SOBRE SEBASTIÃO DA GAMA

por Ruy Ventura

                                                                                             
Ruy Belo não gostava que a apreciação de Sebastião da Gama se ficasse pela atribuição do título de “Poeta da Arrábida”. Considerando o autor de Serra-Mãe um “poeta integral”, não podia vê-lo confinado a uma poesia localizada. Afigurava-se-lhe “pelo menos desorientador chamar a Sebastião da Gama o poeta da Arrábida e, não contente com isso, esfregar as mãos de alegria, como quem já disse tudo”. Embora considerasse que “A localização de um poeta no espaço é um elemento de interpretação da sua poesia”, não deixava no entanto de verificar os perigos desse veículo de entendimento, que bem se pode tornar num “obstáculo para a sua compreensão.” Para o poeta de Aquele Grande Rio Eufrates, se “Ver um poema é como ver um rosto. [...] Podemos saber que é belo, mas não sabemos porquê”, então “A localização de um poeta na sua paisagem servirá para ver essa paisagem. Não ao contrário.” Ruy Belo concordava decerto com um dos pensamentos de Pascal, esse filósofo tão caro a Sebastião da Gama: “Não é do espaço que eu devo esperar a minha dignidade, mas do acerto do meu pensamento. [...] pelo espaço, o universo abarca-me e submerge-me como um ponto. Pelo pensamento, abarco-o eu.
De facto, a grandeza de uma obra literária não depende do espaço nem sequer da matéria, mas da maneira como o poeta conseguiu transfigurar o universo que o rodeou. Teixeira de Pascoaes – esse mestre maior do autor de Cabo da Boa Esperança – tinha razão quando afirmava que “A beleza das coisas não é inerte; insinua-se, em nós, como um segredo, e pretende assenhorear-se do lugar. Conquista-o e transfigura tudo, em volta dela. Derrama-se como a luz na sombra”. Permite assim ao ser humano um transporte que o torna ser luminoso, o transporte que o eleva de uma mera existência natural, instintiva, animal, até à liberdade e imortalidade da verdadeira vida.

