do arquitecto Augusto Pólvora, só consigo lembrar alguém que amava, com todas as suas forças, a terra onde nascera. Filho de gente simples e resistente, daquela que o tempo longo foi ensinando a enfrentar a terra e, sobretudo, os abismos oceânicos, sentia-se nele um entusiasmo pelas coisas de Sesimbra que não era fácil encontrar noutros que o acompanhavam nas lides autárquicas. Segundo me contaram na sede do distrito, essa sua força conseguia impor-se nas reuniões decisivas, levando não só a água ao seu moinho, mas gerando sinergias que conseguiam dar lugar a uma visão mais aberta e integrada do território arrábido, a qual não dispensava a afirmação da importância da Península no todo regional e nacional. Nem sempre conseguiu fazer vingar a sua leitura – a democracia assim funciona –, mas pelo menos deixou-nos uma maneira de ver e de actuar que ninguém pode recusar, como testemunho recebido na corrida de estafetas que é a nossa existência.
         Não gosto daquele velho hábito português que limpa a memória deixada pelos defuntos das suas impurezas como quem lava um cadáver, antes de enterrá-lo. Se queres ser bom, morre… Não. Discordei bastas vezes das decisões das vereações presididas por Augusto Pólvora e nunca tal escondi, pelo menos durante os seis anos em que fui eleitor no município sesimbrense. Tal olhar não tolda no entanto a admiração com que fui lendo, ao longo do tempo, a sua personalidade humana e política. Além de tudo, amava a sua terra. Tive provas disso, embora modestas. Não foram poucas as vezes em que, pessoalmente, por escrito ou por gestos, manifestou o seu apreço pelo meu trabalho de investigador da sacralidade da Arrábida e das tradições religiosas sesimbrenses. Isso tenho a agradecer-lhe. Desses pequenos gestos recebi ânimo para continuar, reduzindo à sua irrelevância a atitude bem diferente de outros que poderiam ter agido com outra inteligência e abertura, nem que fosse por cálculo diplomático.

         Lembro, nomeadamente, o seu olhar entusiasmado na memorável sessão de 24/7/2014 na igreja da Misericórdia de Sesimbra, perante a voz magnífica de Teresa Salgueiro, perante a força da declamação de Maria Barroso e, também, perante as pobres palavras deste que vos escreve, enquanto defendia – aos pés do Senhor Jesus das Chagas – que Sesimbra é de pleno direito a capital da Arrábida. Outros fingiam ou cochichavam. Ele não. Bem sei que palavras me dirigiu no final do evento. Não as reproduzo. Guardá-las-ei no meu “arquivo” pessoal. Naquele dia, contudo, percebi melhor as razões que levaram o grande filósofo e grande sesimbrense Agostinho da Silva a defender que a política deve ser uma forma de santidade ou uma via a caminho da santificação. Basta que os representantes do povo, desde as juntas à suprema magistratura da nação, exerçam da melhor forma a sua bondade, tornando-se homens bons, inteiramente ao serviço do seu povo.


A OPINIÃO DE UM LEITOR: JOAQUIM MATA FERNANDES

Acabei de ler este interessante ensaio que me deu novas pistas para um melhor entendimento da poesia de Sebastião da Gama enquanto construtor de beleza, instrumento que se deixa vibrar por Deus nesse ambiente/ espaço sagrado que é a Arrábida. O seu autor, Ruy Ventura, é colega professor numa escola de Setúbal. Fico-lhe grato por esta abordagem que propõe uma leitura do poeta livre dos obstáculos biográficos e topográficos que se têm sobreposto, na crítica e na lecionação, à "carga simbólica" da sua poesia.

Fonte: https://www.facebook.com/photo.php?fbid=1603782299653645&set=a.451516101546943.103925.100000656713391&type=3&theater
(19/7/2017)


Acaba de ser editado no número 7 da Fátima XXI - Revista Cultural do Santuário de Fátima. Nele assino um ensaio intitulado "No coração da árvore", incluído no dossiê sobre o Imaculado Coração de Maria, coordenado pelo poeta, teólogo e ensaísta José Rui Teixeira.


