Mostrar mensagens com a etiqueta jornal "Público". Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta jornal "Público". Mostrar todas as mensagens
INFÂNCIA - UM BEM EM VIAS DE EXTINÇÃO


            A infância é um bem em vias de extinção. Não me refiro à natalidade diminuída que vai transformando Portugal num dos países mais envelhecidos do mundo. Falo na deliberada, continuada e perniciosa erosão e destruição do que há de mais verdadeiro nos primeiros anos de vida de um ser humano. Se “o melhor do mundo são as crianças”, como escreveu Pessoa, atribuindo-lhes como cerne a liberdade que deu título ao seu poema, então temos de estar muito atentos ao veneno doce, melífluo, suave, brilhante, colorido e atraente com que a infância está a ser corroída.
            Nem sempre pensei assim. Caí da minha ingenuidade quando um dia, numa das minhas aulas, uma criança me respondeu que queria ser médica porque assim poderia enriquecer mais depressa. Fiquei estupefacto! Comecei a dirigir então outra atenção ao que estava à minha volta. As escolas são excelentes observatórios… Abri os olhos e vi o que não queria ver.
            Desde aí, tenho descoberto imensas famílias que massacram os seus filhos, obrigando-os a alcançarem objectivos pré-estabelecidos e martelando-lhes a ideologia do sucesso a todo o custo desde tenra idade. Exercem inimagináveis pressões; excluem da vida familiar qualquer “pedagogia do fracasso”; atacam como feras todos quantos ponham em causa essa via que transforma os seres humanos em máquinas de arrasto. No reverso da medalha, venho encontrando pais e mães desinteressados do sucesso educativo dos seus filhos, mas focados em manter os miúdos em equipas juvenis e infantis de futebol para que, talvez um dia, venham a ser como aquele madeirense que "ganha milhões" e "até ajuda a família". E quem diz a participação em equipas de futebol, diz a entrada em programas de TV, diz a reiterada participação em castings, diz a valorização da actividade youtuber por mais degradante que seja, diz o apoio a outras práticas degradantes que me dispenso de arrolar… O sucesso dos filhos é visto como o seu sucesso – e ai de quem se meta no caminho com ideias contrárias ou pondo pedrinhas na engrenagem. Nem vos conto…
            A resposta da miúda também me obrigou a estar atento a outras manifestações de envenenamento, só na aparência pouco nefastas ou laterais. Passei a sentir náuseas, por exemplo, ao verificar a sexualização precoce a que se sujeitam tantos miúdos e, sobretudo, miúdas, com consequências que se adivinham. Deixei de achar graça às pessoas que mantêm os miúdos calados pondo-os à frente de um ecrã, seja ele de televisão, computador ou telemóvel. Não sabem ainda falar nem andar, mas já fixam os olhos no rectângulo, procuram canais e, sobretudo, passam o dedo pelo ecrã, na missa, no café, no restaurante, no jardim, em todo o lado, tornando-se insensíveis a qualquer estímulo externo, mas estimulando a baba dos familiares, enternecidos com tão precoces habilidades dos pimpolhos. Mesmo quando alguém ousa avisar essas famílias e esses progenitores do mal que estão a causar aos seus miúdos, olham para o portador da mensagem como se fosse um extraterrestre ou alguém vindo do passado numa máquina do tempo, uma espécie de fóssil sem qualquer valor. Encolhem os ombros, por vezes resmungam – e continuam pelo mesmo caminho rente ao abismo.
            Levei uma pancada ao ouvir a resposta daquela miúda simpática, mas envenenada (por quem?). Passei a topar e a entender de outro modo as doces trapaças com que as nossas crianças são envenenadas todos os dias, a toda a hora, por muita e muita gente. A infância é, por isso, um bem em vias de extinção. O que se passa não é inevitável. É todavia calculado, sub-repticiamente inoculado, como quase tudo o que de venenoso nos bate à porta neste tempo de chumbo onde nos foi dado viver. Somos seduzidos como se andássemos permanentemente por corredores de hipermercado. A promoção constante e avassaladora de contra-valores como o poder, a vaidade, o orgulho, a riqueza, o sucesso, o consumo, o individualismo, a violência ou o impudor vai produzindo um autismo fabricado com consequências perigosíssimas para a dignidade humana, erodindo ou quebrando sentimentos como a empatia, a compaixão, o diálogo, o sentido do dever ou o altruísmo. Tudo isto está a criar catástrofes pessoais e sociais inimagináveis, mas discretas, violências nunca vistas, mas "simpáticas", comportamentos alienados, mas manipuláveis, frustrações assustadoras, mas boas para usar em proveito alheio.
            O que se vai vendo pelas redes sociais é eloquente do estado mental a que chegámos: “Ninguém sabe que coisa quer. / Ninguém conhece que alma tem. / Nem o que é mal nem o que é bem” (Pessoa). Um dos exemplos é o que se está a passar numa boa parte das nossas escolas e das nossas famílias. A promoção da igualdade de oportunidades vai-se impondo como miragem, pois não é compatível com uma estratégia baseada no controlo tecnológico de professores, pais e crianças e com a exclusão do conhecimento, do pensamento e da imaginação da vida dos estabelecimentos de ensino. Há quem aplauda, como é costume e expectável. Há quem achincalhe os que pensam pela sua cabeça ou os mais fracos. Há quem use tudo isto para trepar… Quem não se verga ou não pode ter os meios que os outros têm, fica de fora; é posto à margem, como traste sem préstimo. O plano foi montado há muito, sabe o demo onde e por quem. Aproveitou apenas, agora, a embalagem covidiana como uma “janela de oportunidades”, acelerando algo que há muito estava em marcha.
            O envenenamento começa na mais tenra idade, praticado por aqueles que deveriam educar as nossas crianças. A trapaça é diversa e atinge todos. No fundo, quem provoca directamente tal erosão nas crianças nem sequer é culpado, pois não passa também de uma incauta vítima, de uma espécie de títere em mãos desconhecidas. Não é preciso sermos muito inteligentes para descobrirmos quem ganha com isto. São em geral pessoas para quem não há valores sociais, morais ou éticos estáveis além do dinheiro, do poder, do sucesso e do prazer. Quem promove esta "doutrina" deseja dominar e inchar como peru recheado com notas de banco. No fundo, julga-se membro de uma "espécie superior", com direito a espezinhar o seu semelhante. Rostos sem face visível, vêem o "outro" apenas como um "isso", como uma ferramenta, um degrau na sua escadaria egoísta - seja o "outro" uma criança, um adolescente, um adulto ou um velho. Se serve, manipula-se com as técnicas mais ardilosas. Se não serve, lixo! São eles quem ganha com esta extinção da infância e do bom que ela traz ao equilíbrio vital, enquanto semente de liberdade, de curiosidade e de imaginação.
            Há dias, o Papa Francisco lembrou-nos de que nunca se sai igual de uma crise como aquela que estamos a viver e que é necessária a participação de toda a família humana para que possamos sair mais unidos desta tempestade longa e perigosa. Podemos sair dela “melhores ou piores”, mas não sairemos “iguais”, afirmou. De uma vez por todas, temos de ter “a coragem de mudar”. Mas só lá chegaremos, se recusarmos com veemência os venenos mais sedutores e tivermos a coragem de devolver a infância às crianças, olhando o mundo como elas.

