EDMAR GUIMARÃES

Sobre Chave de ignição


"[...] Além da riqueza sutil das imagens, chamou-me a atenção a densidade dos poemas, neles não sobra espaço para expressões fáceis. Pretendo reler os seus livros anteriores, pois, ao que me parece, há uma amplitude de temas através de analogias, imagens misteriosamente recombinadas na descrição de uma viagem tensa, insólita, e ao mesmo tempo muito chão, retomadas nesta obra recente de forma admirável. O leitor experimenta as temperaturas do organismo do motor e do ser que o move, no embate com a paisagem e circunstâncias misteriosamente elaboradas. Imagens geradoras de energia, de transformação da matéria, através da queima propriamente orgânica de elementos se coadunam a sentimentos que tangem alturas existenciais. Não sei ainda o que me dói nessas palavras tão vivas, estou atento. Desconfio que essa chave abrirá o que procuro menos pelo contato que pela fusão de elementos. [...]"

(De um email enviado ao autor, a 23 de Setembro de 2009.)
NO ARQUIVO DE SUTTANA

O texto lido por João Candeias no lançamento do meu novo livro, Chave de ignição, passou a estar disponível no Arquivo de Renato Suttana. Agradeço mais uma vez a sua leitura e divulgação.






Esta é, em português, a primeira edição de um livro do escritor espanhol José María Cumbreño. A antologia poética intitula-se Teorias da Ordem e é traduzida do castelhano por Ruy Ventura. A obra é publicada pelas Edições Sempre-em-Pé, na sua colecção UniVersos.
(Quem carregar na imagem da contracapa poderá ler um dos poemas do livro; brevemente serão divulgados outros no blogue http://www.alicerces1.blogspot.com/).

IGREJA NOVA DE NOSSA SENHORA D’ ALVA, TEMPLO DA MEMÓRIA


Quando – no dia 10 de Setembro de 1809 – D. Francisco Gomes do Avelar entrou na nova igreja de Nossa Senhora d’ Alva em Aljezur não penetrou num templo sem história. Embora se tratasse, de facto, de uma construção elevada de raiz, esse edifício contava com pelo menos 14 anos de memória. Tal como um ser humano – que não começa a existir apenas na hora do seu nascimento – também uma casa (seja de Deus e/o
u dos Homens) tem sempre um passado, por mais recente que seja. Herdeira directa da velha matriz de Santa Maria d’ Alva, definitivamente arruinada no dia 1 de Novembro de 1755, depois de um violento terramoto que destruiu Lisboa e muitas povoações e edifícios do nosso país, a igreja que por estes dias faz 200 anos de sagração nasceu, de facto, no momento em que as autoridades locais de Aljezur decidiram construir um novo local de culto para a sua padroeira.
Embora não conheçamos a data exacta das primeiras diligências nesse sentido, sabemos que 12 anos após o cataclismo, em 1767, Rodrigo José d’ Andrada Homem (prior de Santa Maria de Tavira e visitador da Ordem de Sant’ Iago) se deslocou à vila em visitação e que, entre as normais incumbências que lhe cabiam, trazia a de escolher o melhor sítio para edificar uma nova igreja matriz, por ordem do rei D. José I. Logo nessa data, considerou incapaz de reconstrução o velho templo – pela sua localização e pelo seu isolamento –, tendo decidido que o local mais adequado seria o das casas arruinadas de D. Bruno de Sousa (um fidalgo espanhol radicado nesta localidade do Barlavento Algarvio), situadas no início da rua do Gabão, não muito longe da igreja da Misericórdia. Não foi essa, contudo, a vontade dos homens – por motivos que desconhecemos. E, apesar de precariamente instalada em pequenas ermidas (primeiro na de Santo António, depois na do Espírito Santo e, por fim, na Misericórdia), com graves incómodos para as celebrações religiosas – relatados em vários documentos –, seria preciso esperar pelo início da década de 90 do século XVIII para registarmos movimentos efectivos no sentido da construção de uma casa digna de Santa Maria d’ Alva e capaz de acolher os cristãos da maior parte do concelho de Aljezur (que, então, contava apenas com mais uma paróquia, a de Odesseixe, uma vez que nem a Bordeira nem a Carrapateira lhe estavam adstritas). É nesse momento também que surge a alavanca, o motor e o eixo da iniciativa, aquela figura que soube congregar vontades e alertar consciências: o bispo do Algarve, D. Francisco Gomes do Avelar.
Começando por verificar a precariedade do culto na sua primeira visitação, em 1790 ou 91, logo numa segunda deslocação a Aljezur toma posição inequívoca, ao afirmar que mais vale investir na construção de uma igreja matriz nova do que gastar fundos na reparação das várias ermidas afectadas pelo terramoto. (Pouco tempo antes – segundo afirma Francisco Xavier Ataíde de Oliveira – havia decidido reconstruir a igreja de Santa Maria da Graça, em Lagos. Não tendo recebido, contudo, o apoio da população e dos responsáveis locais para essa obra, apesar de prometido, “enojado de tanta avareza, largou os trabalhos do templo e partiu para Aljezur em auxilio dos proprietarios desta vila”). De acordo com um documento assinado pelo prior Bernardo Joaquim de Faria, é ele quem convence os aljezurenses e seus responsáveis a construírem a igreja no sítio da Barrada ou noutro com igual comodidade, nomeadamente aqueles que – como afirma o “Auto de sagração” – tinham “natural amor ao Lugar do seu nascimento” e antes o “querião ver augmentado; do que dezerto”. A discussão deve ter sido acesa, mas finalmente consideraram “a cituação da Villa […] como […] doentia, e sem capacidade para nella se edificar a nova Igreja, por ser escabroza sem terreno plano”. Por detrás dessa escolha, estruturada pelo bispo, estava no entanto um projecto mais vasto de carácter urbanístico (só concretizado a partir do último quartel do século XIX), plenamente integrado no Iluminismo racionalista que levou à construção da Baixa Pombalina lisboeta, de Vila Real de Santo António ou do núcleo central de Porto Covo: “a maior parte das Cazas ainda ezistentes [na vila velha], encravadas nos Cerros, se deveria[m] com efeito mudar para onde houvesse melhores comodidades publicas, e particulares a beneficio publico, e interesse dos moradores da Villa, e mais freguezia”. Foi então escolhida a Barrada (também chamada “Sílio”, como refere um documento de 1794), defronte das ruínas do castelo, onde existia um moinho desactivado e, soube-se mais tarde, um conjunto importante de vestígios arqueológicos, nomeadamente um complexo tumular com cerca de 5000 anos cuja importância maior foi registada por Estácio da Veiga. Terá D. Francisco Gomes querido cristianizar esse monumento, tendo tido conhecimento da sua existência? Terão os aljezurenses desejado consagrar o local de enterramento dos seus antepassados remotos? Infelizmente não sabemos.




