Ruy Ventura e as viagens através do espelho
Nicolau Saião
in Arquivo de Renato Suttana, consultado em 3/12/2009:
http://www.arquivors.com/nsaiao22.htm
1.
Por vezes, atrás de nós, há um ruído insistente. Vamos por uma rua, estamos sentados na gare dum aeroporto, num café pouco frequentado, acabámos de nos levantar do banco de um jardim numa cidade estrangeira onde nos encontramos absolutamente sós ou, então, numa taberna de uma pequena estância balnear que visitamos pela primeira vez.
O ruído pode ser o de uma ferramenta manejada por um operário desconhecido, um animal enclausurado que forceja por se escapulir, uma qualquer máquina de que jamais veremos os contornos, o assobio intermitente de uma sirene de oficina ou de embarcação. Mais raramente, gritos abafados – que não identificámos ou que não sabemos de onde vêm.
Quem se esqueceu, quem pode olvidar a sensação de surpresa, de estranheza, de arrepio que esse barulho, quebrando a naturalidade do fragmento de quotidiano, despertou em nós?
Frequentemente, os poemas de certos autores são também assim: arrastam, suspendem, distorcem por um breve instante o mundo em que nos fixáramos, no qual excursionávamos ou que nos preparávamos para ocupar. São inquietantes, nostálgicos, palpitantes e, se nos sugestionam como a súbita aparição de uma paisagem desconhecida mas reconhecível, também criam em nós uma espécie de encantamento provocado por misteriosos filtros ou poções de secreta proveniência.
E afinal, para maior maravilha, tudo se passa no quotidiano. Tudo se revela, existe, projecta e vive a partir desse dia-a-dia em que as pessoas viajam, deambulam e se relacionam como se o fizessem num universo penoso ou fecundado pela alegria. Um universo concreto, onde existem sombras e luz.
Depois, tudo começa a existir nos livros e em nós enquanto leitores: de repente os poemas passam a pertencer-nos, tal como as visões das maiores aventuras que eles transportam. E, mais e melhor, afinal somos donos dos livros, essas máquinas de imaginar que a cada instante traçam no espaço rotas intemporais. Como num sonho (melhor, na realidade) somos habitantes dum país encantado, porque também as palavras que formam os versos, matéria aparentemente volátil, passam a ser tão nossas como um coração, um braço, as artérias ou a mão alucinada com que erguemos os sinais tempestuosos.
2.
O que mais me espanta neste autor (nesta pessoa) é a sua imensa disponibilidade, a sua curiosidade insaciável que o leva a explorar o interior pouco frequentado duma obscura loja de província ou de vila satélite, para ali descobrir por uma inflexão do destino livros há muito esperados e, depois, passar de repente para a audição de um disco de Bach ou de Haendel antes de elaborar um texto de reflexão política, efectuar um passeio à beira do Xévora, nos caminhos de S. Julião, conversando animadamente, a propósito de tudo e de nada, ao correr dos minutos: as aulas que irá dar, os projectos que procurará concretizar, aquilo que ouviu em Espanha ou encontrou em França – e sempre atento ao perfil melancólico ou ardente de uma árvore que de súbito palpita à beira do caminho ou, lá no fundo, que feição tem a água do rio que se espelha e as colinas que ainda se divisam sob o sol antes da chegada do anoitecer. Ou, nas suas horas, as meditações depois reveladas de como é o terror, de como é a miséria duma sociedade espúria e frequentemente concentracionária, de como é a graça e o privilégio de viver, de como é a esperança, o amor, a devoção à Terra. Tudo isto constitui a curiosidade dos verdadeiros poetas, o anti-academismo dos homens de carácter, a independência de espírito dos que sabem que, na verdade, tudo está em tudo, tudo contém o todo e por ele é propagado como um verso que atinge o cerne da vida renovada.
