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NATAL SEM TEMPO

Sempre que quero explicar aos meus alunos o que é o Natal, socorro-me da língua inglesa. Não sendo eu professor de tal idioma, os miúdos estranham, mas depois lá vão entendendo as veredas tortuosas por onde me proponho levá-los. Normalmente, ao fim de alguns minutos, abrem os olhos ou a boca e começam a entender. Mesmo que não sejam cristãos ou tenham uma família cristã, percebem o que está em causa e começam a joeirar o lixo de que se vêem rodeados todos os dias, encontrando o que é mais importante. Acontece-lhes mais ou menos o mesmo quando, usando a de novo a língua dos anglos (que, como disse São Gregório Magno, andam bem próximos dos anjos, ainda que deles se esqueçam), os levo a entender quem foi aquele homem que a água suja do tio Sam vestiu de vermelho para desprezar o Encarnado, trocando a generosidade por milhões de dólares. 
O Natal trata de um nascimento e do nascimento de alguém que mereceu chamado Cristo ou Messias. De um nascimento que mudou a humanidade e, sendo Ele caminho, continua a mudar, mesmo quando não damos por isso. A atenção é uma virtude que se vai desfazendo e é, por isso, normal que andemos de cabeça no ar, muito preocupados com imensas coisas, esquecendo a mais importante. Se Ele, através do ínfimo que é, não continuasse a oferecer-nos a mudança e, por ela, algo de inefável a que podemos chamar "esperança", "amor", "justiça" ou "paz", não valeria a pena deixarmo- nos incomodar pela Sua presença. Mais valeria voltarmo-nos para um altar panteísta ou argentário, para um qualquer bezerro contemporâneo (que os há em abundância e muito sedutores) e aí praticar as nossas devoções. Ou então ajoelhar perante a nossa fotografia ou perante o espelho, cultivando o mais extremo egoísmo e a mais abissal vaidade.
Dir-me-ão que isso mesmo está sucedendo nos nossos dias, em dimensão cada vez mais grave e preocupante. Que sempre foi esse o cerne da humanidade. Que isso nos está levando para a desgraça. Talvez seja verdade. Por isso mesmo, creio, é tão importante fitarmos o ínfimo que é Jesus menino e desprotegido numa manjedoura ou, se fosse hoje, numa qualquer tenda usada pelos sem-abrigo deste mundo, tenha ela a forma que tiver. Não interessa se a celebração é a 25 de Dezembro, recordando-O como "Sol da Justiça", ou se a põem noutro dia qualquer. É indiferente o calendário. O que não é indiferente é o seu carácter de semente, de divina semente, que nos dá esperança quando ela parece extinguir-se, que nos garante que "há mais mundos" (como diria o Régio) além da erodida existência quotidiana que nos rasteira e engana. O Natal não tem por isso tempo, porque Ele, bebé nascido para nos recordar - através das Suas chagas e da Sua morte horrenda - que Deus está connosco e com as nossas dores, nasce todos os dias, mesmo que não consigamos dar por isso. Incomoda-nos com a Sua presença. Chateia-nos. Espicaça-nos. Só por isso vale a pena deslocarmo-nos do nosso Eu e encontrarmo-nos com o Outro nos outros, deixando de ver o que nos rodeia como Isso, como um monte de coisas que bem podem ser descartadas e atiradas para a lixeira. Está nesse encontro talvez a nossa última hipótese de salvação. Será bom não andarmos distraídos.

RV 
(em memória do António Fournier (1966 - 2019), nascido e falecido no dia de Natal)

Publicado na página Sete Margens, a 26/12/2019.