RUY VENTURA

(investigador e escritor)

Publicado na edição on-line do jornal "Público" (3/6/2020)



APESAR DE TUDO, A LIBERDADE

Ruy Ventura

         Sinto a doença à minha volta e à volta dos meus. E, nesta reclusão involuntária, lembro-me de Trujillo e de suas altas torres. Não de todas, mas de uma que, na sua delgada altivez, se assumiu como mirante.
         A terra de Pizarro sempre me pareceu estranha. À sua volta quase não distinguimos vegetação e, no meio da planura, alcandora-se a rocha; sobre ela, ruas e casas que nada arranca dali. A cidade é pontuada por estreitas construções de pedra, emergindo do meio de habitações mais baixas, servidas por ruas estreitas. Parecem árvores sem grande ramaria que procuram um sol que lhes permita o crescimento. Talvez cactos gigantes, como o do Convento da Arrábida, hoje com vários metros de altura e transformado em madeira dura. Vemos campanários, torres evidenciando soberbas senhoriais, locais de vigilância militar e, no centro imaginário de tudo, meio coberto por heras que não param de subir, o “mirante das Jerónimas”. Diz-me um guia que foi torre defensiva, sobrevivendo a um derruído palácio que depois foi eremitério. Não tenho dados para confirmar ou contrariar. Pela sua configuração, permite o resguardo e ao mesmo tempo a longa contemplação da distância, cuja leitura nos permite encontrar melhor o infinito. O edifício a que pertence é ainda hoje habitado por monjas da ordem religiosa que tem como patrono o santo tradutor da Bíblia para latim. Sem nunca lá ter entrado, tenho recordado muito o seu perfil no mundo e fora do mundo. Talvez por sentir, pela primeira vez (embora obrigado pelas circunstâncias) o que seriam o olhar e a vida daquelas mulheres que dos mirantes faziam observatório, oratório, salvaguarda e farol. Em Trujillo, como em muitas e muitas partes do mundo.
         Não sei se elas viam o mundo como ameaça, como via infectada pelas mais diversas enfermidades morais e corporais de que queriam fugir. Os seus textos dizem-me que sim, mas nem sempre há concordância entre a letra e o espírito. Já se estudaram muitas dessas comunidades e sabe-se hoje que muitas das mulheres que aí se acolhiam por vontade própria o faziam para fugir da violência que as despersonalizava e, de algum modo, matava. Eram lugares onde conseguiam uma liberdade acrescida, liberdade que para algumas delas se transformava numa escada por onde subiam à libertação maior que era ter saudade do infinito e, nele, de Deus. De modo distinto na forma, mas afinal semelhante nas intenções, foi essa purgação e essa fuga que moveram também tantos homens a tornarem-se eremitas – organizados ou não em comunidade – nas mais variadas parte do mundo. Como na Arrábida, onde Frei Agostinho da Cruz (1540 – 1619), franciscano-poeta convivente e vivente de um cristianismo depurado, à sombra de grandes vultos como São Francisco de Assis ou Erasmo de Roterdão, soube enaltecer uma vida pobre, afastada e mais livre: “Agora dei a volta por caminhos / De solitários bosques enramados, / De feras bravas, mansos passarinhos; // Que ainda que entre espinhos conversados, / Mais quero pé descalço entre espinhos, / Que dos homens humanos espinhados”.
         Nestes dias estranhos, em que fomos forçados a uma existência de espera e de suspensão, rodeada pelo perigo, vivemos quase todos em reclusão. Vivendo, apesar de tudo, num lugar privilegiado, senti este confinamento como uma prisão domiciliária. Nem as exigências da tutela do meu ministério – ficcionando uma escola que de facto está parada e não pode ser substituída por um “novo paradigma tecnológico” (que prejudica sobretudo os alunos pobres, sem recursos materiais e sociais) – me fizeram desligar desse incómodo sentimento de pena maior, apesar da ausência da pulseira electrónica. Fui tentando, com os meus, ocupar o tempo, distraindo-me. Cumpri obrigações. Correspondi a devoções. Descobri tarefas sempre adiadas e que, agora, viram finalmente a sua concretização chegar a bom porto. Um arbusto finalmente cortado. As ervas do quintal arrancadas, ao fim de meses de selvagem crescimento. O pó do escritório erradicado, depois de tanta preguiça. O artigo que pelos vistos avança, após tantos pedidos ouvidos mas não escutados. A leitura retomada. O filme redescoberto e, no reencontro, aquela peça musical nunca atendida… Sem largar o medo, lutei e luto contra o medo, sabendo que o temor não irá impedir a entrada do vírus, se ele tiver de entrar e fazer das suas. Nada disto era, todavia, capaz de pelo menos atenuar o toque das grades numa gaiola invisível.
         Até que resolvi redescobrir a varanda do primeiro andar que, não fossem as restrições da arquitectura do bairro, já teria desaparecido. Pela manhã, depois de uns minutos de conversa com o miúdo, resolvi deixar-me estar por ali. A ler. Coisa que nunca ali fizera, pela falta de resguardo que sentia retirar-me a privacidade para mim inerente ao acto de leitura. Quase sem gente pelas ruas, desta vez afoitei-me com o livro na mão. Senti-me como as monjas jerónimas do mosteiro de Trujillo, mesmo sem ter a sua virtude nem a sua torre nem o seu horizonte. Tudo se tornou mais leve, mesmo sem afastar da mente o chumbo que nos domina e condiciona. Virei-me para sul e, acompanhado pela passarada, sobretudo por uma família de corvos pela qual tenho particular afeição, redescobri no horizonte essa Serra que nos “move a contemplar mais fermosura”.
         Afinal, “não há melhor manjar que liberdade”, como diz o poeta-frade que nasceu há 480 anos. Mesmo que só possamos comer o que resta do açambarcamento diário nos supermercados, mesmo que nos vejamos obrigados ao recolhimento que talvez seja apenas uma forma de salvaguarda, mesmo que as perdas nos angustiem, só tendo o poliedro da liberdade no pensamento conseguiremos transformar a reclusão em clausura, encontrando novas formas de resistência e de elevação. Talvez consigamos, assim, ver no “hortus clausus”, no horto fechado da nossa casa e das nossas vidas (afinal povoado por muitas ínfimas alegrias a descobrir), um lugar propício onde o vazio e o abalo destes dias se transformem em detergente. Talvez assim sejamos obrigados a limpar de nós e desta civilização muita da sujidade que, há demasiado tempo, vai entupindo os nossos poros, impedindo a nossa mais subtil respiração. Talvez. Não sei. Não obstante, assim desejo. E nesse desejo creio ser acompanhado por muitos.


