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ARQUITECTURA DO SILÊNCIO

O meu primeiro livro, Arquitectura do Silêncio, editado em 2000 pela Difel (e galardoado por Fiama Hasse Pais Brandão, Urbano Tavares Rodrigues e Fernando Pinto do Amaral com o Prémio Revelação de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores) foi sujeito a um processo de reescrita que agora se apresenta (à espera de edição em papel). Está disponível aqui ou aqui.
RUY VENTURA, A RECRIAÇÃO
DE UM MUNDO PECULIAR

José Vieira

(Fanal, suplemento cultural de O Distrito de Portalegre, nº 11, 23 de Março de 2001: 3.)


A poética de Ruy Ventura é uma poética de errâncias ou de desdobramentos contínuos, embora uma ideia de “casa”, “porta”, “interior da casa” pareça anula a outra ideia. Quer dizer, há como que uma espécie de abrangência: o querer concentrar num só lugar todos os lugares: “(…) toda a terra repetida no interior da sombra / (…) / toda a terra concentrada na mão (…)”.
A porta é, por outro lado, uma espécie de limite de sombra, um “limite diáfano”, parafraseando Sebastião Alba, que interroga e inquieta. Além de errância concentrada, a poética de Ruy Ventura parece-me também uma poética que deseja os limites, o para lá dos limites. Oxalá seja uma poética ida às últimas consequências: vida e obra. A coerência e o sentido ressoam aí. Valerá a pena? Um preço demasiado alto.
O primeiro poema propõe a “porta” e apresenta-se como a matéria disseminada por todas as linhas do mapa. Móvel, aliás. Porta que adivinha outras portas, outras dobras, outros desenvolvimentos, outras significações, outros lugares. É assim uma ideia que podia servir de epígrafe, lembrando-nos do verso de William Blake: “entre o conhecido e o desconhecido, estão as portas”. Essa matéria que compõe a porta é a substância da terra: a árvore – “entre a porta e a mão (…) / vai a distância (…) / esse pedaço de árvore (…)”. A porta: “árvore disseminada”, como diz Carlos de Oliveira num verso.
A origem do mundo, nesta poética, é ditada pela matéria: a árvore – “até os ramos das árvores baterão as palmas” (Livro de Isaías) –, a porta. É essa matéria, esse pretexto que unifica toda esta poética, penso.
A “porta” está referida em vários momentos: pp. 17, 39, 52, 87. A porta abre o interior da casa. A casa é o organismo.
A granada sobrecarregada de significados, onde tudo principia, acontece.
É o lugar das dobras, dos desenvolvimentos. E a “árvore”. A árvore é o exterior. Mas dizer a “porta” é dizer o exterior, é dizer a árvore. É propor talvez uma unificação.
A “porta”, a “casa”, a “árvore”. A “árvore” aparece desde “alicerces” móveis nas pp. 17, 40, 42, 49, 51, 59. Percorre todo o livro.
A floresta disseminada: quantas portas?, quantas casas?, quantos horizontes vistos?, quantas moradas?
Há muitas espécies arbóreas. Isso importa: o nome, os nomes – laranjeira, carvalhos, cerejeira, mimosa, pinheiros, macieira.
É importante encostar nome à coisa, e dar o nome à “casa”, ao som forte e sóbrio das pancadas no soalho limpo, na porta. Esse timbre depende também do nome, do grão das matérias. O sedimento que dá carácter à presença no “meio da casa”. Presença móvel ou volante, aliás.
O processo desta poética propõe outras figurações (“estátuas da noite”?), outros mundos. Afinal de contas o desconhecido ou o invisível sempre tão presente, mas tão inapreensível.
De muitos pontos de vista nos poderíamos aproximar desta poesia. Expus o que mais me chamou a atenção, o que considerei como que um punctum saliens, ou o determinante ou pormenor, por assim dizer, decisivo. O meu ponto de vista, afinal de contas.
Mas o livro de Ruy Ventura [Arquitectura do Silêncio] propõe muitos ângulos (“os ângulos das portas estão sobrecarregados de perigosas significações”, poeta irlandês). Eu vi por um deles e fiz a minha aproximação, o que vi ou percebi: a poética das coisas, a estrutura delas, ou a mudez que lhes estrutura o carácter.
José do Carmo Francisco

Prefácio a Arquitectura do Silêncio, Miraflores, Difel, 2000: 9 - 14.