Na poesia de Ruy Ventura “as portas desaparecem com a noite mas as imagens ficam a meio da casa e a luz sobe para que possamos ver o seu rosto”. No seu mundo diário, que é um universo percorrido por acontecimentos e quimeras que cobram existência civil porque robustecidas pela vontade de tornar significativo o universo da necessidade, “há sempre alguém acenando para a mesa, um garfo ou somente um guardanapo traduzindo para a mesa o sabor da terra" e tudo existe livremente, mas gravemente – com a seriedade da vida que se escoa – "como se a noite fosse um sótão que há muito desapareceu”.
Em Ruy Ventura o homem inteligente e fraternal, a figura cívica de convicções e verticalidade que faz sombra a zoilos e a pequenos patifes – e por isso tem sido alvo de difamadores, de corruptos morais e de medíocres burlões – irmana-se com o poeta, ou seja: aquele que sabe reflectir, enquanto executa o seu mester, sobre a escrita e os seus meandros de temor e de serenidade, de busca e de encontro.
E por isso, para ele, decerto haverá sempre “uma luz que ao permanecer sob a água” será o seguro penhor de que mesmo que as casas se deixem, os tempos se abandonem à medida que os anos vão esgotando o nosso percurso, “há um tempo recuperado" e que sempre haverá, aberta e acolhedora, repleta de tempos a vir, "a porta que nos separava da terra”.
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Nicolau Saião
(no jornal caboverdiano O Liberal, 3/11/2005)
FIGURAS PORTALEGRENSES – RUY VENTURA
[...]
No princípio dos anos 90 – era eu funcionário na Biblioteca Municipal de Portalegre – , certa manhã fui procurado por um jovem dos seus 18 anos que a breve trecho da conversa percebi não ser pessoa vulgar. Vinha informar-se sobre etnografia da região e, pouco depois, a conversa orientou-se para os lados da poesia. Palavra puxou palavra e a dado passo, algo timidamente, o meu interlocutor disse-me que também fazia versos e que, interessado nas artes, até já vira quadros meus numa exposição havida pouco tempo atrás na galeria local.
Lá tratámos dos assuntos que o ocupavam e, passados uns dias, trouxe-me um caderninho com poemas escritos à mão que considerei atentamente.
Estebelecera-se um contacto que persistiu através dos anos e se cimentou depois de eu ter tomado conta da função de responsável directo no Centro de Estudos José Régio.
Estudante de excepção – trabalhador e muito informado, faria a seguir uma licenciatura e um mestrado em estudos literários – Ruy Ventura (nas.1973) continuou a escrever poemas que, em 1997, mereceram o Prémio Revelação/Poesia da Associação Portuguesa de Escritores pelo seu livro “Arquitectura do Silêncio”.
Hoje, o meu amigo e confrade é uma das vozes representativas da novíssima poesia portuguesa. Tal tem sido reconhecido por personalidades tão diferentes como Agostinho da Silva, J.O.Travanca-Rego, Amadeu Carvalho Homem, Marcelo Rebelo de Sousa ou, no estrangeiro, Antonio Sáez Delgado, Floriano Martins ou Gérard Calandre. Autor de outros livros de poemas, de traduções e de ensaios, RV é um companheiro esclarecido, talentoso e vertical – um homem de antes quebrar que torcer, como se diz em português vernáculo.
Foi ele que escreveu o texto que vai a seguir, celebrando nostalgicamente a sua vila de Carreiras – e assim inicio como prometera a cíclica apresentação de figuras notáveis da minha região alentejana.
“As ruas das Carreiras onde eu nasci (após ter visto a luz em Portalegre e sangue novo em Lisboa) já não existem. São outros os nomes, outras as pedras – que teimam em não deixar esquecer a calçada antiga -, outras as casas. Só o horizonte não mudou ainda: a mesma serra, o mesmo azul longínquo, os mesmos sobreiros rompendo por entre as lajes, a escola, rompendo a folhagem das acácias e das amoreiras.
Entre o número oito da rua da Fonte Nova e o número cinco da Calçadinha, pouco resta de há vinte e cinco anos.
A fonte perdeu alguns dos seus azulejos e deixou de ter malvariscos pelo São João.