Editado no jornal "Público", edição on-line (21/3/2020):
https://www.publico.pt/2020/03/21/politica/opiniao/apesar-liberdade-1908677



UMA VASSOURADA NA EDUCAÇÃO

            Repugna-me a retenção dos meus alunos. Repugna-me aliás a retenção de qualquer criança. Dito de outro modo menos eduquês, não me agrada nada chumbar ou ver chumbar um miúdo. Ou, sequer, atribuir-lhe uma classificação negativa. O que eu digo dirão quase todos os professores deste país, que deveras se preocupam com os seus alunos. Qualquer discussão séria sobre o assunto deve partir desta premissa, pois há quem ache que os docentes são uma espécie de carrascos, “esquecendo” que a maior parte deles acumula a docência com a maternidade, a paternidade ou a qualidade de avô ou avó.
            Apesar deste veneno, injectado há muito nas veias da plebe por gente interesseira, a propaganda mais recente tem repetido até à exaustão que “os professores e os pais concordam com a eliminação dos chumbos até ao 9.º ano”. Não mentem, mas como é costume não dizem a verdade toda, nem sequer a maior parte dela. Não lhes interessa fazê-lo. Concordar não significa que os pais ou os professores aceitem a estratégia do governo e de quem o sustenta, como dão a entender. Acumulo os dois estatutos e assim penso, tendo a certeza de que muitos milhares me acompanham. Além do mais, tal afirmação não merece qualquer credibilidade, dado que nem os docentes nem os encarregados de educação foram consultados amplamente sobre o assunto. Convenhamos, além disso, que as confederações de associações de pais ouvidas representam pouca gente (sendo sobretudo instrumentos subtis na mão de alguns poderes políticos), o mesmo se podendo dizer da uma boa parte dos representantes sindicais dos professores.
            Ninguém é sádico ao ponto de querer vergastar gratuitamente as crianças com uma desnecessária retenção. Tal só sucede quando, comprovadamente, evidenciaram não ter aprendido aquilo que a tutela, no seu alto conceito, determinou ser o mínimo dos mínimos. A reprovação dos alunos decorre de leis aprovadas pela Assembleia da República e de currículos escolares emanados do ministério, que os professores se limitam a aplicar escrupulosamente ao longo do ano. A retenção nasce do insucesso simultâneo em várias disciplinas ou do abandono da escola.
            Estes dois problemas têm várias e complexas causas que muita gente, por várias razões, não quer encarar e resolver. À gerência do país interessa sobretudo poupar dinheiro à custa da educação das crianças, espezinhar os docentes que ainda pensam pela sua cabeça (apontando que a culpa da falta de aprendizagem é em grande parte sua e das escolas), mostrar mapas estatísticos que possam enganar os incautos e dar satisfação aos poderes ilegítimos, mas bem instalados, que vão subindo na vaidade, na carreira e nas benesses à custa das escolas e de quem lá vive. Tudo o resto, por mais atraente e “generoso” que pareça, é um canto de sereia que visa afogar-nos no mar do alheamento e do conformismo. Há muito tempo, pelo menos desde o consulado da ministra Lurdes Rodrigues, que a campanha de manipulação pública está instalada nos domínios da educação, com hábeis técnicas de ilusionismo que visam atirar o lixo para debaixo das alcatifas rotas do país, envenenar metade dos portugueses contra a outra metade e reinar, olimpicamente, sobre um monte de escombros onde, na realidade, nenhuma das luminárias das “ciências da educação” quer pôr os pés. Não me consta que algum dos “especialistas” na matéria tenha querido enfrentar turmas ululantes numa escola pública portuguesa das periferias, nem que fosse apenas durante um ano lectivo. Mas gostam de opinar, de mandar, de impor teorias serôdias. Disso gostam eles… Gostam eles, alguns dirigentes escolares e uma mancheia de docentes ainda no activo, mas por pouco tempo, cuja razão de viver é ser como esses “cientistas” ou como os bem instalados burocratas da 24 de Julho.