ALGUNS APONTAMENTOS
PERANTE UMA TRAGÉDIA


O FOGO, SOBRE O AUTOMÓVEL

Perante o que vejo e leio, não conseguiria manter-me em silêncio.
Foi num último dia de Julho, em 2003 (creio). Junto de Arês (Nisa), uma súbita mudança de vento fez passar o fogo sobre o meu carro… Imparável. Ainda hoje sinto o calor e vejo a flama a passar sobre mim. Não sei por que escapei. Não sei como escapei – vivo! (Já tive duas vezes a minha terra quase cercada de fogo, mas nada foi pior do que isto.)
Em Pedrógão, entre Castanheira de Pêra e Figueiró dos Vinhos, dezenas não conseguiram escapar. Estavam no local errado à hora errada.
Recordo o que me sucedeu há 14 anos e não posso conter as lágrimas por aqueles que morreram (62? mais?). Há dias em que nada conseguimos dizer. Nem a Deus nem aos outros, nem a sequer a nós. O silêncio reverente é talvez o melhor caminho. Que descansem em paz! Dai-lhes, Senhor, o eterno descanso.


PERMITE QUE ATÉ TI CHEGUE O MEU PRANTO
Ao chegar o meio-dia, fez-se trevas por toda a terra, até às três da tarde. E às três da tarde, Jesus exclamou em alta voz: ‘Eloí, Eloí, lemá sabachtáni?’, que quer dizer ‘Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?’ " (Mc 15, 33 - 34).
É em dias como este que percebemos deveras o que são e para que serviram (e servem) as cinco chagas do Salvador. É nestas ocasiões que entendemos, no mais fundo do nosso ser, que o nosso Deus é “um Deus ferido, como tão bem viu Tomás Halík. Ficamos então a saber em que consiste a imitação de Cristo, ainda que tentemos esquecer tal proposta, pois parece-nos demasiado pesada.
Rezo com T. S. Eliot:
O ar que agora é completamente rarefeito e seco
Menor e mais seco que a vontade
Ensina-nos a curar e a descurar
Ensina-nos a permanecer tranquilos.
[…]
Não consintas que nos iludamos com embustes
Ensina-nos a curar e a descurar
Ensina-nos a permanecer tranquilos
[…]
Não consintas que eu me aparte
E permite que até Ti chegue o meu pranto.


AINDA O LUTO (MAS TAMBÉM A INDIFERENÇA ALARVE E ARROGANTE)

Na sua sabedoria aldeã, a minha avó dizia: “Agora o luto é um par de óculos escuros…”. Se vivesse neste tempo, diria: “Agora o luto é um boneco que se põe no facebook…
Cada um tem a liberdade de fazer o que quer, mas há atitudes que me chocam. Como é possível que alguém, no seu mural, manifeste o seu luto pela tragédia colectiva que estamos a viver e, ao mesmo tempo, continue a publicar fotos de comezainas, de pernas ao léu na praia ou noutro lado, de copos de imperial acompanhados por sorrisos satisfeitos ou alarves, de outras trampas que nem vale a pena listar?
Um dos grandes dramas do interior português que vai ardendo todos os verões e das suas vítimas é a indiferença com que tudo é olhado por aqueles cujo único horizonte está no seu próprio umbigo. São como Basílio Enxertado (personagem de Camilo) que arrotava satisfeito, mesmo perante os dramas alheios, porque se sentia bem longe deles e, quiçá, acima deles. 
Enxertados há muitos, infelizmente e para nossa desgraça. Enxertados com rebentos de indiferença, de egoísmo, de nihilismo, de carreirismo, de sobranceria, de arrogância, de tudo quanto há de mau por aí à mão de semear E nem todos são políticos, empresários ou gente grada
Tenho dito (porque tinha de dizer).

*


De luto, porque é impossível sentir de outro modo neste dia e nos próximos. De luto, porque luto contra o desânimo e a desesperança (e é preciso lutarmos todos)!


Já nasceu. São e escorreito. Bem hajam todos quantos me incitaram a escrevê-lo e todos quantos criaram condições para que fosse editado. 
O lançamento será no próximo dia 26 de Maio, pelas 21 horas, em Vila Nogueira de Azeitão (Sociedade Filarmónica Perpétua Azeitonense). Conto consigo!