Uma das leituras possíveis deste título – Arquitectura do Silêncio – aponta para que estas páginas sejam também uma “construção da morte”. A morte surge aqui no sentido do desaparecimento visual (a casa, o avô, a infância) mas sempre com a porta aberta à recuperação possível através da memória.
Ruy Ventura organiza o seu livro a partir da casa:

toca a mão na madeira (direi porta?)
como se tocasse toda a substância da casa
o seu vento as suas vozes os seus cheiros
os seus objectos a totalidade do espaço
que se adivinha para além das janelas e das paredes


Não se trata de uma casa imóvel e vazia mas de uma casa em transformação:

por detrás do quotidiano
a casa transforma-se é como se reunisse
em si um corpo não somente corpo
mas espaço ocasionalmente
encoberto sob as formas e constelações da noite


O poeta viaja “da montanha até ao mar levando no bolso pedaços de palavras” porque a viagem é (entre outras coisas) uma forma de interrogar o mundo:

tudo o que temos é como o princípio de um cometa
entre as frases e o sabor das mãos
é como chuva fecundando o reflexo das nuvens
fruto que a sede alimenta
entre nossos corpos e a momentânea distância
de uma estrela à outra


O poeta viaja muitas vezes num comboio e pode, por isso, reclamar:

não nos tirem daqui esta vidraça
é comboio para um país de nevoeiros
tarde na sombra de uma vírgula
ou planeta


Noutro poema é a estrada que precipita a reflexão:

a estrada ignora a velocidade do automóvel
tal como a sombra parece ignorar a própria árvore
cada viagem por mais curta que seja
é muito mais que o simples retrato do vento


Se o silêncio é a imagem projectada da morte, a viagem é a imagem projectada da vida porque a rapidez é uma vitória sobre o tempo. Vejamos o poema a partir da música de Schubert ouvida entre Lisboa e Portalegre:

o automóvel avança
e ao volante as notas são porto de embarque para as palavras

ave gratia plena

entre os sobreiros e a erva a despontar junto das cercas
a manhã constrói o seu itinerário


A viagem pode ter outras formas além da geografia – pode ser uma viagem ao passado como quando o poeta recorda Agostinho da Silva no Jardim do Príncipe Real:

não vale a pena transformar em símbolos
tudo o que um rosto tem de veio de água
a experiência conta-nos que o fogo
está muito longe de mapas
e infinitos


Duas “terras pequenas” – Coruche e Marvão – são pontos dignos de registo da viagem do poeta, são o intervalo entre o Campo e a Cidade:

nas terras pequenas o tempo transforma-se
o tempo faz-se verso como luva de pelica
e acaricia-nos a cara com o perfume das cores que se movimentam
no reino vegetal


Tal como os primeiros poetas, que escolhiam o herói e o vinham cantar de terra em terra, Ruy Ventura escolheu os seus heróis e motivos para cantar. As casas que perdeu, o olhar do avô, os seus destroços pessoais. Daí não ser estranho o uso frequente de palavras como “navio”, “oceano” e “naufrágio”. Todos nascemos na água e morremos com dezassete dias de sede. A água do poema é a própria vida com outro nome. O poema é o salvado, aquilo que escapou do desastre, uma viagem para a qual nenhuma companhia de seguros se atreve a emitir uma apólice. O poeta canta ao que restou de um tempo, de “um caminho percorrido”, de uma memória. Mas cantar é rezar duas vezes e, neste caso de Ruy Ventura, a oração vem religar dois mundos separados pelo tempo – a infância e a idade adulta. Não há paraísos perdidos mas há memórias felizes resgatadas no poema, repetidas, recuperadas. O poema liga de novo aquilo que os dias acumulados ajudaram a separar.
O poeta, todo o poeta, quer sempre unir, juntar, ligar. A vida prática é, porém, uma constante e permanente fonte de rupturas. O poema surge, para Ruy Ventura, como uma teimosia, uma recusa da ordem, uma revolta perante o inevitável. O poeta constrói a sua escrita numa carpintaria certeira, solene, exacta. O discurso é sempre contido, o verso não se expande, a ideia não se amplia em desmesura. Tudo na escrita deste jovem poeta respira a sabedoria acumulada em muitos anos de leituras mas, ao mesmo tempo, uma voz própria, de contornos definidos e modulações felizes. Há um timbre poético que não se repete, não copia nem secunda.
Vejamos, para terminar, um excerto do poema-memória do avô:

quanto lhe custariam a idade e o próprio sorriso
(tão longínquo quanto os olhares dentro do retrato
a caixa de pedreiro distante na escuridão como uma navalha perdida dentro do bolso)?

entre a cama e a lembrança das pequenas coisas
apenas visíveis na sombra dalgum olhar molhado
quanto lhe custariam
o miar do gato a adormecer na lareira
as castanhas comidas como luzes
a bicicleta substantivo próprio à espera de um lugar
dentro da geografia?


A figura (o pretexto) do avô surge assim como tripla referência – “casa, viagem e memória” ao mesmo tempo. É uma cartografia pessoal que o poeta transforma em poema. Com a secreta intenção de que não venha o esquecimento a destruir aquilo que o laborioso esforço do poema conseguiu juntar.
O SILÊNCIO COMO MEMÓRIA E CONHECIMENTO
Manuel G. Simões(Fanal, suplemento cultural de O Distrito de Portalegre, nº 15, de 27 de Julho de 2001: 3.)