            Gostaria muito que os chumbos fossem abolidos nas escolas. Com convicção o escrevo. Com a mesma convicção defenderia a abolição das penas de prisão ou de multa, a extinção dos impostos, bem como a revogação das leis que nos impõem proibições ou determinam sanções quando prevaricamos. Que bom seria! Que bom seria termos um mundo em que tal fosse possível, uma espécie de utopia, anarquia ou acracia, em que cada um fosse sempre diligente, educado, estudioso, responsável, solidário e livre, podendo os cidadãos prescindir até de governos e de regras. Infelizmente, bem sabemos que tal paraíso na Terra não se vislumbra. Nem há sinais de que o Éden volte a surgir nos próximos séculos. Tem por isso de haver uma justiça retributiva, contributiva e distributiva, baseada em medidas que nos façam crescer no conhecimento, na moral e na ética. Imperfeitos como somos, precisamos de algo que nos faça assumir a responsabilidade de sermos membros conscientes e solidários de uma sociedade organizada. Se isto é válido para os adultos, mais válido se torna para as crianças e para os adolescentes, se não os quisermos manter até ao fim da vida nesse estado imperfeito e irresponsável.
            Há insucesso nas escolas portuguesas? Sim. Continuará a haver. Fazendo-se passar por agente “facilitador”, ao querer impor medidas legislativas que impeçam a retenção dos alunos nos anos intermédios do Ensino Básico, a gerência do país não se preocupa, todavia, com as crianças nem com o mundo desigual em que vivem. Mostra aliás uma chocante indiferença pela sua aprendizagem e pela qualidade da sua educação e instrução. Vemo-nos confrontados apenas com medidas sem substância, sem base de sustentação devidamente estudada, que não pretendem resolver seja o que for de importante, mas tão só camuflar problemas que boa parte da classe política e académica não quer, não pode ou não sabe resolver. No fundo, as desigualdades, deste modo eternizadas, interessar-lhes-ão como meios de criação de um ambiente propício à manipulação de consciências e à manutenção de uma sociedade de castas.
            Qualquer pessoa consciente sabe quais são as causas do insucesso: um deficiente uso da língua materna; enorme falta de vocabulário; erosão dos hábitos de leitura (que nenhum Plano Nacional, concebido com está, poderá resolver); deficiente uso do raciocínio lógico-matemático; incapacidade de abstracção; gravíssimos problemas de concentração; uma fraquíssima cultura geral; uma preocupante dificuldade na concepção e na emissão de juízos críticos; um atroz desconhecimento da História, do mundo natural, político e social. Nunca até hoje vi medidas consistentes que pretendessem deveras minorar estes problemas que, cá entre nós, afectam não pequeno número de adultos também. Em vez disso, vemos pelas escolas a promoção de medidas de fachada, de espectáculos ocos e, mais recentemente, de uma vazia panaceia chamada “autonomia e flexibilidade curricular” que é, na prática, apenas a promoção de experimentalismos sem substância e, pior do que isso, um instrumento perigosíssimo colocado na mão de alguns dirigentes escolares cuja única preocupação consiste em perpetuar o seu poder discricionário e autocrático, distribuindo benesses aos seus fiéis seguidores e rasteirando quem não entra no jogo.
            Qualquer estratégia de promoção do sucesso que passe pela pressão ilegítima sobre as escolas e os professores não mais será do que uma farsa que apagará estatísticas negativas, produzindo graves consequências ao nível da indisciplina e do rebaixamento da exigência a níveis inimagináveis. Se tal acontecer, como creio, teremos uma avaliação que, silenciosamente, não mais será do que um simulacro. Os alunos com poucas ou nenhumas dificuldades, normalmente oriundos de famílias estruturadas, com razoáveis recursos económicos, continuarão o seu caminho sem problemas, partindo alguns deles para os colégios privados. As crianças que, pelo contrário, venham de meios desfavorecidos ou tenham verdadeiras dificuldades, viverão iludidas, enganadas com as suas famílias, pensando ter sucesso na aprendizagem, na realidade inexistente. Sem nada lhes exigir de concreto, tudo lhes permitindo, esses alunos serão transformados numa tralha sem utilidade de que o sistema educativo se quer livrar o mais depressa possível. Tenho a certeza de que tal não é digno de um país como Portugal.


