Mostrar mensagens com a etiqueta Frei Agostinho da Cruz. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Frei Agostinho da Cruz. Mostrar todas as mensagens



APESAR DE TUDO, A LIBERDADE

Ruy Ventura

         Sinto a doença à minha volta e à volta dos meus. E, nesta reclusão involuntária, lembro-me de Trujillo e de suas altas torres. Não de todas, mas de uma que, na sua delgada altivez, se assumiu como mirante.
         A terra de Pizarro sempre me pareceu estranha. À sua volta quase não distinguimos vegetação e, no meio da planura, alcandora-se a rocha; sobre ela, ruas e casas que nada arranca dali. A cidade é pontuada por estreitas construções de pedra, emergindo do meio de habitações mais baixas, servidas por ruas estreitas. Parecem árvores sem grande ramaria que procuram um sol que lhes permita o crescimento. Talvez cactos gigantes, como o do Convento da Arrábida, hoje com vários metros de altura e transformado em madeira dura. Vemos campanários, torres evidenciando soberbas senhoriais, locais de vigilância militar e, no centro imaginário de tudo, meio coberto por heras que não param de subir, o “mirante das Jerónimas”. Diz-me um guia que foi torre defensiva, sobrevivendo a um derruído palácio que depois foi eremitério. Não tenho dados para confirmar ou contrariar. Pela sua configuração, permite o resguardo e ao mesmo tempo a longa contemplação da distância, cuja leitura nos permite encontrar melhor o infinito. O edifício a que pertence é ainda hoje habitado por monjas da ordem religiosa que tem como patrono o santo tradutor da Bíblia para latim. Sem nunca lá ter entrado, tenho recordado muito o seu perfil no mundo e fora do mundo. Talvez por sentir, pela primeira vez (embora obrigado pelas circunstâncias) o que seriam o olhar e a vida daquelas mulheres que dos mirantes faziam observatório, oratório, salvaguarda e farol. Em Trujillo, como em muitas e muitas partes do mundo.
         Não sei se elas viam o mundo como ameaça, como via infectada pelas mais diversas enfermidades morais e corporais de que queriam fugir. Os seus textos dizem-me que sim, mas nem sempre há concordância entre a letra e o espírito. Já se estudaram muitas dessas comunidades e sabe-se hoje que muitas das mulheres que aí se acolhiam por vontade própria o faziam para fugir da violência que as despersonalizava e, de algum modo, matava. Eram lugares onde conseguiam uma liberdade acrescida, liberdade que para algumas delas se transformava numa escada por onde subiam à libertação maior que era ter saudade do infinito e, nele, de Deus. De modo distinto na forma, mas afinal semelhante nas intenções, foi essa purgação e essa fuga que moveram também tantos homens a tornarem-se eremitas – organizados ou não em comunidade – nas mais variadas parte do mundo. Como na Arrábida, onde Frei Agostinho da Cruz (1540 – 1619), franciscano-poeta convivente e vivente de um cristianismo depurado, à sombra de grandes vultos como São Francisco de Assis ou Erasmo de Roterdão, soube enaltecer uma vida pobre, afastada e mais livre: “Agora dei a volta por caminhos / De solitários bosques enramados, / De feras bravas, mansos passarinhos; // Que ainda que entre espinhos conversados, / Mais quero pé descalço entre espinhos, / Que dos homens humanos espinhados”.
         Nestes dias estranhos, em que fomos forçados a uma existência de espera e de suspensão, rodeada pelo perigo, vivemos quase todos em reclusão. Vivendo, apesar de tudo, num lugar privilegiado, senti este confinamento como uma prisão domiciliária. Nem as exigências da tutela do meu ministério – ficcionando uma escola que de facto está parada e não pode ser substituída por um “novo paradigma tecnológico” (que prejudica sobretudo os alunos pobres, sem recursos materiais e sociais) – me fizeram desligar desse incómodo sentimento de pena maior, apesar da ausência da pulseira electrónica. Fui tentando, com os meus, ocupar o tempo, distraindo-me. Cumpri obrigações. Correspondi a devoções. Descobri tarefas sempre adiadas e que, agora, viram finalmente a sua concretização chegar a bom porto. Um arbusto finalmente cortado. As ervas do quintal arrancadas, ao fim de meses de selvagem crescimento. O pó do escritório erradicado, depois de tanta preguiça. O artigo que pelos vistos avança, após tantos pedidos ouvidos mas não escutados. A leitura retomada. O filme redescoberto e, no reencontro, aquela peça musical nunca atendida… Sem largar o medo, lutei e luto contra o medo, sabendo que o temor não irá impedir a entrada do vírus, se ele tiver de entrar e fazer das suas. Nada disto era, todavia, capaz de pelo menos atenuar o toque das grades numa gaiola invisível.
         Até que resolvi redescobrir a varanda do primeiro andar que, não fossem as restrições da arquitectura do bairro, já teria desaparecido. Pela manhã, depois de uns minutos de conversa com o miúdo, resolvi deixar-me estar por ali. A ler. Coisa que nunca ali fizera, pela falta de resguardo que sentia retirar-me a privacidade para mim inerente ao acto de leitura. Quase sem gente pelas ruas, desta vez afoitei-me com o livro na mão. Senti-me como as monjas jerónimas do mosteiro de Trujillo, mesmo sem ter a sua virtude nem a sua torre nem o seu horizonte. Tudo se tornou mais leve, mesmo sem afastar da mente o chumbo que nos domina e condiciona. Virei-me para sul e, acompanhado pela passarada, sobretudo por uma família de corvos pela qual tenho particular afeição, redescobri no horizonte essa Serra que nos “move a contemplar mais fermosura”.
         Afinal, “não há melhor manjar que liberdade”, como diz o poeta-frade que nasceu há 480 anos. Mesmo que só possamos comer o que resta do açambarcamento diário nos supermercados, mesmo que nos vejamos obrigados ao recolhimento que talvez seja apenas uma forma de salvaguarda, mesmo que as perdas nos angustiem, só tendo o poliedro da liberdade no pensamento conseguiremos transformar a reclusão em clausura, encontrando novas formas de resistência e de elevação. Talvez consigamos, assim, ver no “hortus clausus”, no horto fechado da nossa casa e das nossas vidas (afinal povoado por muitas ínfimas alegrias a descobrir), um lugar propício onde o vazio e o abalo destes dias se transformem em detergente. Talvez assim sejamos obrigados a limpar de nós e desta civilização muita da sujidade que, há demasiado tempo, vai entupindo os nossos poros, impedindo a nossa mais subtil respiração. Talvez. Não sei. Não obstante, assim desejo. E nesse desejo creio ser acompanhado por muitos.


