UM BONÉ, UMA MULA E UMA PEDRA
(sobre as estátuas derrubadas e vandalizadas)


Quando era miúdo, tive um vizinho com hábitos curiosos. Era, como eu, um gaiato de aldeia, um pouco mais novo, mas com modos que o afastavam das descidas à minas de água (onde íamos apanhar morcegos), das passeatas pelos abrigos abandonados das tapadas, das conversas debaixo da figueira gigante e de outras tropelias a que mesmo os mais controlados (como eu) não perdiam o franco gosto a liberdade.
O Calixto (nome que agora invento para esconder o seu) raramente saía da nossa rua. Tinha modos encolhidos. Falava pouco, embora brincasse connosco, dentro dos seus limites espaciais. Era, todavia, um patusco. Quando algo lhe corria mal, mesmo que fosse coisa de somenos, não se atirava ao causador da frustração. Cerrava os dentes, tirava o boné da cabeça e atirava-o ao chão, pulando-lhe em cima, com a maior veemência, como se a desgraçada boina fosse a causadora dos seus males. Havia também dias em que pontapeava as paredes e as portas, mas esses eram mais raros...
Outro dos seus hábitos era o choro selectivo e cronometrado. Mesmo que ninguém lhe batesse, se alguém o contrariava não deixava o crédito por mãos alheias. Calava-se ou resmungava baixo. Não dava mostras de zangamento, mas, quando a mãe chegava do trabalho, afastava-se de nós e, sentindo-se já distante e em segurança, desatava num berreiro de sirene, acusando até os inocentes das mais graves sevícias. Escusado será dizer que a progenitora o consolava e acreditava em tudo quanto o Calixto dizia, berrando como cabrito com a faca ao pescoço. Minutos depois, havia raia certa, com a mãe do catraio a pedir despique às nossas mães, acusando-as de não darem educação aos seus filhos... Era o bom e o bonito! Imaginem...
Porque recordo agora, passados quase quarenta anos, o comportamento deste estranho rapaz, hoje pai de filhos e gordo marido? Ora... bem sabeis o que pôs a minha memória a funcionar... Sois bons entendedores... Calixtos há muitos. Só que agora derrubam estátuas (quem nos dera que rasgassem apenas as suas fotos...) e berram - com razão ou sem ela - perante certas madrastas, bem mais perigosas do que a crédula mãe do meu vizinho.

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Certo dia, indo Iñigo López a caminho do santuário de Nossa Senhora de Monserrat, encontrou-se com um mouro. Agradou-lhe o companheiro de viagem e foram conversando os dois, em amena cavaqueira. Aconteceu, a dado passo, falarem sobre Nossa Senhora. O muçulmano, lembrando decerto passagens do "Alcorão", afirmou a sua certeza de que Maria havia concebido Jesus sem intervenção humana; manifestou no entanto dúvidas quanto à possibilidade natural de essa virgindade se manter depois do parto. Por mais razões que advogasse o biscainho, não havia maneira de convencer o seu interlocutor da verdade em que piamente acreditava.
Separados os viajantes, Inácio ficou a matutar no assunto. Roía-lhe a consciência, pensando que talvez não tivesse defendido com o ardor devido o bom nome da Virgem. Passou-lhe pela cabeça procurar o homem com quem discutira e dar-lhe umas punhaladas. A consciência não o deixava no entanto quieto. Tentava discernir o melhor caminho e nada lhe ocorria. Sabendo para onde tinha ido o mouro, não conseguia ainda assim decidir-se a vingar o bom nome da mãe de Cristo. O santo de Loyola tomou então uma decisão. Assim a conta na sua "Autobiografia", usando a terceira pessoa:
"E assim depois de cansado de examinar o que seria bom fazer, não encontrando coisa certa a que se determinasse, resolveu deixar ir a mula com a rédea solta até ao lugar onde se dividiam os caminhos. E que se a mula fosse pelo caminho da vila, ele buscaria o mouro e lhe daria punhaladas; e se não fosse em direcção à vila, mas pelo caminho real, não lhe faria nada. E fazendo aquilo que pensou, quis Nosso Senhor que, ainda que a vila estava a poucos mais de trinta ou quarenta passos, e o caminho que levava a ela era muito largo e muito plano, a mula tomasse o caminho real, e deixasse o da vila."
Louvado seja Deus por dar bom tino às bestas de carga, quando ele parece faltar aos humanos! Ninguém se livra de, em certos momentos de insanidade ou menor calma, ter vontade de "untar as molas" a quem não concorda consigo... ou defende o indefensável. Mas o caminho tem de ser outro, a bem da concórdia... Quem nos dera que as hordas "vingadoras" de ofensas verdadeiras, inventadas ou supostas tivessem a capacidade de discernir a mais justa forma de descarregarem a sua ira e, se necessário, confiassem mais nas criaturas que espelham o Criador do que nas vozes que envenenam a mente e as decisões. Se assim fosse, decerto poderíamos dormir em paz e mais descansados...