Ruy Ventura

VALE A PENA IR VOTAR?

"Vê uma criatura de Deus este desfile e pensa que o melhor é ficar em casa no próximo dia 6 de Outubro. Ou emigrar para Pasárgada, como o poeta Manuel Bandeira. Mas o grilo do dever azucrina os ouvidos... E a lembrança recorda-nos que, apesar de limitada por estratégias de subversão bem montadas, ainda se guarda em Portugal a semente de uma democracia por fazer. Reparamos então que há duas ou três figuras que, talvez por ingenuidade política ou pessoal, vão dizendo o que pensam e não o que os eleitores parvos ou sacanas querem ouvir. É pouco, mas dá para respirar..."

Leia o artigo completo no jornal "Público"
e partilhe.



Foto retirada daqui.

DIVIDIR PARA REINAR


            Quando António Costa acabou com a liderança do Tozé, afastando-o à cotovelada da chefia do Partido Socialista, batemos palmas. Afinal, pensava-se, Seguro era um líder poucochinho, mole, sem sangue político suficiente para preencher os corpos cavernosos da malta, dando tesão à oposição e ao país.
            Quando, nas eleições legislativas, ele e o seu clube do Rato ficaram em segundo lugar na corrida, tivemos fezada no seu sorriso malandreco e na sua esperteza de camaleão. Afinal, fosse por que via fosse, era preciso erradicar o Passos Coelho e os seus betinhos. Engoliram-se sapalhões com uma boa litrada de sais de fruto. Precisávamos de uma “nova correlação de forças progressistas”, capaz de devolver aos portugueses os seus rendimentos, roubados (dizia-se) pelos malfeitores da troika. E a fezada deu resultado. O novo Sant’ Antoninho, manobrador ardiloso, lá conseguiu juntar e untar peças desconjuntadas numa inesperada traquitana. E nasceu a geringonça, mesmo contra algumas vozes internas, prontamente caladas com boa rolha ou reduzidas à sua ruidosa insignificância.
            Aplaudimos, babados, a solução governativa. Rejubilámos com a reviravolta, suspirando por mais uns euros na depauperada conta bancária e pelo regresso aos tempos em que podíamos pedir empréstimos à banca sem medo do futuro e usar à fartazana o cartão de crédito, esturrando o numerário que não tínhamos em tudo quanto nos apetecesse, desde a compra de pacotes de férias na estranja à aquisição de cuecas de boa marca. Poucos voltaram a lembrar a inteira responsabilidade dos socialistas e do seu “menino de oiro” chamado Sócrates na vinda do FMI e dos seus comparsas. Só os resmungões envinagrados continuaram a recordar quem sugara e para onde, em seis anos de gestão pê-ésse, o pecúlio que então nos restava. A bem da nação e da carteira, esquecemos quase todos que António Costa, Augusto Santos Silva e outros membros da sua companhia haviam sido amnésicos e amblíopes governantes daquele Senhor Engenheiro formado ao domingo, com vida de nababo em Paris e amigos-chave na Venezuela e noutros lugares mal frequentados. Que nos interessava esse passado, se a massa já começava a pingar na algibeira e até parecia ser possível – e fácil – equilibrar mesmo assim as contas públicas?
            Quando começaram a surgir os sinais de que nem todas as plantas do jardim do Palácio de São Bento eram orégãos, de que a propagada “devolução de rendimentos” era apenas um dar com uma mão e tirar com a outra (uma espécie de ilusionismo, não de feira, mas de alto coturno), de que a redução das estatísticas do desemprego beneficiava da emigração, de salários indignos, do trabalho precaríssimo e a tempo parcial – fizemos por não acreditar. Olhámos para o lado e assobiámos, não crendo que um sorriso tão patusco quanto o de Centeno, ladeado pelo smile tão de Buda ou marajá do amigo Costa, pudesse enganar a lusa gente.
            Quando o enfezado gato escondido começou a mostrar o seu rabo pouco limpo e menos firme, ainda estrebuchámos, depois de sentirmos um arrepio. Afinal, começava a cheirar a esturro. Fãs de Costa e da geringonça, mesmo assim fomos para o feicebuque mandar umas bocas e espumar, nem sempre com boa ortografia. Olhámos, todavia, para as outras agremiações políticas, para os seus capatazes e capatazas, e acabámos por suspirar como certos cônjuges traídos, dizendo para os botões da camisa ou da braguilha que, mal por mal, antes o Toni e os seus anexos, apesar de conhecermos de ginjeira o histórico da casa socialista. Poderiam mostrar uma face pouco digna e nada empática, mas ainda assim tínhamos na carteira o que faz falta. Poderiam exibir-se pouco ou nada competentes – a não ser na promoção social, política e financeira da primáfia, dos amigalhaços ou da clientela partidária e empresarial –, mas afinal, quando era preciso músculo, a erecção lá aparecia, ainda que alimentada por comprimidos.
            De vez em quando, o grilo falante azucrinava-nos a consciência. Fomos fazendo a barrela. Afinal, não custava nada vociferar que “é tudo a mesma canalha… mas antes este que o Passos… sempre nos deu mais alguma coisa…” Em segredo, contudo, no outro ombro havia sempre o atávico diabinho que nos levava a compreender a corrupção e o tráfico de influências: “Bem faz ele e os seus quando se amanham… Nós se lá estivéssemos faríamos o mesmo… A família é para ser ajudada… E quem não gosta de ser agradável ou de fazer um favor a um amigo? Somos gajos porreiros.”
            Quando vimos o governo e os seus acólitos espezinhar e difamar os funcionários públicos, sobretudo os polícias, os militares, os professores, os enfermeiros e vários outros profissionais – batemos palmas. Afinal, não passam de malandros que ganham demasiado para o que fazem. “Que vão para a gaja de maus costumes que os pôs no mundo! Chulos! Deviam ser proibidos de fazer greve… para baixarem a bolinha!” Quando a musculatura do governo se atirou aos estivadores, aos camionistas e a outros trabalhadores, batemos as palmas ao CEO do país e aos seus moçoilos e moçoilas. “E se fosse contigo…?” Que raio de pergunta nos haveria de assaltar! Se um dia precisarmos de reivindicar os nossos direitos ou melhorarmos as nossas condições de trabalho, logo se vê. Somos gente séria, não safardanas como essa malta que quer parar as instituições, a economia, Portugal.
            Diz-se pelas esquinas que uma boa parte dos portugueses é como aquele sujeito que, traído às claras pela mulher com um empresário que lhe pagava as contas de casa, afirmava sem vergonha aos amigos: “Cornos que deitam azeite, deixam-se crescer…” Haja capital, próprio ou alheio, e o resto que se lixe. Direitos laborais, bom nome alheio, liberdade de expressão, educação de qualidade e outras bizantinices interessam pouco ou nada, desde que haja circo, deboche e pimbalhice em barda, barriga a transbordar, passeio, carro novo e gadgets. O resto são cantigas e parvoíces de quem se mete em políticas.
            Diz-se pelas esquinas – mas eu não quero acreditar. Tenho todavia para mim que a larga malta que gere, bem ou mal, este país acredita na nossa falta de ética, dela se aproveitando às escâncaras. Se assim não fosse, continuariam a reinar, a gozar impunemente com as nossas caras? Se assim não fosse, continuariam a dividir os portugueses, atirando-nos uns contra os outros? Dividir para reinar parece ser a máxima vigente. Não seremos todos parvos, mas lá que as papas e os bolos parecem surtir efeito, ninguém pode negar.

Ruy Ventura

(Editado na edição on-line do jornal "Público", de 13/8/2019.)


