José do Carmo Francisco
Prefácio a Arquitectura do Silêncio, Miraflores, Difel, 2000: 9 - 14.
Uma das leituras possíveis deste título – Arquitectura do Silêncio – aponta para que estas páginas sejam também uma “construção da morte”. A morte surge aqui no sentido do desaparecimento visual (a casa, o avô, a infância) mas sempre com a porta aberta à recuperação possível através da memória.
Ruy Ventura organiza o seu livro a partir da casa:
“toca a mão na madeira (direi porta?)
como se tocasse toda a substância da casa
o seu vento as suas vozes os seus cheiros
os seus objectos a totalidade do espaço
que se adivinha para além das janelas e das paredes”
Não se trata de uma casa imóvel e vazia mas de uma casa em transformação:
“por detrás do quotidiano
a casa transforma-se é como se reunisse
em si um corpo não somente corpo
mas espaço ocasionalmente
encoberto sob as formas e constelações da noite”
O poeta viaja “da montanha até ao mar levando no bolso pedaços de palavras” porque a viagem é (entre outras coisas) uma forma de interrogar o mundo:
“tudo o que temos é como o princípio de um cometa
entre as frases e o sabor das mãos
é como chuva fecundando o reflexo das nuvens
fruto que a sede alimenta
entre nossos corpos e a momentânea distância
de uma estrela à outra”
O poeta viaja muitas vezes num comboio e pode, por isso, reclamar:
“não nos tirem daqui esta vidraça
é comboio para um país de nevoeiros
tarde na sombra de uma vírgula
ou planeta”
Noutro poema é a estrada que precipita a reflexão:
“a estrada ignora a velocidade do automóvel
tal como a sombra parece ignorar a própria árvore
cada viagem por mais curta que seja
é muito mais que o simples retrato do vento”
Se o silêncio é a imagem projectada da morte, a viagem é a imagem projectada da vida porque a rapidez é uma vitória sobre o tempo. Vejamos o poema a partir da música de Schubert ouvida entre Lisboa e Portalegre:
“o automóvel avança
e ao volante as notas são porto de embarque para as palavras
ave gratia plena
entre os sobreiros e a erva a despontar junto das cercas
a manhã constrói o seu itinerário”
A viagem pode ter outras formas além da geografia – pode ser uma viagem ao passado como quando o poeta recorda Agostinho da Silva no Jardim do Príncipe Real:
“não vale a pena transformar em símbolos
tudo o que um rosto tem de veio de água
a experiência conta-nos que o fogo
está muito longe de mapas
e infinitos”
Duas “terras pequenas” – Coruche e Marvão – são pontos dignos de registo da viagem do poeta, são o intervalo entre o Campo e a Cidade:
“nas terras pequenas o tempo transforma-se
o tempo faz-se verso como luva de pelica
e acaricia-nos a cara com o perfume das cores que se movimentam
no reino vegetal”
Tal como os primeiros poetas, que escolhiam o herói e o vinham cantar de terra em terra, Ruy Ventura escolheu os seus heróis e motivos para cantar. As casas que perdeu, o olhar do avô, os seus destroços pessoais. Daí não ser estranho o uso frequente de palavras como “navio”, “oceano” e “naufrágio”. Todos nascemos na água e morremos com dezassete dias de sede. A água do poema é a própria vida com outro nome. O poema é o salvado, aquilo que escapou do desastre, uma viagem para a qual nenhuma companhia de seguros se atreve a emitir uma apólice. O poeta canta ao que restou de um tempo, de “um caminho percorrido”, de uma memória. Mas cantar é rezar duas vezes e, neste caso de Ruy Ventura, a oração vem religar dois mundos separados pelo tempo – a infância e a idade adulta. Não há paraísos perdidos mas há memórias felizes resgatadas no poema, repetidas, recuperadas. O poema liga de novo aquilo que os dias acumulados ajudaram a separar.
O poeta, todo o poeta, quer sempre unir, juntar, ligar. A vida prática é, porém, uma constante e permanente fonte de rupturas. O poema surge, para Ruy Ventura, como uma teimosia, uma recusa da ordem, uma revolta perante o inevitável. O poeta constrói a sua escrita numa carpintaria certeira, solene, exacta. O discurso é sempre contido, o verso não se expande, a ideia não se amplia em desmesura. Tudo na escrita deste jovem poeta respira a sabedoria acumulada em muitos anos de leituras mas, ao mesmo tempo, uma voz própria, de contornos definidos e modulações felizes. Há um timbre poético que não se repete, não copia nem secunda.
Vejamos, para terminar, um excerto do poema-memória do avô:
“quanto lhe custariam a idade e o próprio sorriso
(tão longínquo quanto os olhares dentro do retrato
a caixa de pedreiro distante na escuridão como uma navalha perdida dentro do bolso)?
entre a cama e a lembrança das pequenas coisas
apenas visíveis na sombra dalgum olhar molhado
quanto lhe custariam
o miar do gato a adormecer na lareira
as castanhas comidas como luzes
a bicicleta substantivo próprio à espera de um lugar
dentro da geografia?”
A figura (o pretexto) do avô surge assim como tripla referência – “casa, viagem e memória” ao mesmo tempo. É uma cartografia pessoal que o poeta transforma em poema. Com a secreta intenção de que não venha o esquecimento a destruir aquilo que o laborioso esforço do poema conseguiu juntar.
Sem comentários:
Enviar um comentário