r u y  v e n t u r a

translation: b r i a n  s t r a n g
(in Alice Blue Revue, nº. 6
I S S N 1 5 5 9 - 6 5 6 7)





How to Leave a House








house—earth



a) the arch chooses whomever seeks
the house
descends until it is very close
to the earth



b) two sacks of coal dust the carpenter’s shop
on the corner
no one seems to live here
there is plenty of time



c) god or child? I encounter
in the stone
above all the hand and the heat
of whomever breathes



d) two or three tiles lightly broken
the instant
a wall encircling
the garden



e) the rain transports what is left
of the city
the bus climbing until it reaches
the door



f) suddenly two children cry
it is definitely
on the other side
of the reeds







door—place



tonight
it opens
over the road



the door swings to the north and to the south



too far
the room
where a city
inside a river
(in a vase?)
rises to the middle of the mirror
ignoring the books



dividing itself as if a street



the only worthwhile way to save space
—an acacia spreading
in



its radiance










books—apartment



the books
shield the living room from
the wind
that at mid–afternoon
blows over the whole valley



the eyes close with persistence
and only the voice—at sixteen kilometers—
can wake up
everything
in the apartment



over the bed
the night air
overtakes the blinds—almost shut



an automobile
starts on
the road
after hitting the door
(there was no parking)



two or three presences
might come from the pine trees
cut recently
for another field



an airplane tries
to fly over these hours
in the direction of the valley



everything unites around the music from the garden
from the pianos
—from the left side of the veranda
somewhere between the beach
and the tiny



garden









building—birth



right before
the best place to cross to the other side
of the building was not certain—
a water tank, maybe an acacia
two or three balconies
on the last mornings of december



someone reduces the foundation of the house
—I remember the garden olive tree by olive tree
the cement stairs the arm
holding on to
melancholy



I decided to save the envelope in the last dresser drawer:
I put our names among the objects whose significance absorbs us
it is difficult to determine the resonances
when at ten in the morning we abandon
a city that grows



I never really had a garden—
too close or too far
at which we could arrive,
the image grows every fifteen days
though the trips would be just
the beginning of a birth



the door opens as a line on the horizon
between two rainy nights
everything is in everything we
belong to everything







ache—equilibrium

(co-translated with Elisa Brasil)



this is how one leaves a house
(the house)
the forks the cups the plates the bed
the fire—firewood in the corner with the fireplace—
the pitcher protecting the distance between the fountain
and happiness,
the pocketknife hidden for more than thirty years,
the stove in the center of the kitchen
right in front of the door window



two photographs hanging on the wall
remembered the ache and the equilibrium,
the strangeness of having saved
various gusts of wind and of mystery



this was not the place of birth



just a pause



a window
shut so long ago





RUY VENTURA (b. 1973, Portalegre, Portugal) is a teacher near Lisbon. He has published in poetry, Architecture of Silence (Lisbon, 2000—Revelation Prize of the Association of Portuguese Writers), seven capitals of the world (Lisbon, 2003), How to Leave a House (Coimbra, 2003—Portuguese and Castilian edition), A Little More On the City (Villanueva de la Serena, Spain 2004—Portuguese and Castilian edition) and The Place, The Image (also a bilingual edition). He has translated various Spanish, French and Flemish poets into Portuguese, has written essays on contemporary Portuguese poetry, traditional poetry and toponymy and has contributed to various Portuguese, Spanish and Brazilian magazines. His blog can be visited at alicerces1.blogspot.com.


BRIAN STRANG, co-editor of 26: A Journal of Poetry and Poetics, lives in Oakland and teaches English composition at San Francisco State University and Merritt College. He is the author of Incretion (Sputyen Duyvil) and machinations (a free Duration ebook) among others. i n v i s i b i l i t y, a special edition with drawings by Basil King, is forthcoming from Spuyten Duyvil. Recent poem/paintings can be seen at his site, Sorry Nature. His poem/paintings will be opening at Canessa Park Gallery in San Francisco on June 3rd.



