Nicolau Saião
(no jornal caboverdiano O Liberal, 3/11/2005)
FIGURAS PORTALEGRENSES – RUY VENTURA
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No princípio dos anos 90 – era eu funcionário na Biblioteca Municipal de Portalegre – , certa manhã fui procurado por um jovem dos seus 18 anos que a breve trecho da conversa percebi não ser pessoa vulgar. Vinha informar-se sobre etnografia da região e, pouco depois, a conversa orientou-se para os lados da poesia. Palavra puxou palavra e a dado passo, algo timidamente, o meu interlocutor disse-me que também fazia versos e que, interessado nas artes, até já vira quadros meus numa exposição havida pouco tempo atrás na galeria local.
Lá tratámos dos assuntos que o ocupavam e, passados uns dias, trouxe-me um caderninho com poemas escritos à mão que considerei atentamente.
Estebelecera-se um contacto que persistiu através dos anos e se cimentou depois de eu ter tomado conta da função de responsável directo no Centro de Estudos José Régio.
Estudante de excepção – trabalhador e muito informado, faria a seguir uma licenciatura e um mestrado em estudos literários – Ruy Ventura (nas.1973) continuou a escrever poemas que, em 1997, mereceram o Prémio Revelação/Poesia da Associação Portuguesa de Escritores pelo seu livro “Arquitectura do Silêncio”.
Hoje, o meu amigo e confrade é uma das vozes representativas da novíssima poesia portuguesa. Tal tem sido reconhecido por personalidades tão diferentes como Agostinho da Silva, J.O.Travanca-Rego, Amadeu Carvalho Homem, Marcelo Rebelo de Sousa ou, no estrangeiro, Antonio Sáez Delgado, Floriano Martins ou Gérard Calandre. Autor de outros livros de poemas, de traduções e de ensaios, RV é um companheiro esclarecido, talentoso e vertical – um homem de antes quebrar que torcer, como se diz em português vernáculo.
Foi ele que escreveu o texto que vai a seguir, celebrando nostalgicamente a sua vila de Carreiras – e assim inicio como prometera a cíclica apresentação de figuras notáveis da minha região alentejana.
“As ruas das Carreiras onde eu nasci (após ter visto a luz em Portalegre e sangue novo em Lisboa) já não existem. São outros os nomes, outras as pedras – que teimam em não deixar esquecer a calçada antiga -, outras as casas. Só o horizonte não mudou ainda: a mesma serra, o mesmo azul longínquo, os mesmos sobreiros rompendo por entre as lajes, a escola, rompendo a folhagem das acácias e das amoreiras.
Entre o número oito da rua da Fonte Nova e o número cinco da Calçadinha, pouco resta de há vinte e cinco anos.
A fonte perdeu alguns dos seus azulejos e deixou de ter malvariscos pelo São João.
A dona Maria José já não se preocupa com as suas dálias, algures entre as minhas duas tangerineiras. O ti’ João Narciso já não abre a sua meia-porta vermelha, nem a ti’ Bernarda fica comigo na altura das azeitonas.
O barro desapareceu hoje dos caminhos (assim como os escaravelhos, e os burros escorregando até em frente às ruínas da Casa da Carreirinha).
Do Chão da Amoreira, como eu ainda o conheci, ficou apenas uma nesga de terra apertada entre duas casas. Os castanheiros, os abrunheiros, o muro (quase segurando a oliveira), situam-se no mesmo lugar que hoje ocupa a casa da avó - amarela, com barras brancas, um botaréu cheio de craveiros, uma roseira fazendo esquina frente ao canto do lume, do outro lado da rua, entre as flores dos rapazinhos e a parede de pedra solta, há muito tempo esbarrondada.
O Ribeirinho é hoje só nome de rua. Já ninguém lava nas suas águas, empresadas junto de uma figueira velha. Desapareceu sob o alcatrão e a sarrisca, para dar lugar a uma estrada larga. Continuo, no entanto, a regressar a este espaço, como se regressasse chamado pela voz dos sinos, que tanto embalam os mortos quanto repicam carreirense novo ou hora de procissão. O automóvel (como há uns anos a camioneta) continua a dar a mesma volta, trezentos e sessenta graus em torno da distância, feita entre algum riso e toda a melancolia”.
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