20 ANOS DEPOIS, É TEMPO DE PERGUNTAR

Iniciei a minha actividade como poeta e como investigador na primeira metade dos anos 90 do século passado. Em 1997, um júri da Associação Portuguesa de Escritores – constituído por Fiama Hasse Pais Brandão, Fernando Pinto do Amaral e Urbano Tavares Rodrigues – atribuiu ao meu primeiro livro, "Arquitectura do Silêncio", o Prémio Revelação de Poesia. Por esta altura, há precisamente 20 anos...
Passado este tempo, é uma boa altura para deitar contas à vida. Desde a edição dessa primeira obra, no ano 2000, publiquei bem mais de uma dezena de livros e antologias, não contando com as obras de investigação histórica, literária ou etnográfica, ou com a revista "Devir" - e esquecendo os estudos, ensaios, crónicas e poemas que estão por aí espalhados, em colectâneas, revistas e jornais, bem como as palestras, comunicações e conferências que tenho feito. Tenho traduzido vários autores para a nossa língua e tido a satisfação de ver textos meus em espanhol, francês, inglês, alemão, catalão e italiano. (Só Deus sabe as alegrias, as chatices e os sofrimentos que todo este trabalho me tem trazido...)
Passadas duas décadas, impõem-se com mais força as perguntas necessárias e de sempre, ainda que conduzam a um processo de revisão pessoal, nem sempre fácil:
- Porquê?
- Para quê?
- Para quem?
- Vale a pena?
Das respostas que eu venha a dar, tirarei as devidas consequências.


A CHAVE DE SEBASTIÃO DA GAMA
será lançado na noite do dia 26/5/2017,
encerrando a Jornada sobre Sebastião da Gama.
Local: Sociedade Filarmónica Perpétua Azeitonense 
(Vila Nogueira de Azeitão)

Edição da Licorne.
Capa a partir de fotografia de Nuno Matos Duarte.

QUE RESTARÁ DA FÉ?

As intervenções públicas dalguns teólogos (cuja eminência cultural e exegética não discuto e admiro) têm-me levado a remoer aquela pergunta assustadora de Jesus de Nazaré, registada por São Lucas: "[...] quando o Filho do Homem voltar, encontrará a fé sobre a terra?" (Lc 18, 8). Ultimamente têm falado sobre o acontecimento-Fátima, mas as suas reflexões multiplicam-se e espraiam-se pelos mais variados assuntos. Nesses artigos, livros e entrevistas, parecem ser avessos ao "meta-realismo" essencial na experiência religiosa, recusando a distância que existirá sempre "entre nós e a verdade", "entre nós e o infinito", pois, como confirma Jean Guitton, a crença "não é saber, acreditar não é compreender, acreditar é aderir na noite".
Bem sei que o Salvador tinha consciência desta postura, existente já no seu tempo e multiplicada até à nossa contemporaneidade. Por isso mesmo nos assegurou de que a entrada no Paraíso só ocorrerá se voltarmos a ter a humildade das crianças de tenra idade (Mt 18, 3 - 5). Com grande alegria, Ele mesmo agradeceu ao Pai ter escondido "estas coisas aos sábios e inteligentes", guardando a revelação para os "pequeninos" (Lc 10, 21)... Estas e outras palavras de Jesus comprovam quão grande era a distância entre a Sua doutrina e uma postura gnóstica e cátara da aproximação a Deus, propagada logo nos primeiros séculos do cristianismo e transformada, no nosso tempo, em várias formas de sobranceria intelectual.
Bem sei, ainda e de antemão, que chegará um tempo em que dominará o chamado "mistério da iniquidade", "com todo o tipo de seduções de injustiça para os que se perdem, porque não acolheram o amor da verdade para serem salvos" (2 Ts 2, 3 - 12). Mas mesmo assim me deixo inquietar pelo discurso dalguns teólogos com visibilidade pública. Desconfio que esse tempo iníquo já chegou e que os "milagres, sinais e prodígios enganadores" se vão operando por aí, pela mão de uma humanidade seduzida pelo canto das sereias que, mais tarde ou mais cedo, levará ao seu afogamento.
Talvez me engane, todavia... Afinal, não deixo de recordar que atribuir ao Demo a acção divina é, sem dúvida, o maior pecado que se pode cometer, pois se atenta contra o Espírito Santo: se alguém disser algo contra Cristo, "há-de ser-lhe perdoado; mas, se falar contra o Espírito Santo, não lhe será perdoado, nem neste mundo nem no futuro" (Mt 12, 31 - 32). Afinal, nesse tempo iníquo, Deus enviará "uma força que leva ao erro", de modo a conduzir os que recusaram o "amor da verdade" a acreditarem "na mentira", levando assim à condenação de todos quantos "sentiram prazer na injustiça" (2 Ts 2, 11 - 12).
O que escrevo só o registo porque tenho as costas quentes... Rodeado pela memória e pelos livros de Charles Péguy, Marie Noël, Cristina Campo, Jean Guitton, Agostinho da Silva, Teilhard de Chardin, Dalila Pereira da Costa, Sebastião da Gama, Frei Agostinho da Cruz, Santa Edith Stein, São Karol Wojtila, etc. a minha coragem é outra.