Fonte: http://www.alicebluereview.org/six/six.html
Consulta: 29/6/2010
Ruy Ventura
(translated by Brian Strang)


[ Word for / word, a journal of new writing, issue #12: summer 2007 ]



from
How To Leave a House







stone—world
(for Palácios da Silva)



the stone accompanies
the shape of the world

the image grows, accompanies
all the city
and, some time later,
a stone is born
—a face,
a voice lost for so many years

the night keeps:
everything dies
above all the secret book
(the skin opens its pores)
a vein
the breathing, in the interior
of the stone
a pillar holds up the building

it disappears

the house remains on its feet—
a statue of sand
in a winter garden
the street is, at this moment, another
the world is woven
in the collision of another city

that grows






plan—photograph



I design a plan,
encounter spaces that no hand enlarged
or demolished
they divided the building at the top
so it would be easier to arrive
at the firmament
—an opening in the foliage
the design of a window
some voices singing

should I photograph everything?
the light is not at the desired intensity

for the first time
the stone is born again.
I hide your body in the vestiges of
the man
whose name disappears

I descend to the place where the earth
separates

the water corrects everything







road—forgetting



a single loquat tree stood
where you are now sitting—
this is the end of cities,
we change rooms but are not able to
change the house

the key placed on top of the table
the bread placed on the kitchen bench, the shirt on the shoulders of
the chair—the breathing
small number or perplexity

this afternoon—a ship
glass door which we dim little by little
a right handed thumb
like
a road descending to the river

special equilibrium
or storm—framed profile or

forgetting






face—image



the door disappeared—with the night
the image remained in the middle of the house
and the light
rises
so we can all see
its face

we sit
on the wall
resting the morning
or the shadow
in search of a photograph

on the return road
the sidewalk became
a labrynth
a painted tile

and inside of its design
a face

our own
image




Fonte: http://www.wordforword.info/vol12/Ventura.htm
Consulta: 29/6/2010
TRADUZIR UM POEMA
É ESCREVER UM POEMA NOVO?


Posiciono-me perante a tradução de poesia na qualidade de leitor e nunca como tradutor profissional que viaja permanentemente entre duas línguas. Interessam-me sobretudo as emoções e as experiências que recebo de uma construção poética. Há alguns anos que venho vivendo a comoção de um viajante que vai chegando a uma infinidade de mundos novos sempre que abre um bom livro de poemas. Hoje como ontem, vou seguindo por um caminho de amor em direcção às palavras – fazendo, quando é necessário, o transporte material para levar ao outro lado da fronteira linguística um pouco de maravilha, de pensamento, de angústia ou de reflexão.

Quando observamos o mundo interior e exterior que rodeia o nosso corpo, quando escrevemos o calor e o encanto, o horror e o desespero que esse mundo cria em nós, quando tentamos transpor para outra língua um poema que nos comoveu, nada mais fazemos do que uma leitura múltipla e irrepetível. Decompomos e recompomos o universo peculiar que nos rodeia, para criar neste mundo onde temos que habitar um pouco de beleza, ainda que estranha, dionisíaca e nocturna, difícil de compreender e de integrar nos alicerces da casa que habitamos.

Traduzir um poema é escrever um poema novo? Não sei responder a esta pergunta. Ninguém saberá talvez responder. É difícil raciocinar quando o objecto sobre o qual nos debruçamos foge de nós como areia entre as mãos.

Vladimir Nabokov, escritor bilingue que, como Fernando Pessoa, conheceu na vida o trabalho cimeiro da leitura – a tradução permanente –, indica num texto seu que somente a tradução literal é genuína, uma vez que apenas ela transmite rigorosamente o significado contextual do original. Desta forma, o leitor que traduz um poema apenas consegue fazê-lo quando procura uma fidelidade crescente que deseja completa. Caminha ao encontro de outra entidade: uma entidade dupla, corporal e verbal, que recebe no seu coração e tenta transmitir ao mundo com a máxima integridade. O tradutor despersonaliza-se. O tradutor sofre uma lenta mutação das suas células, a metamorfose do seu corpo total – ao realizar uma viagem total para que chegue sem mancha ao outro o objecto que guarda nas suas mãos. Para procurar comover o leitor do texto traduzido, como supõe que o poema original terá comovido os seus leitores ou os contemporâneos de sua criação, ou como emocionou o leitor que traduz.

Será isto possível? As dúvidas permanecem no pensamento. Tenho sempre na memória a certeza de que todas as palavras têm cinco sentidos e algumas contêm mesmo o infinito, como refere o Zohar. Quem poderá garantir que uma tradução é fiel ao original? É tão difícil quanto dizer com segurança que a leitura literária de um poema é fiel ao pensamento de quem o escreveu. O verbo poético engana, mente para criar uma verdade em cada leitor, uma verdade provisória e mutável. Noutra língua, o poema original é apenas um simulacro. O corpo pode ter a mesma estrutura, uma pele semelhante, mas os olhos e o cabelo têm já uma cor e um odor diferentes, os órgãos vitais trabalham de forma distinta, a melodia que produz modificou-se de forma inexorável.

