FERNANDO GUIMARÃES

A palavra íntima
Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 956, de 23 de Maio a 5 de Junho de 2007: 22 e 23.


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A procura da palavra mínima parece ser, principalmente, um encontro com a imagem. Talvez não seja por acaso que um novo livro de Ruy Ventura, saído em Espanha numa edição bilingue, se intitula El Lugar, La Imagen. Trata-se de um conjunto de poemas de qualidade invulgar, revelando uma poesia com amplo sentido inventivo associado a um amadurecimento verbal que o é de uma experiência poética. No entanto, a sua obra é muito recente, porquanto o seu primeiro livro, Arquitectura do Silêncio, saiu em 2000, tendo obtido o Prémio de Revelação de poesia da APE. Depois, publicou em 2003 Sete Capítulos do Mundo e Assim se deixa uma Casa. Em 2004 aparece Um Pouco Mais sobre a Cidade.

Consideremos agora este novo livro que apresenta os poemas em português e, paralelamente, a sua tradução por António Sáez Delgado. Eis o primeiro poema que, aliás, revela de certo modo o tom dos poemas seguintes: “surgiu, primeiro, como um título breve, / acompanhando a superfície da montanha – / a cor da terra, dentro do sangue, / o suor do nascimento. // ficou, depois, entre faixas e melodias, / sobre o lençol (de água?) / onde permanecia esse rosto / – o grito que revelou o mundo. // longe, o forno. a palavra / acalentava o corpo, sobre as ervas, / debaixo de um castanheiro. // desenhou então nalguns grãos de trigo / a luz que restava sobre o telhado. // a mão afaga o cabelo. / a face procura a face. / a mão procura o barro. recria, / transcreve para sul este poema. // a expressão ilumina as videiras.
As imagens surgem dentro de um campo expressivo que se diria ser referencial: a montanha, a terra, o sangue, a água, o forno, o castanheiro, etc. Mas o seu sentido alarga-se, diversifica-se. Aproxima-se cada vez mais de uma área simbólica, como é o caso, por exemplo, da palavra faixas que nos conduz a uma revelação – a uma revelação simbólica, note-se desde já – que se centra no nascimento de uma criança, o que o contexto do poema ajuda a certificar (“dentro do sangue”, “o suor do nascimento”), para que, mais adiante, este sentido se adense com as imagens da casa, do campo e, finalmente, do próprio poema enquanto tal. A referência imagética não faz com que a palavra se esgote no seu sentido mais óbvio.
Um caso em que a referencialidade parece ter sido assumida plenamente é aquele em que o poeta se refere à fotografia. “Fotografo tudo”, diz-nos num poema intitulado “Registo”. Mas, ao falar de um corpo, logo tudo se desfoca ou, melhor, encontra ou acaba por surpreender outros ângulos de visão. O corpo torna-se “um algarismo na pedra / – sinais resguardando a casa”. Surge um lugar habitável, como se as imagens procurassem (e assim termina a poesia) o “interior / do mundo”.
Todos estes poemas de Ruy Ventura revelam uma segurança que encontra, no seu rigor, a possibilidade das palavras – afinal, as palavras íntimas – atingirem aqueles múltiplos sentidos que lhes garantam um poder de revelação.

* Gastão Cruz, OUTRO NOME. ESCASSEZ. AS AVES, ed. Assírio & Alvim, 96 pp., 10 euros. * Gastão Cruz – A Moeda do Tempo, ed. Assírio & Alvim, 80 pp., 10 euros * Ruy Ventura, EL LUGAR, LA IMAGEN, Editora Regional de Extremadura (Mérida), 96 pp.