RUY VENTURA


(Gravura: "Fé, Esperança e Caridade", de Johan Wierix.)


SALVAÇÃO PELA LEITURA
(do livro ao Livro do Mundo, 
passando pela Ilha dos Amores 
e pela esfera armilar)

Domingos Fernandes, poeta alentejano falecido em 1972, tinha versos surpreendentes. Vendedor de pratos antigos a José Régio, sem nunca lhe dizer que também escrevia poemas, era capaz de palavras certeiras como estas: "Há muito livro bonito, / Muito bem encadernado; / Mas tudo quanto tem escrito / É reclame de mercado. // Há livros mal capeados, / Não prestam para vender; / Mas são uns livros sagrados / Que todos deviam ler. // Com tais livros apontados / Há homens muito parecidos; / Há talentos mal roupados, / Há imbecis bem vestidos. // Há muito sábio perdido, / É pena não ser achado, / Há muito burro mantido / À manjedoura do Estado". A preservação deste texto deve-se a José Correia Tavares, seu sobrinho por afinidade, que em 1967 os publicou numa revista editada em Angola, sem conseguir todavia impedir o corte da última estrofe pela censura.
Já em 1999, a sua discípula Maria Tavares Transmontano divulgou uma quadra de sua autoria que nos obriga a pensar: "Mais ainda que os outros livros, / Lê bem o livro do mundo, / Que hás-de achar onde te salves / De algum pélago profundo!"
Se o primeiro poema me agrada pela comparação sarcástica e certeira, o segundo traz-me ressonâncias longínquas com que o autor, homem culto mas simples das serranias do Alto Alentejo, nem sequer terá sonhado. O "livro do mundo" faz-me sempre recordar o emblema adoptado por el-rei Dom Manuel: uma esfera, tendo à volta ou na base a legenda spera mundi
Sempre me intrigou este letreiro usado pelo herdeiro de D. João II. A leitura literal da esfera armilar deveria obrigar à indicação de uma sphera mundi. Todavia, tal não aconteceu. Entre uma e outra palavra alguém resolveu estabelecer a polissemia, uma leitura dupla ou infinita promovida pelo equívoco significativo. Suprimiu-se a H - e a esfera viu-se transformada em esperança, a que chegamos pela espera, pois só a paciência nos pode levar a alcançá-la. E a paciência liga-se à alegria que, nas palavras inspiradas de São Francisco de Assis, consiste na calma perante as maiores adversidades.

Não creio que essa espécie de divisa manuelina se tratasse apenas de um jogo. N' Os Lusíadas, por exemplo, Camões fala da contemplação da esfera ofuscante como cume da experiência mística (o que deita por terra todas as leitura chãs do episódio da Ilha dos Amores, como bem sabiam Fiama Hasse Pais Brandão e António Telmo). Dalila Pereira da Costa, por seu turno, explicou que a contemplação do mistério de Deus pode consistir na contemplação de um globo luminoso, visto no mais alto instante da vivência inefável. Dá-se a coincidência de a raiz semita SPR significar escriba, mas também livro, escrita, número, arquivo ou registo de memórias. Tal radical pode ter originado a nossa esfera especiosa, misteriosa. Assim se indica que o globo é, sobretudo, um livro; que a sua contemplação corresponde à sua leitura; e que nesse livro (sepher) está a esperança (spera ou spes), porque contém o mundo (sphera), ou seja, a memória de todos nós (spr).
Se seguirmos por aqui, concluiremos que na leitura está uma via de salvação. Não numa leitura qualquer, mas na contemplação consequente das Escrituras que revelam o mistério divino. Não concebiam os mestres talmúdicos o Paraíso (Pardèsh) como "lugar da leitura"? Tenhamos pois Esperança, que é a ponte entre a Fé e o Amor. E meditemos nas palavras avisadas de Domingos Fernandes: a leitura do "livro do mundo" pode salvar-nos do abismo.