Tudo se passa, suponho, como na literatura oral e tradicional, onde um texto original vai criando múltiplas versões, árvores diferentes que crescem da mesma raiz. Não creio que um poema bem traduzido seja um poema novo, separado do original. Tenho a convicção de que é um simulacro, uma representação desejada mas nunca concluída do objecto original.



(Apresentado, em espanhol, no encontro de poesia de Yuste.)

Fonte: http://www.arquivors.com/ruyvent5.htm
Consulta: 29/6/2010
ANOTAÇÕES




O ser humano não consegue suportar a abstracção, porque ela é ou se aproxima do vazio. Do mesmo modo, um hiper-realismo é perigoso, porque se torna na outra face da abstracção total, reduzindo a capacidade de multiplicação de sentidos, inerente a qualquer verdadeira produção artística. Concreto e abstracto, real e irreal são conceitos impossíveis de contornar, difíceis de delimitar e de definir. Seja como for, rejeito qualquer forma artística que limite o enriquecimento do mundo, só edificável na multiplicação infinita de sentidos através da Arte.



*



Tal como defendiam os cubistas, na poesia o importante não é narrar ou descrever o que vemos ou vivemos (a percepção, mesmo ficcionada, é sempre enganadora), mas introduzir, pelas palavras, uma quarta dimensão na realidade – a do pensamento –, seja ela transcendente ou de outra índole. Ao mundo (social, animal, objectual, humano) acrescenta-se outro mundo – que nasce do nosso conhecimento, empírico ou intuitivo, dessa realidade material ou imaterial, do nosso pensamento sobre o universo, da recepção irracional (?) da adesão de outros universos a esse mundo. A expressão – sem a qual nada existe ou se constrói – não se limita a imitar, a representar; exerce uma prospecção infinita sobre o sujeito escrevente, sobre o ambiente que o rodeia, quer exista quer não.



*



Na Arte – logo, na Poesia – a realidade não deve ser representada, mas investigada e apresentada, seja uma realidade tangível/visível/material ou uma realidade intangível/invisível/espiritual. Sobretudo, concretizar o inefável e procurar a “espiritualidade” do mundo concreto. Concretizar o concreto ou espiritualizar o inefável é chover no molhado, empobrecendo a Arte.



*



Uma realidade transcendente pode (e deve) concretizar-se em actos e símbolos mediadores, para favorecer a comunicação, isto é, a comunhão vertical e, de seguida, a horizontal. Não pode (nem deve) submeter-se à imanência, à matéria, à utilidade, ao poder autoritário: desaparece, passando antes pela explosão e/ou pela erosão. Religião, Arte, Poesia, Filosofia podem correr este risco – e correm-no todos os dias. Vale-lhes a heterodoxia dos vencidos...



*



É preciso descalçar os poemas, mesmo que os pés sejam feios. Evite-se no entanto tirar as botas quando a falta de limpeza lançará para o leitor somente um intenso mau cheiro.



*



A poesia é para comer (dizia, tanto quanto me lembro, Natália Correia). Logo, a poesia é um alimento. Nesta refeição espiritual, teremos contudo de comer obrigatoriamente apenas sopa (realismo, naturalismo, imanentismo...), por melhor que seja? E os pratos de peixe e de carne? Quem proclama que só a sopa é comestível e aceitável, quer reduzir os leitores à condição de utentes da “Sopa do Sidónio”, ou seja, da “Sopa dos Pobres”...



*



Cada vez me repugna mais a cedência à erosão no entendimento poético. Já que as pessoas (quem?) não entendem a metáfora nem os símbolos, então temos de dar-lhes coisas “simples”, que de tão “simples” se tornam simplórias... Está a acontecer à poesia o mesmo que já sucedeu ao romance? Banalização?
Um novo paradigma? Duvido. Se for, caminha no mau sentido.



*



Atracção-repulsa sempre que vou a uma livraria e me aproximo das estantes com livros de poesia. Medo do encontro e das suas limitações? Não. Percepção da periferia.



*



Por que me sentirei cada vez mais enojado quando ouço ou leio as palavras “poesia” e “poeta”? Talvez por vê-las emporcalhadas, metidas no balde da grande confusão onde tanta gente (por ingenuidadade, por miopia, por relativismo ou por maldade) não consegue distinguir a merda do estrume. Que fazer? Não sei.