VÊM AÍ OS BÁRBAROS

        Reaccionários. Retrógrados. Fascistas. Racistas. Estúpidos. Bestas. Cavalgaduras. Monstros. Energúmenos. Bárbaros. Não há adjectivo vil que os nossos inimigos não mereçam. Para quê esgrimir argumentos com eles? É preciso calá-los, seja de que modo for. Se as mordaças mais subtis não funcionam, há que vergá-los à bengalada, à pedrada, à bastonada, se for preciso à catanada. A lei e a esperteza não aconselham o castigo físico? Então é preciso violentá-los, demolir a sua imagem pública, assassinar-lhes o carácter, apagá-los, usando e abusando dos melhores púlpitos existentes na praça pública. São guaritas de onde se podem apontar armas, que as palavras e as imagens são munições letais. Não são nossos adversários e, por isso, não merecem respeito. São inimigos. Não passam de obstáculos que tentam impedir o percurso das nossas máquinas de arrasto. Querem impedir a abertura de vias de sentido único que, a bem ou a mal, hão-de transformar todos os cidadãos em gente “cosmopolita”, “moderna” e “progressista”, sem “preconceitos”. E isso não podemos permitir.
         Ninguém precisa de fazer grande coisa para merecer o estatuto de inimigo, mais ou menos público. Nem é preciso ser ferrenho adversário do “progresso” e da “evolução civilizacional”, militando contra a necessidade de algumas “mudanças de mentalidade”. Basta duvidar. Basta fazer perguntas chatas ou incómodas nalgum lugar ou de alguma forma. Basta servir de “advogado do diabo” e pôr os seus ouvintes ou leitores a pensar. Basta, aliás, pensar pela sua cabeça e ter a veleidade de exprimir o seu pensamento. Na melhor das hipóteses, haverá sempre algum sósia daquele agente da PIDE que, nos tempos áureos da caquética senhora, dava bons conselhos aos presos, revestindo as suas palavras do melhor senso: “Para que anda o amigo metido nestas coisas? Tem opiniões? Diga-as à sua mulher, debaixo dos lençóis. Converse com os seus botões. Mas não cante de galo nos cafés. Evite essa mania de escrever nos jornais… Não se meta em políticas…” Na pior, terá doravante a vida negra, a não ser que alguém lhe guarde bem as costas.
         Nos tempos que correm, os inimigos já não são apenas gente diferente, com outros costumes, outra aparência (considerada “feia”), outros odores (inevitavelmente “fétidos”), com atitudes e costumes estranhos, ditos “incompreensíveis”. Tal percepção manipulada e manipuladora, bem analisada por Umberto Eco em 2008, serve sobretudo para a identificação de bodes expiatórios “numa sociedade que […] não consegue já reconhecer-se” e, por isso, recusando encarar os verdadeiros problemas que a vão corroendo, precisa de encontrar “um obstáculo em relação ao qual seja medido o [seu] sistema de valores”. Nesse “inferno na Terra” que a humanidade vai construindo ao desfigurar o Outro, ninguém está livre de se ver transformado, de um momento para o outro, num alvo a perseguir e a abater. Basta não alinhar em carneiradas. Basta ter a coragem de vociferar que o rei vai nu ou possuir, pelo menos, a capacidade de apontar em público as contradições, as falácias, as consequências nefastas ou o retrocesso ético e moral dos caminhos mais apontados e seguidos.
         Ninguém ignora o que vai sucedendo na praça pública ao bom nome de quantos apontam semelhanças entre o sistema de quotas na política e a pretérita “Câmara Corporativa” da constituição de 1933, dos que se opõem ao revisionismo histórico, daqueles que são contra o aborto ou a eutanásia, dos que denunciam o tráfico de influências nas mais diversas instâncias do país, de quantos têm posto à vista o nepotismo e a endogamia que rasuram a igualdade de oportunidades, dos homens e mulheres que não confundem a ecologia com a imposição de estilos de vida, dos cidadãos que vão pondo a nu a erosão do mundo rural e da sua identidade, das vozes que afirmam ser a “discriminação positiva” em muitos domínios uma recusa da valorização do esforço e do mérito e um ataque à igualdade de oportunidades, de quantos continuam a defender que todos os cidadãos são iguais nos seus direitos e nos seus deveres, seja qual for a sua origem, a sua residência, a sua cor, o seu estatuto económico e social ou a sua identidade cultural.        Neste momento da nossa civilização, em que “Ninguém conhece que alma tem, / Nem o que é mal nem o que é bem”, é frequente vermos os promotores, conscientes ou inconscientes, da barbárie e os seus acólitos qualificarem os outros como “bárbaros”. Sempre que “o inimigo não existe, há que construí-lo”, como bem viu o autor de Cinco Escritos Morais. Erodida ou destruída a hierarquia de valores, é mais fácil reinar estando o mundo dividido e, sobretudo, confundido e confuso. Há quem tenha consciência disso e dessa via tortuosa e esburacada se aproveite.
         Continua actual a análise apresentada há uns anos por Agostinho da Silva. No seu ensaio “Bárbaros à Porta”, publicado n’ As Aproximações, avisou-nos de que “[…] a língua do verdadeiro entendimento, da fraternidade, da convivência, das ideias mais sugeridas que impostas […]; a língua, quase diríamos de silêncio, que levava a que se entendessem os espíritos sem que de mais vibrasse o ar, vai sendo cada vez mais sufocada pelos que sabem gritar […]; a época é de vitória para quem empurra e clama […]”. Segundo o filósofo, essa barbárie – de braço dado com as mais variadas formas de gritaria e de ruído, num mundo em que “tudo o que não for compreendido será destruído” – “não se caracteriza nem por uma raça nem por um credo: é uma forma generalizada de comportamento humano. E todas as circunstâncias são de molde a favorecer a sua vitória: uma vitória temporária, mas que pode durar séculos”.
         A razão está portanto do lado daqueles que têm apontado no nosso tempo e no nosso espaço uma muito grave erosão da democracia, logo da dignidade da pessoa humana. Para aquilatarmos o que está a suceder, já não chega identificarmos e arrolarmos as mais habituais formas de exclusão económica e social. Temos de saber identificar e expor em público aqueles que as exploram e, dizendo combatê-las “generosamente”, antes contribuem para a sua manutenção transfigurada por muito mais tempo, ao manipularem as legítimas expectativas dos seus semelhantes, transformando-as em material de construção de um poder discricionário. Não têm qualquer intenção nem vontade de resolver seja o que for. Tudo tem, na sua estratégia, o mesmo valor instrumental. Os outros, sejam eles quem forem, não passam de degraus que pretendem pisar e subir o mais depressa possível e sem quaisquer atropelos pelo caminho. Nem que seja espezinhando a cabeça daqueles que ousarem levantá-la. Nem que seja qualificando como “bárbaros” ou inimigos, sem direito à cidadania plena, todos quantos atentarem contra o seu desejo de domínio ou de manipulação.


Ruy Ventura

(Editado no jornal Público, edição on-line, a 19/07/2019.)


