IMAGENS FERIDAS

Desde que li "O Meu Deus é um Deus Ferido", talvez o melhor livro do teólogo checo Tomás Halík, comecei a compreender e a acolher de outro modo as representações de Cristo mutiladas pela iconoclastia, pelo maldade, pelo desleixo, pelo tempo. Se já tinha especial carinho pelas esculturinhas feitas pela imperfeita habilidade dos artistas sem formação, agora também estas se tornaram para mim instrumentos privilegiados de meditação, de pensamento e de oração.
Diz o autor de "Paciência com Deus":
"Se, na nossa oração, nos pusermos diante da cruz ou de um ícone, então este símbolo não deve ser um objecto mágico e sagrado, um instrumento de magia, mas sim uma lembrança (anamnesis) que nos arranca dos nossos sonhos, dos nossos círculos narcisistas e nos leva para fora da tentação do colóquio consigo mesmo. A oração é um diálogo."
Vê-las sem braços, sem pernas, desfiguradas, é contemplar a humanidade chagada por um tempo em que as máscaras tentam substituir o verdadeiro rosto das pessoas, sobretudo a sua imperfeição, que é fonte de sede e de vontade de beber. Ainda não li o livro de Tolentino (vem a caminho), mas parece-me que a negação da sede será sempre uma recusa da água pura, prontamente substituída por qualquer outro veneno sedutor que os ardis colocarão à nossa frente.
As máscaras tentam e vão conseguindo camuflar o rosto que nos pertence, para nossa desgraça. Resta-nos encontrar nessas feridas, mesmo ocultas, o paradoxo da esperança.

RV (21/5/2018)


UM REBULIÇO SUECO

Anda por aí magno rebuliço por causa de uma tal Academia Sueca que, neste ano, decidiu suspender a atribuição de um prémio literário. Se tivermos em conta os montantes envolvidos, bem poderíamos chamar-lhe, como à lotaria espanhola de Natal, "el gordo". Parece que houve por lá grã soma de alarvidades, desde apalpanços a catrapiscanços, passando por outros manipanços que têm cevado gentes mui galhardas por esses bardalhais fora. Não sei quem foi. Não sei quem são os alarves. E, cá entre nós, tenho pouca vontade de saber. Ou, mesmo, nenhuma. Vi por aí numa folha de couve a foto de dois dos envolvidos e fiquei logo com vontade que ir beber aguardente de medronho, para limpar o asco causado pelas figuras, tão mal apessoadas se apresentavam nas suas farpelas de gala. Dizia o jornalista que a senhora é "a mais conhecida poetisa sueca". Não digo que não. Lembro-me dela a anunciar que um tal Dilã tinha ganho gorda massa... E não fiquei com vontade de frequentá-la nem de convidá-la para comer a iguaria típica da terra onde vivo, para minha dita e desdita. Ser conhecido não é o mesmo que ser importante. A Rosita também é por cá muito conhecida e não é por isso que produz música recomendável, além das letras que fazem corar as pedras da calçada e arrebitar alguns velhotes dos asilos de Portugal.
Há pranto e ranger de dentes. Este ano não vamos ter Nobel da Literatura. Que pena! As carpideiras - sim, as carpideiras, pois recebem para prantear - arrepelam-se. Os carpideiros sujam as ventas com cinza. E eu, que sou parvo quando quero sê-lo, pergunto: "O que é que a literatura tem com isto?" Responder-me-ão, bem comportadinhos, que tem muito. Eu digo que não. Se é boa, excelente mesmo enquanto obra de arte, passa sem o prémio. Se é má, continuará sendo a porcaria que já era. Há exemplos dos dois lados. Ah, claro, temos o carcanhol... e tal... Tenhamos juízo. Isso só interessa ao autor (bom ou canastrão, que a dita Academia já premiou das suas espécies, para não parecer mal...) e aos seus editores. O resto são papas e bolos para enganar os tolos. Apetece fazer um gesto à Luiz Pacheco, com a correspondente legenda. Mas, para bom entendedor, meia palavra basta.

RUY VENTURA