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Nunca como agora, em tempos de ignorância e de arrogância, fez tanta falta a humildade. Só através dela temos a certeza de que sabemos muito pouco ou mesmo nada. Só ela nos garante a capacidade de ver que todos cometemos erros ao longo da vida.
Perante este vendaval "purificador" que deseja derrubar estátuas, obras de arte, filmes, livros, mas sobretudo pessoas, porque em determinado momento do seu passado se revelaram menos "puros", cometeram erros ou foram apenas homens do seu tempo, tenho-me lembrado muito da narrativa do encontro de Cristo com a mulher adúltera, que tantos queriam apedrejar. Não desculpabilizando os seus actos menos correctos, mas olhando o interior de cada um dos membros da multidão em fúria, autorizou: "Quem não tiver pecados, atire a primeira pedra."
A mesma pergunta gostaria de fazer a quantos, sob a capa do anonimato, têm andado a subverter causas justas (ou menos justas), pensando-se perfeitos e, assentes nessa perfeição, promovendo a discórdia e dando armas àqueles que, do "outro lado", não são melhores do que eles.
Há figuras paradoxais que mereceram homenagem pública? Pois há. Ainda bem. Mal vai ao ser humano quando não se defronta com os seus paradoxos, com o paradoxo da existência, lutando contra os seus demónios e tornando-se cada dia um pouco melhor, mesmo que de vez em quando dê grandes quedas e vá com a face à lama (ou tenha mesmo de regressar ao início do percurso). Seres "monolíticos", "sem" paradoxos - quase sempre muito louvados pela sua "coerência" -, são em geral fanáticos ou sectários, achando-se "modelos", quando não passam de moldes que desejam ver-se reproduzidos no outro, retirando-lhes qualquer ponta de livre arbítrio. Nunca hesitam, nunca repensam, nunca se arrependem, nunca têm remorsos, nunca emendam nada, nunca voltam atrás. A humanidade humilde é, todavia, outra coisa. Um caminho ao contrário disto tudo. E esse caminho faz-se a andar, como escreveu Antonio Machado.
"Que não tiver pecados, atire a primeira pedra". Derrube o que quiser e como quiser. Mas não esqueça que, antes disso tudo, se derrubou a si próprio.

RUY VENTURA
(in "O Sesimbrense", Julho de 2020)
INFÂNCIA - UM BEM EM VIAS DE EXTINÇÃO