UMA FÁBRICA DE DESIGUALDADES

            "Ainda bem que já estou de férias!”
            A frase não me surpreendeu. Apesar de estudioso e bom leitor, o meu filho é um rapaz saudável e, como todos os outros, aspira pelo tempo de piscina, praia, passeio, televisão e outros divertimentos. Não dei andamento à conversa. Para minha surpresa, o miúdo resolveu no entanto desabafar enquanto punha a mesa e eu temperava a salada.
            “Até que enfim estou livre daquelas ‘oficinas’ em que levámos o ano inteiro a fazer projectos e nunca saímos do mesmo sítio... Uns trabalhavam e outros ficavam a ver. O costume... Nas apresentações ninguém se preocupava se estava bem feito ou não, se tinha sido copiado da internet ou escrito por nós... Além disso, eu pensava que os projectos eram para fazermos coisas úteis, giras... O nome engana... ‘oficinas’... São uma seca e das grandes!”
            Resolvi dar-lhe alguma atenção, mas silenciosa. Sem que eu lhe perguntasse coisa alguma, do alto dos seus onze anos, não teve papas na língua:
            “Os professores andam aborrecidos. Toda a gente vê. Não os deixam dar as aulas como querem e não têm tempo para dar a matéria toda. Fica sempre a meio, agora com a mania das disciplinas semestrais… Eles tentam disfarçar, mas nós bem vemos o que está a acontecer. Dizem que para o ano que vem as aulas vão ser todas assim. Só projectos e trabalhos de grupo. Que raiva! Estou mesmo a ver no que vai dar... Mas nem quero pensar muito nisso. Já estou de férias. Quem me dera que as aulas normais voltassem e acabasse esta porcaria que inventaram para aí.”
            Perguntei-lhe se era o único a pensar assim. Poderia ter chamado a irmã, avançada um ano nos estudos, mas quis saber o que ele me responderia.
            “Não sou o único a dizer isto. Os meus colegas estão fartos como eu e só aqueles que não se importam com nada é que andaram contentes porque não precisaram de fazer nenhum. Trabalham uns e eles assobiam, portam-se mal nas aulas e chateiam toda a gente, porque sabem que vão passar na mesma... Ninguém chumba no meu ano nesta escola, mesmo que faça porcaria e não aprenda. A directora diz que chumbar dá mau nome à escola... Que temos de acabar com o insucesso…”
            A interrogação final veio de chofre: “Achas justo? É justo dar o mesmo prémio àqueles que trabalham e àqueles que não se ralam e não querem trabalhar?”
            A opinião do catraio não me apanhou desprevenido, confesso. Já ao longo do ano lectivo notara um certo desalento no miúdo quando se aproximava o dia das “aulas diferentes”. Ia como cão por corda para a escola. A irmã, tanto quanto me era dado ver e ouvir, tinha o mesmo sentimento. Em conversas com outros pais e encarregados de educação, das suas turmas e de turmas diferentes, fui-me apercebendo de que era um sentimento alargado. Também conhecia a opinião de um grupo alargado de professores daquela escola. Ano após ano, várias dezenas tinham saído da instituição, mesmo tendo-lhe dado uma, duas ou até três décadas de serviço e dedicação. Muitos dos que permanecem no “degredo” desejam, dizem, seguir o mesmo caminho, perante as atitudes da tutela e da gerência. Pura e simplesmente, não aguentam – segundo afirmam – as pressões diárias de que são alvo para porem em prática uma “doutrina pedagógica” com traços totalitários.
            Não foi inesperado o desabafo do miúdo. Mas deixou-me porém preocupado,  sabendo eu o que é possível fazer e desfazer com os cinquenta por cento de autonomia que o governo quer “oferecer” às escolas, em troca da aplicação cega e militante da “flexibilidade curricular”. Também eu sou professor, embora tenha a graça de leccionar num Agrupamento de Escolas onde ainda vai reinando o equilíbrio, o bom senso e a sensibilidade humana. Como docente, consigo todavia ser camaleão, se for necessário. Como pai, a minha grave inquietação vai crescendo.
            Com as mãos livres e acalentadas pela 24 de Julho, há dirigentes escolares que estão a pôr em prática uma autêntica anarquia educativa, travestida contudo pelas melhores intenções, que não passam de vassouras para esconder os problemas que existem na nossa escola pública. E não lhes faltam coadjuvantes ou cúmplices: alguns docentes que esperam receber benesses (no horário, na distribuição de serviço ou quiçá em viagens ao estrangeiro, pagas pela União Europeia) e alguns pais que não enxergam um palmo à frente do nariz. Bom seria que alguém verificasse se os dirigentes escolares mais ferrenhos na aplicação da nova via “pedagógica” não serão muito próximos do partido do governo (ou mesmo seus militantes); há quem diga que sim. Não é por acaso que, para estranheza de muitos e estupefacção de alguns, dois dos secretários de estado do Ministério da Educação marcaram presença conjunta (!) na inauguração (!) da remodelação parcial (!) de um dos blocos de salas de aula de uma das escolas mais fundamentalistas na aplicação da “flexibilidade”… Não há almoços grátis, como se diz por aí.
            Vítimas de teorias e práticas pedagógicas que já eram velhas há quarenta anos atrás, porque lhes dão jeito para camuflar o insucesso que realmente existe e continuará a existir por este caminho, há escolas (e cada vez são mais) que vivem um autêntico PREC educativo, com traços de maldade e insanidade, cujas consequências plenas são ainda difíceis de alcançar. Uma delas é todavia evidente. Os alunos com bom respaldo familiar conseguirão sobreviver a tudo isto, com grande dispêndio de tempo e de dinheiro, que não há outro modo de compensar o que lhes é tirado nessas escolas públicas. Alguns, filhos de agregados mais abonados, partirão para bons colégios privados – onde a conversa é outra… Aqueles a quem falta o dinheiro ou a família ou tudo isto junto serão vítimas a médio prazo de uma escola que, assim, se demite de lutar contra as desigualdades, em benefício de uma “inclusão” que é, na realidade, exclusão social ao longo da vida.
            Os colegas dos meus filhos que não fazem testes de avaliação, que se alegram por passar de ano sem trabalhar e sem melhorar o seu comportamento, que deixam de ter aulas baseadas no conhecimento sólido dos seus professores, que não são treinados para o esforço que o estudo implica e implicará sempre, que são vítimas da “flexibilidade” e da “inclusão”, poderão agora exultar com as suas famílias, alheados do que se passa, do que motiva esta “nova pedagogia” e dos seus resultados futuros. Estou certo disso, porque os vejo, os ouço e converso com alguns dos seus pais. Os efeitos futuros não serão, todavia, algo que seja bom de ver. Sem se terem habituado à exigência, ao trabalho, à atenção, à concentração e ao estudo – enganados por sereias maviosas e sorridentes que, desse modo, dizem “levar habilmente a escola rumo ao sucesso” – ver-se-ão a braços com uma violenta e frustrante desigualdade de oportunidades. E tal não é digno de um país que afirma defender a dignidade de todos os seres humanos.