*



Imaginar a partir da realidade e da sua leitura ou construir imagens apenas numa elaboração mental abstracta, desligada? Alguns querem obrigar-nos a escolher... Mas será preciso?



*



Pratico uma arqueologia que me faz enquanto ser no espaço a que pertenço. Nomes, vestígios materiais, sabores, sentimentos – encontro de tudo enquanto escavo o mundo que me rodeia e o microcosmos que sou. Nada me pertence, mas tudo me pertence a partir do momento em que decido desvelar ou exumar o que antes estava escondido, adormecido, esquecido ou, mesmo, morto. Somos nós os agentes da descoberta e/ou da ressurreição possível – porque, como um dia escreveu Fernando Batalha, “a grande aventura é no interior que se desenrola”.



*



Destilaria de milhares de leituras (muitas sem nada a ver com a poesia, outras bem longe dos livros ou da palavra escrita), a aguardente que deito do alambique, frouxa ou forte, é o resultado da fermentação e cozedura de sedimentos acumulados sobre a voz e sobre o pensamento.
Dívidas, tenho muitas – tantas sem saber a quem. Fora e dentro dos livros, sei que nunca conseguirei pagar os empréstimos contraídos voluntária ou involuntariamente.
Nem xamã nem periodista, aborrece-me sempre a monotonia das vias-rápidas e das auto-estradas. Tento caminhar por percursos variados e compósitos. E se gosto de deambular por praças e avenidas, sinto-me melhor quando percorro ruas e travessas, quando atravesso com vagar quelhas e veredas pouco frequentadas.


Fonte:
http://www.triplov.com/poesia/ruy_ventura/2007/anotacoes.htm
(consulta: 28/6/2010)



Raramente uma fotografia tem captado com tal eloquência quanto me caracteriza enquanto pessoa. Esta que apresento nasceu do olhar de Joaquim Cardoso Dias, em Lisboa, a 1 de Junho de 2010.
INSTRUMENTOS EM LISBOA





A apresentação de Instrumentos de Sopro ontem, 1 de Junho, em Lisboa, foi (quanto a mim) muito interessante. Não pelo "pretexto", mas pelo "texto" que fez nascer. Tanto quanto a minha memória alcança, nunca numa sessão nascida de um livro meu se dialogou tanto e tão profundamente sobre a Arte, a Poesia e a Poética.

O pintor e poeta Fernando Aguiar apresentou uma leitura simples, mas atenta, do livro - realçando dois dos seus pilares: a memória e a visualidade.

No que respeita às minhas palavras, fiz questão de realçar que esta colectânea representa destruindo a representação, narra demolindo a narração (como acontece, aliás, noutros livros meus).

Lembrando A Capital, de Eça de Queirós, sublinhei a sua actualidade como crónica do meio literário português do nosso tempo, onde pontificam Romas e mais Romas que vão obrigando tantos Curvelos à desistência. No momento em que vivemos, a vitalidade artística precisa contudo de quem lhes resista e vá persistindo num caminho doloroso e paciente, contra-cultural. Explicando o significado do título Instrumentos de Sopro (expressão de matérias e anti-matérias que insuflam/insuflaram vida na existência), manifestei a minha convicção na existência de dois campeonatos, inconciliáveis, na produção artística contemporânea: de um lado, o campeonato da notoriedade pública; do outro, aquele que é jogado por quantos tentam servir a Arte, humildemente (isto é, ligados à húmus, à fertilidade), sem esperarem prebendas nem passeios pagos.

No seguimento dessas intervenções, estabeleceu-se um período de debate muito participado, no qual intervieram nomeadamente José Carlos Marques (editor do livro), Levi Condinho, Manuel Herculano (da Associação Sebastião da Gama), Joaquim Cardoso Dias e Rui Almeida, para além dos supracitados. Questionou-se a estética contemporânea, sobretudo o seu anacronismo e sua miopia histórica, que todos os dias afirma inventar a roda, quando ela já foi inventada há tantos milénios. Abordou-se ainda a importância da poesia experimental e do seu contributo para o refrescamento da poesia portuguesa - que tanto necessita de ser posta em causa, ou seja, que tanto precisa da incerteza, para não continuar a fazer a tal roda quadrada.



(Como apontamento final, gostaria de agradecer a gentileza da gerência do ginásio Body Plaza, que criou todas as condições para um acontecimento digno. Agradeço ainda ao poeta Joaquim Cardoso Dias a captação de imagens para memória futura.)