Uma leitura do livro de Ruy Ventura (Prémio Revelação de poesia APE/IPLB 1997) passa inevitavelmente pelo título (“Arquitectura do Silêncio”), primeiro signo descodificador, e pelas duas epígrafes inseridas no exórdio dos dois capítulos: “Nós não somos. A casa é que nos habita”, de Fernando Guerreiro; e “Nada é, tudo coexiste”, de Bernardo Soares. E se “arquitectura” é a arte de edificar, o sintagma global concentra-se e projecta-se no segundo elemento do título, balizado como é pela contraposição exibida nas duas epígrafes. Isto pressupõe as relações do ser com as coisas (mundo) num processo de construção epistemológico que assiste ao fazer e desfazer de uma atmosfera / paisagem, colocando em primeiro lugar a casa, às vezes representada pela árvore em que os ramos funcionam como janelas de um espaço que se transforma na “memória do lugar” e em que os alicerces se ensaiam “dentro da linguagem”. A geometria da casa surge então quer como espaço interior (de silêncio), com efémeras ligações ou prolongamento com o espaço externo, quer como representação memorial de contornos esbatidos pelo tempo, pre(s)-sentidos do exterior. Em ambas as situações é a janela / vidraça (significantes com alto índice de frequência) o elemento que permite a intercomunicação de dois mundos, fronteira que “define a imagem entre as linhas e a textura das emoções” (p. 52), susceptível por isso de fornecer uma visão opaca (“uma vidraça / corpo volátil na insondável / textura do / abismo”, p. 55) ou ofuscada pela voragem do tempo que conduz à construção do silêncio: “a janela transforma o próprio espaço / acumula dentro de sua inquietação os instrumentos que vão transformando / a luz e a paisagem” (p. 51).
Na invenção verbal, a Natura passa de ambiente a “personagem” com que se confronta o sujeito poético na tentativa de sondar o enigma da viagem ou do fluir existencial, tornado obsessivo até pela gramática da intertextualidade, com a reutilização frequentíssima de segmentos textuais, dispostos embora noutra configuração prosódica. Mas ao mesmo tempo a voz poetante evidencia a sua função obsidente em torno do conhecimento, seguindo um processo gnoseológico só relativizado pela possibilidade de “erro” dos sentidos ou dos sentimentos.
Neste processo o sujeito desencadeia um mecanismo dialógico, interpelando, por exemplo, outra memória da casa (“recordarás aqui a máquina / de escrever”, p. 29; “vê como estremecem as flores”, p. 33; “não nos tirem daqui esta vidraça”, p. 53), embora tudo pareça apontar para um artifício retórico, isto é, de âmbito monologante. E o mesmo acontece quando o discurso invoca e evoca a memória como construção do silêncio em que o sujeito dual (“calemo-nos calemo-nos os dois”, pp. 77, 78 e 79) não obstante a iteração intratextual, tende a manifestar-se no sentido da opacidade: “somos / os dois apenas neblina / ou chuva nos limites do abismo”, p. 75).
O memorialismo que, ao fim e ao cabo, assoma à superfície do texto, indica como na construção está implícita uma reconstrução, ou seja, que a invenção é um lembrar de novo, um reflectir e um reflectir-se na memória; e que sob o véu problemático da invenção subjectiva se oculta sempre uma história real e objectiva (“memória do avô”, por exemplo, pp. 89-91) em relação à qual “as perguntas subsistem”: os rastos e os restos de antigas imagens.
Catarina Nunes de Almeida

Imagens da cidade na novíssima poesia portuguesa
Jovens Ensaístas Lêem Jovens Poetas. (Coordenação de Pedro Eiras), Porto, Deriva Editores, 2008: 58 – 59.


[…]
Quando cultiva a matéria ficcional que a metrópole lhe oferece, o poeta propõe quase sempre cidades dentro da cidade. O resultado é a aparição de cenários híbridos, talhados às luz de um certo realismo mítico. Interessante será explorar o facto de que na nova poesia portuguesa, ocasionalmente, a natureza ainda invada a c idade. O tema não é frequentado de modo significativo, ao ponto de podermos considerar o típico binómio cidade/campo tantas vezes estudado – não encontraremos por certo a giga de frutos, à cabeça de uma pobre vendedeira, que cruza o bairro moderno – porém, existem outros pequenos sinais, que graciosamente anunciam o natural, e que aliam uma vez mais o campo a uma dimensão libertadora. Essa ponte é projectada, com grande tenacidade, em alguns momentos de Arquitectura do Silêncio, de Ruy Ventura:

3.
lá dentro depois do portão fechado
tudo lembra a imprevista pontuação dos astros
cada
minuto
vale apenas como instrumento
secreta passagem para outros nomes
uma maçã comida pela madrugada
o ponteiro do relógio esperando encontrar nas cores
o fumo e as formas da natureza

4.
entre os ramos apenas a paisagem se prolonga
como se ninguém visse
tudo ou quase tudo vai guardando a identidade das coisas
geometria que sob as lâmpadas e o passar dos autocarros
vai desenhando a luminosidade
dos horizontes

[…]

No pequeno quintal, depois do portão fechado, um microcosmo edénico principia. Salvo por uma paz verde, o que existia no mundo, para o sujeito, acabou ali, como se murmurasse “santuário”, e a cidade se fechasse atrás de si. […]