NATAL INCÓMODO

         Em minha casa, o período natalício inaugura-se com uma ida ao campo, onde a família apanha musgos e ramos de variada vegetação para com eles montar e ornamentar o presépio. Se ainda é fácil encontrar a indispensável gilbardeira, com as suas bagas vermelhas nascidas de folhas duras e espinhosas, vai sendo cada vez mais difícil encher o balde com o tapete que há-de fingir um chão verde e fresco. Andamos todos a pagar os desmandos da ignorância e da ambição desmedida e a Natureza vai dando sinais muito preocupantes... Neste ano, quando chegou a altura de colocar a imagem do Menino no lugar que lhe pertence, houve uma saudável disputa entre as crianças. Quem teria a honra de colocar "O mais importante" no seu lugar? Comoveu-me a solução encontrada pelos miúdos: cada um pegou em seu braço e assim desceu ao centro a imagem mais pequena, mostrando que o ínfimo pode bem ser expressão do maior, daquele que mais importa.
         Terminada a “obra de arte” efémera, divulguei pelos amigos e conhecidos o resultado, não resistindo ao exibicionismo ingénuo de que todos vamos sendo mais ou menos vítimas incautas. Horas depois, ao abrir a minha caixa de correio, estavam lá depositadas as palavras de um (verdadeiro) amigo. Sem vocativo nem despedida, percebi que tinham sido escritas após a observação das fotografias do nosso presépio. Não seria curial trazê-las para o domínio público, mas interessa-me registar que elas me recordaram, picando-me, como se fossem um pampilho dos campinos ribatejanos, o que mais importa no Natal: o ínfimo que alcança a suprema importância.
         Época de alegrias, de felicidade - mas também de euforias fabricadas, manipuladas pelo consumo -, o Natal leva-nos, frequentemente, ao esquecimento daqueles que assim não sentem, travando diariamente uma terrível luta com a angústia, com o vazio ou com o negrume, mal conseguindo esboçar um sorriso perante as agruras da doença, do desemprego ou de uma dignidade perdida, tentando arranjar uma réstia de ânimo para se levantarem da cama sabendo-se alvo de injúrias e de incompreensões, querendo elevar o coração apesar de se verem sem tecto, sem alimentos dignos, sem uma companhia ao lado ou à distância, sem os seus entes queridos. Mesmo quando os lembramos nesta época de preparação para a festa do nascimento de Jesus Cristo, tantas vezes os olhamos como grãos de pó que é importante sacudir da lembrança, não vá ela ficar toldada (menos “alegre”) pelas suas nuvens incómodas. E, no entanto, foi sobretudo para estes nossos companheiros de existência que a encarnação do Divino Infante aconteceu e continua a acontecer, enquanto recordação rediviva e actuante. Bem sei que esse acontecimento milenar pouco ou nada interessa a uma sociedade onde o dinheiro é deus e rei, mas a verdade não tem outro conteúdo nem a festividade outro sentido, mesmo que o alheamento das luzes comerciais e financeiras nos tentem virar o olhar para lugares distintos e sentimentos menos nobres. Esquecer o sentido do Natal é esquecer tudo. Não há outro caminho. Ou somos incomodados por ele ou não vale a pena comemorá-lo.
         Nestes dias que nos conduzem à tão desejada jornada, teríamos certamente vontade de ser um pouco subversivos e, de uma vez por todas, substituirmos a correria pelas lojas por uma correria por muitos daqueles que precisam da nossa presença ou, pelo menos, da nossa palavra. De boas intenções está cheio o mundo inferior, pensarão... Muitos temos compromissos familiares ou sociais e facilmente, nestas semanas e naquela noite venturosa, esquecemos os que estão sós, sem ânimo ou com a sua dignidade erodida. Não é fácil irmos ter com eles ou trazê-los à nossa presença. Não é contudo difícil, no momento certo, marcarmos o nosso companheirismo com uma palavra oportuna ou, até, com um gesto ou com uma mensagem que vá além daquelas que mandamos por atacado a todos os nossos "amigos" que, tantas vezes, nem conhecidos são na verdadeira acepção do vocábulo. Se calhar será esse o momento mais alegre ou mais feliz da noite. O momento em que o Natal nos incomodou. Creio que sim. Afinal o Paráclito é aquele que nos espicaça e consola... (Espero, sinceramente, não ser como frei Tomás...)

RUY VENTURA