Ruy Ventura


POESIA PORTUGUESA EM MADRID

No próximo dia 15 (quarta-feira), pelas 19h30, na prestigiada sala "Corral de Comedias", em Alcalá de Henares (Madrid), vai decorrer a sessão LA VOZ MÁS CERCANA: PORTUGAL, dedicada integralmente à poesia portuguesa contemporânea. A dramaturgia será de Aitana Sar, Clara Santafé e Ines Sánchez, acompanhada ao piano por Francisco Recuero e com voz de Verónica Aranda. Serão lidos poemas de Albano Martins, Catarina Nunes de Almeida, Daniel Faria, Graça Pires, José Luís Peixoto, Maria Teresa Horta, Sophia de Mello Breyner Andersen, Victor Oliveira Mateus e Ruy Ventura.






DETERGENTE, de Ruy Ventura
(excertos traduzidos para catalão por Joan Navarro)



E, no entanto, há luz no meio do entulho: livros, colocados numa mão incerta cuja humidade permite o nascimento de fungos e, mais tarde, de pequenas plantas. (Haverá por ali um grão de mostarda ou outra semente cuja árvore um dia reconheceremos?) Livros e tecidos impuros, com húmus e estrume no meio da batalha.

I, malgrat tot, hi ha llum enmig dels enderrocs: llibres col·locats en una mà vacil·lant la humitat de la qual permet el naixement de fongs i, més tard, de petites plantes. (¿Hi haurà per allà un gra de mostassa o una altra llavor l’arbre de la qual un dia reconeixerem?) Llibres i teixits impurs, amb humus i fems enmig de la batalla.



Não há paisagem além do quadro ou da fotografia, escrevi como se estivesse na caverna. No meio do lixo, talvez recolha imagens sem movimento. Terei assim alguma consolação, pois nada mais serei do que um silo abandonado, onde se lançam cacos e restos de comida.

No hi ha paisatge enllà del quadre o de la fotografia, vaig escriure com si fos a la caverna. Enmig de les escombraries, tal vegada recolliré imatges sense moviment. Tindré així alguna consolació, ja que no seré res més que una sitja abandonada, on s’hi llencen testos i restes de menjar.



E se as palavras, reduzidas a pele e osso, fizerem parte do entulho que nos sufoca no fundo da vala?
I si les paraules, reduïdes a pell i os, fan part de la runa que ens sufoca al fons de la fossa?




Quem abandonou esta casa? Quem habita hoje nesta casa? A foz não existe sem presença. Deixa na pedra uma inscrição de luto, que a boca não poderá beber.
¿Qui abandonà aquesta casa? ¿Qui viu avui en aquesta casa? L’embocadura no existeix sense presència. Deixa en la pedra una inscripció de dol, que la boca no podrà beure.


Falta-lhe a nascente. As letras sobrepõem-se na fachada. Há luz derramada pela nave, sem que as palavras sejam capazes de recuperar a penumbra. (Ninguém pode viajar quando o ruído impede a veneração e o dinheiro tilinta nas mãos, com vaidade.)
Li falta la deu. Les lletres se sobreposen en la façana. Hi ha llum vessada per la nau, sense que les paraules siguin capaces de recuperar la penombra. (Ningú no pot viatjar quan el soroll impedeix la veneració i el diner dringa en les mans, amb vanitat.)

