Tentativa de Arte Poética






Sendo a Poesia uma contraliteratura, logo um elemento edificador de uma demanda contracultural, a Arte produzida por quem escreve terá sempre uma dimensão de confronto. Antes de mais, um confronto com a linguagem enquanto instrumento comunicativo. Depois, uma luta permanente com a sociedade que usa essa linguagem e expulsa do seu corpo todas as presenças estranhas e estranhantes. Por fim, uma batalha ininterrupta contra a tradição expressiva da comunidade.

Não significa isto que a Poesia seja uma Arte desenraizada. Quem escreve tem as raízes na terra a que pertence, está consciente da presença dessas raízes, sabe usá-las para viver e segurar-se contra os vendavais e os terramotos da existência. Apesar disso, tudo arranca, tudo expõe, tudo subverte – porque conhece a distância entre a Poesia e a versificação, entre o Espanto e a monotonia, entre o Mistério e a previsibilidade, entre a Ruptura e a continuidade.



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Nos poemas que venho escrevendo tento descrever destruindo a descrição, narrar destruindo a narração. Mais do que poeta, considero-me um investigador do avesso do mundo material e imaterial que me rodeia. Defendo que a Poesia não serve para representar a realidade nem para contar (historiar) a mundividência dos seres humanos, mas apenas – e é bastante – para apresentar as rupturas, as fendas e as fugas abertas na crosta que nos sustenta e nos dá forma corporal animada. Aborde uma matéria tangível/visível ou uma realidade intangível/invisível, tento que a minha poesia seja a concretização do inefável e, simultaneamente, a revelação da “espiritualidade” do mundo concreto. Concretizar o concreto ou espiritualizar o inefável é chover no molhado, empobrecendo e destruindo a Arte. Deturpando as palavras de um poeta espanhol, é preciso aliarmos às coisas existentes, mas mortas, as coisas inexistentes, mas vivas. Nem concreto nem abstracto são propriamente poesia, dizia Vitorino Nemésio. A Poesia será sempre “outra coisa”, um “não sei quê”; pertencerá sempre ao domínio da indeterminação.



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Como qualquer outro ser escrevente, sou um ser contaminado. Não falo de influências à maneira de Bloom, pois ressumam hierarquia – e, ao fim e ao cabo, todos os autores criam os seus antepassados, como escreveu Jorge Luis Borges. O poeta brasileiro Márcio-André diz bem: “A contaminação não parte de um princípio de troca hierárquica entre um contaminador e um contaminado; na verdade, ambos se contaminam mutuamente. […] só podemos ser contaminados por algo que já esteja dentro de nós, ainda que enquanto possibilidade.” Devo, contudo, muito mais à pintura e à escultura que vi até hoje, aos reinos animal, vegetal e mineral com que me venho deparando – do que à Poesia que venho lendo desde que me lembro. Por mais que admire a poesia tradicional e as obras de Homero, Horácio, Ovídio, Dante, Holderlin, Mallarmé, Rimbaud, Rilke, Eliot, Pessoa, Teixeira de Pascoaes, Nuno Guimarães, Carlos de Oliveira, Maria Gabriela Llansol, C. Ronald ou Fernando Echevarría – quem quiser entender os veios estilísticos por onde corre a água dos meus poemas terá de observar com atenção toda a pintura medieval, os quadros de Giotto, Luis de Morales, Zurbarán, Friedrich, Domingos António Sequeira, Ciurlionis, Kandinsky, Chagall ou Hundertwasser, a arte esquemática pré-romana, a escultura flamenga dos séculos XV e XVI, os retábulos maneiristas e barrocos de origem espanhola e portuguesa, a arte popular saída da mão de barristas e entalhadores provenientes de todos os cantos do mundo. Terá ainda de vislumbrar as serras de Gredos, da Arrábida e de São Mamede (envoltas no nevoeiro, no silêncio e, por vezes, nas chamas dos incêndios), o mar que bate das falésias de Sagres e de Aljezur, a largueza dos carvalhos e dos sobreiros.

Nada existe, tudo coexiste. Bernardo Soares tinha razão.

1 comentário:

Luis Eme disse...

gostei de te ler, Rui.

e ainda fiquei mais confuso sobre esta coisa da poesia...