Editado no jornal "Público", edição on-line (21/3/2020):
https://www.publico.pt/2020/03/21/politica/opiniao/apesar-liberdade-1908677


O VERDADEIRO POETA
DA ARRÁBIDA É DEUS


Setúbal, 20 de ago 2013 (Ecclesia)

O verdadeiro poeta da Serra da Arrábida “é Deus” considera o professor e escritor Ruy Ventura referindo-se ao local em Setúbal, que inspirou obras portuguesas.

Para o docente “esta serra é por si só um poema” e “os autores que têm escrito sobre ela apenas a têm interpretado e colhido a sacralidade que envolve todo o espaço”, afirma em declarações à Ecclesia, notando que a Serra da Arrábida “não se oferece logo na primeira visita” mas necessita de “constante revisitação”.

Ruy Ventura recorda Frei Agostinho da Cruz e Sebastião da Gama como dois poetas que usaram como inspiração o misticismo da Arrábida: a poesia de Frei Agostinho da Cruz “artisticamente é muito mais construída”, enquanto que a de Sebastião da Gama “é como se fosse um diamante por lapidar.”

O poeta Ruy Ventura não deixa de notar que a poesia de Sebastião da Gama “precisa urgentemente de uma edição completa” revelando a existência de “dezenas de poemas inéditos”.