Ruy Ventura



CARTA ABERTA A JOÃO MIGUEL TAVARES

Caro João Miguel,
Tomo a liberdade de tratar-te por tu. Somos afinal conterrâneos, apesar de não nos conhecermos. A nossa idade é muito próxima. Imagino que, como eu, tenhas nascido no velho Hospital da Misericórdia, em pleno Rossio portalegrense; tu, em Setembro, eu dois meses depois. Escrevo-te depois de ter escutado pela televisão, comovido, a tua intervenção como responsável pelas comemorações do Dia de Portugal. Não poderia deixar de fazê-lo ao ouvir-te evocar o teu avô que, ao fundo da Rua de Elvas, dava sopa àqueles que dela precisavam, ao sentir o significado daquela casa ao cimo da Avenida Frei Amador Arrais que foi e é a tua e, sobretudo, ao ter contido com alguma dificuldade as lágrimas quando te ouvi mencionar o destino de tantos portalegrenses que, para cumprirem o seu destino, se viram obrigados a deixar o seu concelho.
Poderia ficar por aqui e agradecer-te, com a maior profundidade. Mas cortaria metade da verdade. Poderia dizer que o meu destino foi igual ao teu e ao de tantos da nossa terra. Mas não contaria a história toda, porque é mentira.
Se bem conheces o nosso concelho, e acredito que sim, sabes que o destino daqueles que nasceram e cresceram com a democracia não foi igual para todos. Os filhos do funcionalismo público e das elites locais, seja lá isso o que for, nascidos e criados na cidade, nunca tiveram o mesmo tratamento que os filhos dos operários, das costureiras e dos pequenos agricultores que tiveram como destino crescer nas aldeias da serra e dos arredores. Os sacrifícios, acredito, seriam semelhantes em cada família; mas enquanto os sacrifícios da classe média citadina podiam oferecer aos seus a universidade, fora de Portalegre, quem vinha de outros meios era obrigado a contentar-se com os cursos ministrados pelas escolas do Instituto Politécnico de Portalegre, mesmo que tivesse notas e capacidades para marchar até outras paragens. Como dizia uma grada senhora, era uma espécie de prémio de consolação.
Estou grato à democracia por ter criado instituições de ensino superior em pequenas cidades de província; se assim não fosse, ter-me-ia ficado pelo ensino secundário e ver-me-ia transformado num apagado empregado bancário ou de secretaria, talvez num contabilista, mesmo que tivesse asas para outros voos. Assim sendo, filho de um operário da Robinson e de uma costureira, vindo das serranias das Carreiras, não tirei (é certo) o curso de História que sempre ambicionei ou o de Geografia e Planeamento Regional para o qual tinha altas classificações, apesar de ter sido um dos agraciados com o Prémio Francisco Fino para os melhores alunos do secundário do nosso município, mas desenrasquei-me com uma licenciatura em ensino de Português e Francês, tirada na nossa cidade, porque para ela ainda ia havendo dinheiro, sabe Deus com que esforço e privações, embora para mais fosse impossível. Sem cunhas e sem parentes que me abrissem a porta fora de Portalegre, tive de me contentar com o que havia e dar o meu melhor, sabendo bem demais, mas tentando esquecer, que partia para a meta da vida numa posição diferente da de outros meus conterrâneos...
Foi no final dessa licenciatura que comecei a tomar consciência de outra realidade. Aluno no último ano do nosso saudoso Carlos Garcia de Castro, poeta grande cujo mérito, refugiado na interioridade, nunca foi reconhecido como deveria ter sido pelo "meio literário", foi ele quem me abriu os olhos para o que Portalegre era há 25 anos e, infelizmente, continua a ser. Nunca esquecerei a sua frase: "Concorra para sair daqui. Nesta terra nunca lhe perdoarão ser filho de um operário e de uma costureira." Concorri, mas passados anos caí na tentação de aceitar um convite para regressar. Durante três anos, fui professor na instituição de Ensino Superior onde recebera a minha formação inicial. Seduzido para a política por estratégias ardilosas, estive quase a entrar para o partido que agora nos governa. Acontece que, no momento decisivo, me deu para ser independente e recusei atravessar para esse lado. Paguei caro. Não tardou muito que deixasse de haver lugar para mim e, apesar de ter o meu mestrado concluído e iniciado o doutoramento, fui preterido. Eu tive de regressar ao exílio e quem ficou, apenas com a licenciatura (!), teve o lugar garantido durante vários anos, talvez por ser filha de um ex-autarca do Partido da mão fechada. Só então percebi tudo quanto Carlos Garcia de Castro me dissera. Em Portalegre, cópia em miniatura do Portugal que abomina o mérito e tu hoje denunciaste com a firmeza que te conhecemos, não se perdoa a falta de currículo familiar e muito menos pensarmos pela nossa cabeça, sobretudo se isso fizer sombra a alguém bem instalado ou puser em causa o seu pequeno poder ou a sua mediocridade.
Sou hoje um portalegrense exilado que bem gostaria de curar-se dessa doença que se chama Portalegre. Teria uma vida muito mais tranquila. Não nego: o exílio tem-me trazido muitos momentos felizes, algumas alegrias que nunca atingiria se tivesse ficado pelo Corro lagóia. Mas, confesso-te, são alegrias amargas que, a cada momento, me recordam essa condição de migrante por vontade alheia. A minha árvore tem raízes e custa-me saber que os seus frutos são colhidos por outros porque da minha terra existe uma incessante e nefasta ventania que lhe vergou o tronco e fez crescer a copa noutra direcção.
Sabes, João, ao ouvir o teu discurso de hoje - que só não me fez verter lágrimas porque, caramba!, um homem não chora - vi pela televisão os meus pais aplaudindo-te. Também devem ter sentido fundamente as tuas palavras, lembrando o seu filho único que a várias centenas de quilómetros as ouvia. Portugal ainda é uma Portalegre ampliada, porque, como dizia Raul Brandão a propósito de Gomes Freire de Andrade, aqui não ganham os inteligentes, mas (para nossa desgraça colectiva) os mais espertos.
Bem hajas pelas palavras que tiveste a coragem de dizer. Espero que a voragem deste país não as apague tão depressa. Um abraço firme e comovido do teu conterrâneo