Obtida a necessária licença da parte da rainha D. Maria I, em 20 de Maio de 1794 o bispo é nomeado inspector da obra, cabendo a construção da capela-mor, da sacristia e da torre ao comendador da Ordem de Sant’ Iago, o Marquês de Angeja, e o restante edifício aos paroquianos. Com autorização da monarca, as sobras do rendimento das confrarias e da fábrica contribuiriam para a despesa. Em Setembro desse ano, D. Francisco – “com a Camera, Nobreza, e Povo de Aljezur”, e também com o prior Bernardo Pereira e o anterior pároco Manuel Guerreiro Aires – pôde então subir ao lugar da futura igreja e aí aprovou a localização, traçando com as mãos na enxada “o alinhamento do novo Edificio que esperava ver concluido em sua vida como fruto das suas fadigas Apostolicas”. A 19 de Setembro de 1795 foi colocada a cruz no lugar do futuro altar-mor, assentando-se a primeira pedra no dia seguinte, em cerimónia muito concorrida. A construção iniciara-se no entanto meses antes, a 13 de Abril, com a cozedura da cal e, decerto, com a preparação do terreno. Em Outubro/Novembro desmontou-se o arco da capela-mor da igreja velha para se aproveitarem algumas pedras no templo novo, cumprindo a ordem de total demolição expedida pelo bispo. (A medieval Santa Maria d’ Alva servia já nessa altura como cemitério, “com pouco resguardo e decencia”). A construção da ousia da nova igreja iniciou-se entre 7 e 24 de Dezembro. Ao longo dos 14 anos que duraria a obra, continuaram abertas ao culto as igrejas de Santo António e do Espírito Santo – embora muito danificadas –, estando a matriz sediada na igreja da Misericórdia. As duas primeiras seriam profanadas por D. Francisco Gomes no dia 7 de Setembro de 1809, poucos dias antes da sagração da nova matriz, continuando a última em funções até aos nossos dias.
Ao longo de quase década e meia, foram vários os avanços e paragens sofridos pela obra de um edifício que ainda hoje se destaca na paisagem pela sua volumetria e pela sua situação no terreno. E se hoje é difícil avaliar com pormenor como se processou a elevação do corpo da igreja – devido ao desaparecimento de alguma documentação importantíssima existente até há poucas décadas no Arquivo da Diocese do Algarve, nomeadamente um livro de contas que ainda recebeu comentário (muito insuficiente e precário, diga-se) de Pinheiro e Rosa em 1993 –, temos a possibilidade de conhecer com algum detalhe como ocorreu a edificação da capela-mor e da sacristia, através de um livro também de contas localizado há poucos meses em Faro no referido Arquivo. Se não é este o lugar apropriado para delongas, convém registar que os 14 anos de demora se deveram em parte a suspensões frequentes que não vale a pena enumerar aqui, as quais chegavam a demorar vários meses. Mas, se a obra da capela-mor e da sacristia (cuja despesa chegou a 1.642.150 réis, paga quase totalmente pelo Marquês de Angeja) viu a sua construção terminada em finais de 1803, só seis anos mais tarde o corpo e a torre teriam a mesma sorte. E nessa parte, foi decisiva a acção de D. Francisco Gomes do Avelar que, de facto – para utilizar a expressão do seu biógrafo, Ataíde de Oliveira – “punha as toalhas”, isto é, contribuía com avultados montantes para a edificação de um templo de que a sua honrosa memória não pode separar-se. Basta referirmos que, dos 5.359.715 réis em que se importou a construção do corpo da igreja, mais de um quinto foi coberto pelo dinheiro entregue pelo prelado – não contando com o que terá gasto no pagamento do projecto, do retábulo principal e da escultura de Nossa Senhora d’ Alva, que se deveram certamente à sua iniciativa directa. A igreja nova não se teria concluído porém sem a contribuição de muitas outras pessoas de Aljezur: as que faziam parte das confrarias e da fábrica (cujos rendimentos iam para a obra), as que davam a sua contribuição monetária ou em géneros (como o antigo pároco da vila, Manuel Guerreiro Aires, que ofereceu 35.000 réis em trigo), as que deixavam a sua esmola numa caixa destinada às obras, etc..