            A infância é um bem em vias de extinção. Não me refiro à natalidade diminuída que vai transformando Portugal num dos países mais envelhecidos do mundo. Falo na deliberada, continuada e perniciosa erosão e destruição do que há de mais verdadeiro nos primeiros anos de vida de um ser humano. Se “o melhor do mundo são as crianças”, como escreveu Pessoa, atribuindo-lhes como cerne a liberdade que deu título ao seu poema, então temos de estar muito atentos ao veneno doce, melífluo, suave, brilhante, colorido e atraente com que a infância está a ser corroída.
            Nem sempre pensei assim. Caí da minha ingenuidade quando um dia, numa das minhas aulas, uma criança me respondeu que queria ser médica porque assim poderia enriquecer mais depressa. Fiquei estupefacto! Comecei a dirigir então outra atenção ao que estava à minha volta. As escolas são excelentes observatórios… Abri os olhos e vi o que não queria ver.
            Desde aí, tenho descoberto imensas famílias que massacram os seus filhos, obrigando-os a alcançarem objectivos pré-estabelecidos e martelando-lhes a ideologia do sucesso a todo o custo desde tenra idade. Exercem inimagináveis pressões; excluem da vida familiar qualquer “pedagogia do fracasso”; atacam como feras todos quantos ponham em causa essa via que transforma os seres humanos em máquinas de arrasto. No reverso da medalha, venho encontrando pais e mães desinteressados do sucesso educativo dos seus filhos, mas focados em manter os miúdos em equipas juvenis e infantis de futebol para que, talvez um dia, venham a ser como aquele madeirense que "ganha milhões" e "até ajuda a família". E quem diz a participação em equipas de futebol, diz a entrada em programas de TV, diz a reiterada participação em castings, diz a valorização da actividade youtuber por mais degradante que seja, diz o apoio a outras práticas degradantes que me dispenso de arrolar… O sucesso dos filhos é visto como o seu sucesso – e ai de quem se meta no caminho com ideias contrárias ou pondo pedrinhas na engrenagem. Nem vos conto…
            A resposta da miúda também me obrigou a estar atento a outras manifestações de envenenamento, só na aparência pouco nefastas ou laterais. Passei a sentir náuseas, por exemplo, ao verificar a sexualização precoce a que se sujeitam tantos miúdos e, sobretudo, miúdas, com consequências que se adivinham. Deixei de achar graça às pessoas que mantêm os miúdos calados pondo-os à frente de um ecrã, seja ele de televisão, computador ou telemóvel. Não sabem ainda falar nem andar, mas já fixam os olhos no rectângulo, procuram canais e, sobretudo, passam o dedo pelo ecrã, na missa, no café, no restaurante, no jardim, em todo o lado, tornando-se insensíveis a qualquer estímulo externo, mas estimulando a baba dos familiares, enternecidos com tão precoces habilidades dos pimpolhos. Mesmo quando alguém ousa avisar essas famílias e esses progenitores do mal que estão a causar aos seus miúdos, olham para o portador da mensagem como se fosse um extraterrestre ou alguém vindo do passado numa máquina do tempo, uma espécie de fóssil sem qualquer valor. Encolhem os ombros, por vezes resmungam – e continuam pelo mesmo caminho rente ao abismo.
            Levei uma pancada ao ouvir a resposta daquela miúda simpática, mas envenenada (por quem?). Passei a topar e a entender de outro modo as doces trapaças com que as nossas crianças são envenenadas todos os dias, a toda a hora, por muita e muita gente. A infância é, por isso, um bem em vias de extinção. O que se passa não é inevitável. É todavia calculado, sub-repticiamente inoculado, como quase tudo o que de venenoso nos bate à porta neste tempo de chumbo onde nos foi dado viver. Somos seduzidos como se andássemos permanentemente por corredores de hipermercado. A promoção constante e avassaladora de contra-valores como o poder, a vaidade, o orgulho, a riqueza, o sucesso, o consumo, o individualismo, a violência ou o impudor vai produzindo um autismo fabricado com consequências perigosíssimas para a dignidade humana, erodindo ou quebrando sentimentos como a empatia, a compaixão, o diálogo, o sentido do dever ou o altruísmo. Tudo isto está a criar catástrofes pessoais e sociais inimagináveis, mas discretas, violências nunca vistas, mas "simpáticas", comportamentos alienados, mas manipuláveis, frustrações assustadoras, mas boas para usar em proveito alheio.
            O que se vai vendo pelas redes sociais é eloquente do estado mental a que chegámos: “Ninguém sabe que coisa quer. / Ninguém conhece que alma tem. / Nem o que é mal nem o que é bem” (Pessoa). Um dos exemplos é o que se está a passar numa boa parte das nossas escolas e das nossas famílias. A promoção da igualdade de oportunidades vai-se impondo como miragem, pois não é compatível com uma estratégia baseada no controlo tecnológico de professores, pais e crianças e com a exclusão do conhecimento, do pensamento e da imaginação da vida dos estabelecimentos de ensino. Há quem aplauda, como é costume e expectável. Há quem achincalhe os que pensam pela sua cabeça ou os mais fracos. Há quem use tudo isto para trepar… Quem não se verga ou não pode ter os meios que os outros têm, fica de fora; é posto à margem, como traste sem préstimo. O plano foi montado há muito, sabe o demo onde e por quem. Aproveitou apenas, agora, a embalagem covidiana como uma “janela de oportunidades”, acelerando algo que há muito estava em marcha.
            O envenenamento começa na mais tenra idade, praticado por aqueles que deveriam educar as nossas crianças. A trapaça é diversa e atinge todos. No fundo, quem provoca directamente tal erosão nas crianças nem sequer é culpado, pois não passa também de uma incauta vítima, de uma espécie de títere em mãos desconhecidas. Não é preciso sermos muito inteligentes para descobrirmos quem ganha com isto. São em geral pessoas para quem não há valores sociais, morais ou éticos estáveis além do dinheiro, do poder, do sucesso e do prazer. Quem promove esta "doutrina" deseja dominar e inchar como peru recheado com notas de banco. No fundo, julga-se membro de uma "espécie superior", com direito a espezinhar o seu semelhante. Rostos sem face visível, vêem o "outro" apenas como um "isso", como uma ferramenta, um degrau na sua escadaria egoísta - seja o "outro" uma criança, um adolescente, um adulto ou um velho. Se serve, manipula-se com as técnicas mais ardilosas. Se não serve, lixo! São eles quem ganha com esta extinção da infância e do bom que ela traz ao equilíbrio vital, enquanto semente de liberdade, de curiosidade e de imaginação.
            Há dias, o Papa Francisco lembrou-nos de que nunca se sai igual de uma crise como aquela que estamos a viver e que é necessária a participação de toda a família humana para que possamos sair mais unidos desta tempestade longa e perigosa. Podemos sair dela “melhores ou piores”, mas não sairemos “iguais”, afirmou. De uma vez por todas, temos de ter “a coragem de mudar”. Mas só lá chegaremos, se recusarmos com veemência os venenos mais sedutores e tivermos a coragem de devolver a infância às crianças, olhando o mundo como elas.

RUY VENTURA

(investigador e escritor)

Publicado na edição on-line do jornal "Público" (3/6/2020)