         Sebastião, “poeta integral” e cristão assumido que não dispensava uma ética de responsabilidade em todos os momentos da sua vida, sem ter sido nunca um “poeta social”, considerava-se obrigado ao uso público da palavra, ao testemunho, na medida em que o poeta e o cidadão são duas faces do mesmo ser bifronte, inseparáveis num ser humano que aceitou a missão de construir pontes entre todas as dimensões da Vida e até da Existência, entre todos os seres que habitam o Universo, entre esses homens e mulheres e o Mundo que os rodeia. São reveladoras as palavras que inscreveu na sua tese de licenciatura: “[S]ó se é Poeta na medida em que se é homem, que o mínimo acto do homem-Poeta, o mais prosaico, o mais comezinho, o mais grosseiro, o mais em desacordo com o seu ideal, é tanto a massa da sua poesia como o seu voo mais arrebatado”.
         O poeta – quando o é de verdade – é sempre um instrumento de religação, logo um ser ético. Sebastião sabia, contudo, que os termos nem sempre se confundem, que o contrário nem sempre se verifica:
         “A indignação activa contra as injustiças da sociedade, o carinho pelos oprimidos, qualquer homem de bem os pode ter; mas isso não é suficiente para ser Poeta; isso, que num homem qualquer é tudo, é no Poeta só um pretexto. [...] Um legítimo Poeta que não tenha escrito senão contra as injustiças sociais seria um Poeta na mesma se não existissem essas injustiças, Então, seriam outros os temas; outros os pretextos.
         As suas palavras referiam-se, sobretudo, aos poetas portugueses de oitocentos (Herculano, Garrett, Junqueiro, Gomes Leal, Cesário)... Nas veias do seu pensamento corria no entanto o sangue mais universal das ideias defendidas pelos directores da revista presença, principalmente José Régio (o seu outro mestre, ao lado do poeta de Marános), defensores intransigentes da liberdade inteira dos criadores contra a submissão da Arte a ditames político-sociais, por mais justos que parecessem. As considerações tecidas por Sebastião da Gama não perderam ainda actualidade. O autor de Serra-Mãe não rejeitava a “poesia social”, como não recusava qualquer forma de expressão poética que se instituísse enquanto Arte em Liberdade. Aí reside também a sua postura ética. Sabia distinguir num poema, como leitor clarividente, as suas diferentes dimensões: de um lado o seu valor humano, que em geral conduz a uma maior realização comunicativa; do outro, o seu valor poético, artístico. Um poema escrito em linguagem obscura poderá conduzir, na sua opinião, a uma maior dificuldade no entendimento imediato, mas isso não significa para Sebastião da Gama que a Poesia não permaneça lá, “inviolada, esperando a vinda dos que a descubram”. Segundo escreveu, “O seu valor humano será menor e terá, por conseqüência, uma realização limitada. Mas isso não impede que o seu valor absoluto se não melindre.
         Seja qual for a Arrábida que nos mova, as injustiças que nos façam escrever, as paisagens que nos encantem, as figuras que nos interpelem, os sonhos e imagens que nos obriguem, os sentimentos que se estabeleçam, os pensamentos que queiram ver a luz da expressão – é preciso passarmos da representação à apresentação do mundo e dos seus seres, da observação à investigação da realidade, da prospecção dos vestígios de um tempo e de um espaço fugidios e irrepetíveis à sua escavação e interpretação. Apresentar, investigar, escavar e interpretar serão sempre os verbos que moverão o trabalho poético de quem escreve porque não pode deixar de criar em Arte. “Transfiguração” é a palavra-chave.
         É neste âmbito que se deve sublinhar a ligação entre Sebastião da Gama e a Arrábida. Nos poemas arrábidos de frei Agostinho da Cruz, essa guia espiritual do poeta de Vila Nogueira, percebe-se que toda a elevação espiritual se estrutura entre a Natureza/Mundo, a Palavra/Poesia e Deus. Interpretando-os e lendo a serra que conhecia como poucos, o autor de Itinerário Paralelo percebeu que o território estendido entre as duas ermidas da Memória (Campo, Cabo e Serra) só se pode entender em profundidade nessa tríade evidenciada na poesia do frade franciscano ou noutra, mais clara, que ele verteu nos títulos dos três livros que publicou na sua curta vida de vinte e sete anos. Campo Aberto corresponde à Natureza, à criação, mas também ao mundo habitado e social, onde todos nós existimos e tentamos viver, abrindo-nos e esvaziando-nos das contingências, afastando-nos dos instintos e da corrupção. Cabo da Boa Esperança exprime a finisterra, a cessação de um mundo natural, por obra da palavra e da poesia, ou seja, pela acção criativa colaborante com Deus na produção de uma “pintura” que traga para junto de nós o Supremo Pintor; por isso o Cabo não é apenas fim da terra, mas início da esperança. Por fim, a montanha, Serra-Mãe vem dar relevo à matriz, ao tronco, à matéria gerada e geradora, mas sobretudo ao acidente natural que exige o movimento de assunção, incitando os seres humanos a subir a escada do Paraíso e a aproximar-se de Deus. Tal como escreveu na sua tese de licenciatura, “Poesia” e “Deus” são termos sinónimos, equivalentes.
         A Arrábida ofereceu aos dois poetas de Deus um espelho onde puderam ver as três virtudes teologais, como vias de salvação pessoal e do mundo: no campo, ou seja, na natureza e na sociedade, o exercício da Caridade, do Amor Divino transformado em Amor à criação, humana e natural; no cabo, o encontro com a Esperança, a boa Esperança, aquela que nos faz olhar o futuro enquanto emanação sagrada; e, por fim, na serra, o encontro com a Fé, nesse lugar onde se oferece a liberdade, o melhor manjar que, nas palavras de frei Agostinho, “Depende de trazer o pensamento / Aceso na divina saudade”.
         Cada um de nós tem presente um Sebastião da Gama que lhe é próximo. Haverá quem guarde sobretudo a sua memória de Homem e de Cidadão (onde se inclui o seu desempenho como professor), outros privilegiarão as suas intuições pedagógicas, um pequeno grupo lembrará o seu cristianismo alegre e esclarecido, muitos recordam sobretudo o poeta e, entre estes, existirão aqueles que valorizam sobretudo o valor humano dos seus textos, enquanto um número indeterminado de leitores realçará a qualidade artística dos seus poemas, sobretudo daqueles que o farão permanecer no futuro, conservando a solidez do seu lugar no vasto território da Poesia Portuguesa do século XX. Todas as facetas deste ser poliédrico, exemplar, merecem a nossa admiração. O que não significa que passemos à canonização; a pior coisa que pode suceder a um escritor intenso como ele é não ser discutido, não ser constantemente avaliado nas suas atitudes e nas suas produções. Não tenhamos dúvidas: o futuro recordará Sebastião da Gama como Poeta, sobretudo como Poeta, mas isto não significa que uma devoção acrítica nos impeça de ver que a sua poesia foi um ser em crescimento, em maturação.
         Com Ruy Belo iniciei estas palavras, com Ruy Belo as termino. Se concordo com ele quando afirma que Sebastião da Gama “vinha melhorando surpreendentemente de livro para livro”, não sei até que ponto ficou “a meio da canção” (na medida em que uma parte substancial da sua obra em prosa e em verso ainda permanece inédita). Há no entanto uma convicção que partilho com o autor de Terra da Alegria:[...] não é que não tenha interesse a biografia, mas o que inequivocamente tem primordial importância são os textos, os positivos textos. Só de quem foi poeta na obra interessará saber se foi poeta na vida. [...] De resto o poeta sabia que assim era e desejava que da sua obra falassem ‘objectivamente, friamente’.” 

         Convosco partilharei a certeza de que Sebastião da Gama foi poeta na vida e na obra. Por isso aqui estamos. Por isso assumimos como dever preservar e divulgar, num olhar claro, todos as faces da sua memória.

Texto lido nas comemorações do 91º aniversário 
do nascimento de Sebastião da Gama
(11/4/2015, na Sociedade Filarmónica Perpétua Azeitonense, em Vila Nogueira de Azeitão)