Ao entrar na nova igreja de Nossa Senhora d’ Alva no dia 10 de Setembro de 1809, D. Francisco Gomes do Avelar sagrava um templo que era bem o reflexo do seu tempo e das suas ideias, interpretadas talvez por Francisco Xavier Fabri, a quem se costuma atribuir – com fundamentos sólidos – o risco do projecto. Se todo o edifício manifesta no interior e no exterior a aversão do arquitecto italiano a “huma Arquitectura intrincada”, com excesso decorativo, e o seu apreço pelo rigor e pela contenção, mais adequados ao carácter sério dos edifícios – não deixa de espelhar também o iluminismo católico do prelado algarvio, que não dispensava o respeito pela história das edificações e pela integridade de cada estilo, “imbuído” – no dizer de Carla Varela Fernandes – “já de um espírito pré-romântico, que olha para o passado longínquo com entusiasmo e admiração”.
A sua sensação não terá sido diferente da que ainda hoje sentimos quando visitamos o templo, agora duplamente centenário. Estamos perante um edifício neoclássico, cuja fachada – apesar da ausência de uma das torres sineiras, que não deveria faltar no projecto inicial – relembra a de alguns santuários de altitude, sobretudo a do Bom Jesus do Monte (em Braga), seu contemporâneo, erigido entre 1785 e 1811 a partir de um projecto de Carlos Amarante. O embrião de escadório que precede o adro parece apontar precisamente para essa ligação. O interior – com três naves, transepto, capela-mor profunda ladeada por duas capelas colaterais e capelas laterais com planta absidal – é no entanto um discreto arquivo de citações arquitectónicas, fazendo lembrar uma catedral em miniatura, a que não faltava – como ainda documentam algumas fotografias dos anos 60 do século XX – um cadeiral, hoje desaparecido. A nave central, mais elevada e mais larga do que as laterais, faz lembrar a estrutura das igrejas góticas mendicantes. A secção semicircular do fundo da capela-mor e das capelas laterais recorda a arquitectura renascentista, recuperando os modelos da antiguidade. A planta do retábulo-mor (atribuído com fundamento ao farense José da Costa, a partir de um risco de Fabri) – apresentando a racionalidade das altas colunas e do frontão triangular (repetido na frontaria e no coroamento do pano murário das traseiras da ousia), plenos de novo classicismo – não dispensa a lembrança dos tronos barrocos.