“A saudade é a síntese entre a esperança e a memória” é a frase declamada por Ruy Ventura para explicar a conotação de “altar dos poetas” que atribui à Serra da Arrábida, tendo em conta essa saudade que é “a memória do passado e a esperança num futuro sempre mais elevado”.

Setúbal, 21 de ago 2013 (Ecclesia)

O professor Ruy Ventura afirma que a obra do Frei Agostinho da Cruz sofreu uma “mudança”, originalmente de uma “produção profana” para se tornar num poeta “profundamente religioso”.
Frei Agostinho “nasceu no dia de Santa Cruz de 1540 e tomou hábito no mesmo dia em 1560, no convento de Santa Cruz de Sintra”, declara Ruy Ventura ao programa Ecclesia, dando conta de que este autor foi “sobretudo um professor da Cruz” professando uma “grande devoção à Cruz de Cristo”.
“É um poeta da meditação”, revela o professor, notando que Frei Agostinho da Cruz “viveu numa época muito conturbada” e muito “semelhante á nossa”.
Ruy Ventura não deixa de apontar que Frei Agostinho abandonou o “mundo material para se ligar ao mundo espiritual”, resultando o seu trabalho “numa poesia de opções”, onde o autor “vê o mundo vão e prefere o mundo espiritual”.
“Serra sagrada” é como Ruy Ventura define a serra da Arrábida, em Setúbal, que serviu de grande inspiração a Frei Agostinho.



http://www.agencia.ecclesia.pt/cgi-bin/noticia.pl?id=96672


COMENTÁRIO DE UM LEITOR:

 Vou pedir ao Ruy Ventura que me permita um comentário de simpatia à sua inspirada frase de que “O verdadeiro poeta da Arrábida é Deus”. Como acontece com Assis, Capri, Corcovado e outros raros espaços do orbe, a Arrábida é um topos especial. Um lugar que é muito mais que um espaço físico. É comum o visitante sentir ali uma coceirinha mística que teria vontade de exprimir da maneira mais própria. Vontade que na maior parte dos casos fica no balbucio ou no silêncio místico de contemplação, na admiração e no espanto. Vontade que termina por se reduzir a uma impressão indizível, ou a um estranhamento íntimo que não encontra na palavra uma sintaxe racional que exprima totalmente a impressão registrada na alma. Poetas de renome como Frei Agostinho da Cruz, António Manuel Couto Viana, Sebastião da Gama e outros cantaram a mística serra. Através da linguagem escrita deixaram impressões, canções, elegias, exclamações, saudades. Mas uma coisa é a retórica estilística com finitos giros oferecidos pela língua literária e comum e outra coisa é a realidade em si da Arrábida e a força íntima que dela se desprende. Neste caso, declarada a limitação da linguística verbal, resta pedir a intervenção da semiótica para que com base em sinais e indícios ela própria construa outro tipo de linguagem que melhor exprima a sensação ou a impressão mística com que a Arrábida nos enche o coração. Dentro desta perspectiva parece ser inteiramente pertinente lembrar e repetir a feliz frase de Ruy Ventura quando diz que “O verdadeiro poeta da Arrábida pe Deus”…Explicando melhor: o espectáculo da natureza e o encantamento da Arrábida é de tal ordem que não há poeta que tenha uma linguagem própria e capaz para exprimir as grandezas transcendentes da Arrábida. Esse espectáculo, convertido em linguagem, mostra que ali só há um poeta com dicção própria: seu Criador, Deus. Quando o franciscano S. Boaventura escreveu o ” Itinerarium mentis in Deum” (Itinerário da mente para Deus), em pleno século XIII, estava nos dizendo que o mundo é não apenas um espelho de Deus mas também um caminho cheio de sinais para o reconhecer como seu Autor. A mesma tese que Ruy Ventura nos está lembrando em bom português, ao exaltar a Arrábida como uma das maiores belezas de Portugal, ao dizer que:”O verdadeiro poeta da Arrábida é Deus.”

João Ferreira

Brasília,10 de setembro de 2013
 http://circuloantoniotelmo.wordpress.com/2013/09/10/ruy-ventura-na-agencia-ecclesia/