UM HOMEM BOM

por Ruy Ventura
(in "Raio de Luz", de 27/7/2017)

         Ao longo dos últimos vinte anos, Sesimbra foi um município afortunado. Nem todos os concelhos se podem gabar de ter tido à frente dos seus destinos dois homens bons, como Amadeu Penim e Augusto Pólvora. Não me refiro, como é óbvio, à bondade destes cidadãos e homens políticos exemplares que me habituei a admirar, mesmo discordando dalgumas das suas opções políticas, estratégicas ou pessoais. Tendo embora notícia das suas qualidades éticas e morais, nestes anos que levo de munícipe e, agora, amigo da digna Piscosa, não me sinto autorizado a tecer ditirambos a essa qualidade que, segundo rezam os testemunhos mais fidedignos, sempre lhes assistiu enquanto foram edis da capital da Arrábida e do seu território. Também não me refiro, como é óbvio, à bitola económica, fundiária ou profissional que, na Idade Média, seleccionava aqueles que podiam votar e ser votados nos órgãos municipais. Felizmente vivemos noutros tempos, nos quais a democracia, ainda que muito imperfeita, nos garante outros critérios na escolha de quem nos governa e na dispensa daqueles que nos vão desgovernando.
         Recentemente retirado do número dos vivos, Augusto Pólvora era para mim – e ficará sendo – um homem bom do seu concelho e da sua região. Posso afirmar, sem rebuço, que nisso foi um bom sucessor de Amadeu Penim, garantindo a continuidade de uma política autárquica que, na minha modesta opinião distante, soube aliar proximidade e empatia com o necessário rigor na gestão da causa pública, sendo simultaneamente humilde e estratega, atenta e proactiva. Em qualquer das personalidades, não creio que o seu legado possa ser reivindicado seja por que força política for, seja por quem for, sob pena de desrespeito ao trabalho que deixaram como património e como semente. Homens da terra, pela terra trabalharam. Tudo o mais foram ferramentas e circunstâncias de somenos, necessárias, mas secundaríssimas.
         Quando me ponho a recordar as memórias que guardo e guardarei do arquitecto Augusto Pólvora, só consigo lembrar alguém que amava, com todas as suas forças, a terra onde nascera. Filho de gente simples e resistente, daquela que o tempo longo foi ensinando a enfrentar a terra e, sobretudo, os abismos oceânicos, sentia-se nele um entusiasmo pelas coisas de Sesimbra que não era fácil encontrar noutros que o acompanhavam nas lides autárquicas. Segundo me contaram na sede do distrito, essa sua força conseguia impor-se nas reuniões decisivas, levando não só a água ao seu moinho, mas gerando sinergias que conseguiam dar lugar a uma visão mais aberta e integrada do território arrábido, a qual não dispensava a afirmação da importância da Península no todo regional e nacional. Nem sempre conseguiu fazer vingar a sua leitura – a democracia assim funciona –, mas pelo menos deixou-nos uma maneira de ver e de actuar que ninguém pode recusar, como testemunho recebido na corrida de estafetas que é a nossa existência.
         Não gosto daquele velho hábito português que limpa a memória deixada pelos defuntos das suas impurezas como quem lava um cadáver, antes de enterrá-lo. Se queres ser bom, morre… Não. Discordei bastas vezes das decisões das vereações presididas por Augusto Pólvora e nunca tal escondi, pelo menos durante os seis anos em que fui eleitor no município sesimbrense. Tal olhar não tolda no entanto a admiração com que fui lendo, ao longo do tempo, a sua personalidade humana e política. Além de tudo, amava a sua terra. Tive provas disso, embora modestas. Não foram poucas as vezes em que, pessoalmente, por escrito ou por gestos, manifestou o seu apreço pelo meu trabalho de investigador da sacralidade da Arrábida e das tradições religiosas sesimbrenses. Isso tenho a agradecer-lhe. Desses pequenos gestos recebi ânimo para continuar, reduzindo à sua irrelevância a atitude bem diferente de outros que poderiam ter agido com outra inteligência e abertura, nem que fosse por cálculo diplomático.

         Lembro, nomeadamente, o seu olhar entusiasmado na memorável sessão de 24/7/2014 na igreja da Misericórdia de Sesimbra, perante a voz magnífica de Teresa Salgueiro, perante a força da declamação de Maria Barroso e, também, perante as pobres palavras deste que vos escreve, enquanto defendia – aos pés do Senhor Jesus das Chagas – que Sesimbra é de pleno direito a capital da Arrábida. Outros fingiam ou cochichavam. Ele não. Bem sei que palavras me dirigiu no final do evento. Não as reproduzo. Guardá-las-ei no meu “arquivo” pessoal. Naquele dia, contudo, percebi melhor as razões que levaram o grande filósofo e grande sesimbrense Agostinho da Silva a defender que a política deve ser uma forma de santidade ou uma via a caminho da santificação. Basta que os representantes do povo, desde as juntas à suprema magistratura da nação, exerçam da melhor forma a sua bondade, tornando-se homens bons, inteiramente ao serviço do seu povo.


A OPINIÃO DE UM LEITOR: JOAQUIM MATA FERNANDES

Acabei de ler este interessante ensaio que me deu novas pistas para um melhor entendimento da poesia de Sebastião da Gama enquanto construtor de beleza, instrumento que se deixa vibrar por Deus nesse ambiente/ espaço sagrado que é a Arrábida. O seu autor, Ruy Ventura, é colega professor numa escola de Setúbal. Fico-lhe grato por esta abordagem que propõe uma leitura do poeta livre dos obstáculos biográficos e topográficos que se têm sobreposto, na crítica e na lecionação, à "carga simbólica" da sua poesia.

Fonte: https://www.facebook.com/photo.php?fbid=1603782299653645&set=a.451516101546943.103925.100000656713391&type=3&theater
(19/7/2017)


Acaba de ser editado no número 7 da Fátima XXI - Revista Cultural do Santuário de Fátima. Nele assino um ensaio intitulado "No coração da árvore", incluído no dossiê sobre o Imaculado Coração de Maria, coordenado pelo poeta, teólogo e ensaísta José Rui Teixeira.