O carácter eclético do templo, propositadamente eclético, é reforçado pela disseminação na igreja de peças mais antigas, vindas de outros locais, aí colocadas mais tarde por necessidade ou desejo expresso: o retábulo do Santíssimo, onde se encaixou um sacrário barroco vindo da igreja de Santa Maria d’ Alva; o retábulo do Senhor dos Passos, rococó, vindo do convento do Desterro, em Monchique; as colunas maneiristas vindas do mesmo cenóbio, existentes nas capelas das Almas e de São Sebastião; a imaginária quinhentista, seiscentista e setecentista; a pia baptismal manuelina, proveniente da antiga matriz e aí colocada em 1813; o conjunto de pinturas maneiristas e barrocas, de proveniência desconhecida, oferecidas à igreja na década de 1920.
Seduz-nos este templo – tal como terá seduzido D. Francisco Gomes do Avelar. As alterações sofridas nestes 200 anos foram reduzidas e não modificaram a percepção geral da identidade do edifício – embora algumas intervenções de actualização e restauro não tenham sido felizes, como não foram felizes aqueles que suprimiram algumas peças que hoje muito enriqueceriam a igreja nova da Senhora d’ Alva (penso no púlpito e no cadeiral, mas também nas grades que resguardavam a capela-mor, a capela do Santíssimo e o baptistério).
Templo da memória, exige de todos os aljezurenses (depositários do seu património) uma atenção dedicada e zeladora que o conserve sem o alterar e, sobretudo, sem deturpar a simplicidade que presidiu ao espírito do seu fundador e do seu arquitecto. O trabalho será permanente, mas compensador. Porque nenhum ser humano passa da Existência à Vida sem entender e integrar todos os momentos que o antecederam.

Lido em Aljezur, a 13 de Setembro de 2009, na sessão comemorativa
do Bicentenário da sagração da Igreja Nova de Nossa Senhora d’ Alva
PARABÉNS, SARRABAL! (RUY VENTURA)

Ao abrir este presente, esta caixinha com laçarote de cetim, dei com o poema que publico abaixo. O seu autor é Ruy Ventura, outro dos meus «convidados» para o aniversário do Sarrabal.

O poema consta do último livro do Ruy, intitulado, sugestivamente, «Chave de Ignição». O lançamento da obra, com a chancela da Editorial Labirinto, efectuou-se no dia 16 do passado mês de Julho, na Sala Polivalente da Biblioteca Municipal de Sesimbra.

Tive conhecimento, por quem lá esteve (o Ruy sabe a razão da minha não comparência), que o lançamento foi um êxito: sala cheia, bom convívio, boa participação do poeta João Candeias (que não vejo há imenso tempo), a quem coube a apresentação da obra.

Conheci Ruy Ventura no lançamento de um livro de Rita Ferro. Poucos anos antes havia ganho o Prémio Revelação de Poesia/2000, atribuido pela Associação Portuguesa de Escritores (contava, apenas, 27 anos de idade).

Muitos são já os livros que publicou, dividindo-se o seu trabalho pela poesia, ensaio, crónica e tradução.

Mas o Ruy é também um bloguista. São dele os blogs Estrada do Alicerce (um pouco abandonado) e Arquivo do Norte Alentejano. Aqui, com o blog actualizado, podemos admirar, principalmente, boas fotografias do nosso património arqueológico. Ruy Ventura dá-nos a conhecer monumentos e belíssimas fachadas e riquíssimos interiores de muitas das capelas e igrejas espalhadas (pois, com certeza!) por várias localidades alentejanas: Portalegre (terra natal do Ruy), Castelo de Vide, Marvão, Alpalhão, Nisa e outras. Sem dúvida, um blog a visitar.

Muito mais havia a dizer, mas é tempo de voltar a pegar na passadeira vermelha e a estendê-la, aqui, no Sarrabal. Ruy Ventura, hoje é a sua vez. Faça o obséquio de passar!

Soledade Martinho Costa in http://sarrabal.blogs.sapo.pt/85934.html a 13/8/2009



A ÁGUA SOBREVIVE


a água sobrevive
ao esplendor do mundo.
o assento
desmonta a paisagem.
a primeira dor aproxima-nos,
alimenta a força da corrente
- raiz e crescimento.

os arcos abateram.
a biografia reserva-nos
um pouco de sangue
na confluência
do medo
com a memória.

recorda-nos que o rio
escreveu
a morte e a viagem.

desvia-nos do silêncio.
acompanha o sono
até à nascente.

esta manhã não termina.
o assento faz-se. sem pausas.

teu nome, junto à foz,
resguarda-me

da morte.

Ruy Ventura