MARIA GUARDAVA TUDO NO SEU CORAÇÃO
Dos Evangelhos a uma Espiritualidade Cordial

conferência 
na Basílica de Nossa Senhora do Rosário de Fátima
na Cova da Iria

11/12/2016


DETERGENTE

por José do Carmo Francisco
http://transportesentimental.blogs.sapo.pt/detergente-de-ruy-ventura-342101 (29/1/2017)


Este é um livro especial, insólito e diferente na bibliografia de Ruy Ventura (n.1973) cujo primeiro livro («Arquitectura do Silêncio») recebeu em 1999 o Prémio Revelação de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores. A Poesia é (todos o sabemos) uma arte de fundo pessoal. O poema escreve o poeta; o poeta escreve-se no poema. Mas o poeta não é um organismo sentimental sem raízes, sem passado, sem biografia. Tal como neste livro, no qual surge um diálogo entre dois homens (João e Raul) sob um fundo musical de Olivier Messiaen. Trata-se de um tempo que chega ao fim, um mundo desolado, uma cidade deserta. Raul começa o diálogo na página 7: «Nascem no mesmo dia a força e a pobreza. A casa está cheia de entulho e as ruas não permitem a circulação. Vivemos entre escombros, já muitos o disseram. Por isso páro. Vivo? Sobrevivo? Existimos.» João, por sua vez, faz um inventário pessimista: «Há quem escreva versos mas dispense a escassez, o trabalho, a descoberta. Há quem vá filosofando mas rejeite o amor e a sabedoria. Há quem pinte, molde, filme, dance e represente mas feche os olhos às imagens que nos desafiam, como lava no dia de juízo.» É neste «caldo cultural» que Raul procura um futuro: «Temos de sorrir (dizem). Temos de suportar, ainda que a dissolução nos transforme em vermes, em roedores que voam ou rastejam.» João, por sua vez, proclama a força da escrita: Primeiro na página 9: «Entre a superfície da escrita e a ocultação da morte – não há negrume que nos apague.» Depois na página 10: «Quem escreve encontra o organismo: a instabilidade da matéria – cor e pó, memória e gangrena – um grupo de células que o fogo não destrói, que a terra não apodrece» Por fim na página 23: «Esquecendo, talvez consiga escrever. Excesso ou amnésia, o texto retrocede.» É nesta oscilação entre sangue pisado e estilo que surge o detergente que dá o título ao livro: «A memória descritiva assegura-nos de que a estátua (ou medalhão) é de bronze, de pedra ou cera d´abelhas. Mas no fundo temos a certeza de que o miolo da efígie não passa de sabão ou detergente.»

Sob a forma de peça de teatro, no fundo é de poesia e sua temperatura que trata este livro, Vejam-se as citações: «Odeio este tempo detergente» (Ruy Belo), «O obstáculo ou depura ou torna-nos perversos» (Cesário Verde) E a dedicatória: Para Levi Condinho, Nuno Matos Duarte e Rui Almeida. Em memória de Filipa Barata e Carlos Garcia de Castro. 

(Editora: Licorne, Capa e Foto no interior: Nuno Matos Duarte)-


Um novo livro:

DETERGENTE


Este novo livro de Ruy Ventura - poema ou diálogo entre duas figuras (João, que transita do "Contramina", e Raul, que poderia ser Brandão) - parte de duas frases. Uma é de Ruy Belo - "Odeio este meu tempo detergente" - e a outra é de Cesário Verde - "O obstáculo ou depura ou torna-nos perversos". É dedicado a Nuno Matos Duarte, Rui Almeida e Levi Condinho - e presta homenagem a Carlos Garcia de Castro e Filipa Barata.
O texto lê-se ou ouve-se ao som de Messiaen - "Quatuor pour la Fin du Temps" - num edifício em meia construção, mas já abandonado. Entre Raul, que afirma: "Nascem no mesmo dia a força e a pobreza. [...] Perco-me e assim quebro, parto, a madeira da vivenda que deixou de ser habitação." E João, que responde: "Meu peso não deixará vestígios. Peregrino, suspendo os passos. Deixo aberto a mina de água, sabendo de antemão que a fonte secou ou escolheu outra nascente."
Como os poemas e os livros só valem a pena se forem lidos - e dado que só daqui por algum tempo a publicação estará disponível nalgum circuito livreiro - sugere-se a encomenda de um dos 50 exemplares que, na mão do autor, estão disponíveis. Basta o envio de um mail para ventura.1973@gmail.com e o assunto será tratado. 
Este poema, agora editado pela Licorne, de Évora, e valorizado com duas fotos inéditas de Nuno Matos Duarte, será lançado em data e circunstâncias ainda a definir e anunciar.