A dona Maria José já não se preocupa com as suas dálias, algures entre as minhas duas tangerineiras. O ti’ João Narciso já não abre a sua meia-porta vermelha, nem a ti’ Bernarda fica comigo na altura das azeitonas.
O barro desapareceu hoje dos caminhos (assim como os escaravelhos, e os burros escorregando até em frente às ruínas da Casa da Carreirinha).
Do Chão da Amoreira, como eu ainda o conheci, ficou apenas uma nesga de terra apertada entre duas casas. Os castanheiros, os abrunheiros, o muro (quase segurando a oliveira), situam-se no mesmo lugar que hoje ocupa a casa da avó - amarela, com barras brancas, um botaréu cheio de craveiros, uma roseira fazendo esquina frente ao canto do lume, do outro lado da rua, entre as flores dos rapazinhos e a parede de pedra solta, há muito tempo esbarrondada.
O Ribeirinho é hoje só nome de rua. Já ninguém lava nas suas águas, empresadas junto de uma figueira velha. Desapareceu sob o alcatrão e a sarrisca, para dar lugar a uma estrada larga. Continuo, no entanto, a regressar a este espaço, como se regressasse chamado pela voz dos sinos, que tanto embalam os mortos quanto repicam carreirense novo ou hora de procissão. O automóvel (como há uns anos a camioneta) continua a dar a mesma volta, trezentos e sessenta graus em torno da distância, feita entre algum riso e toda a melancolia”.
(no jornal caboverdiano O Liberal, 3/11/2005)
FIGURAS PORTALEGRENSES – RUY VENTURA
[...]
No princípio dos anos 90 – era eu funcionário na Biblioteca Municipal de Portalegre – , certa manhã fui procurado por um jovem dos seus 18 anos que a breve trecho da conversa percebi não ser pessoa vulgar. Vinha informar-se sobre etnografia da região e, pouco depois, a conversa orientou-se para os lados da poesia. Palavra puxou palavra e a dado passo, algo timidamente, o meu interlocutor disse-me que também fazia versos e que, interessado nas artes, até já vira quadros meus numa exposição havida pouco tempo atrás na galeria local.
Lá tratámos dos assuntos que o ocupavam e, passados uns dias, trouxe-me um caderninho com poemas escritos à mão que considerei atentamente.
Estebelecera-se um contacto que persistiu através dos anos e se cimentou depois de eu ter tomado conta da função de responsável directo no Centro de Estudos José Régio.
Estudante de excepção – trabalhador e muito informado, faria a seguir uma licenciatura e um mestrado em estudos literários – Ruy Ventura (nas.1973) continuou a escrever poemas que, em 1997, mereceram o Prémio Revelação/Poesia da Associação Portuguesa de Escritores pelo seu livro “Arquitectura do Silêncio”.
Hoje, o meu amigo e confrade é uma das vozes representativas da novíssima poesia portuguesa. Tal tem sido reconhecido por personalidades tão diferentes como Agostinho da Silva, J.O.Travanca-Rego, Amadeu Carvalho Homem, Marcelo Rebelo de Sousa ou, no estrangeiro, Antonio Sáez Delgado, Floriano Martins ou Gérard Calandre. Autor de outros livros de poemas, de traduções e de ensaios, RV é um companheiro esclarecido, talentoso e vertical – um homem de antes quebrar que torcer, como se diz em português vernáculo.
Foi ele que escreveu o texto que vai a seguir, celebrando nostalgicamente a sua vila de Carreiras – e assim inicio como prometera a cíclica apresentação de figuras notáveis da minha região alentejana.
“As ruas das Carreiras onde eu nasci (após ter visto a luz em Portalegre e sangue novo em Lisboa) já não existem. São outros os nomes, outras as pedras – que teimam em não deixar esquecer a calçada antiga -, outras as casas. Só o horizonte não mudou ainda: a mesma serra, o mesmo azul longínquo, os mesmos sobreiros rompendo por entre as lajes, a escola, rompendo a folhagem das acácias e das amoreiras.
Entre o número oito da rua da Fonte Nova e o número cinco da Calçadinha, pouco resta de há vinte e cinco anos.
A fonte perdeu alguns dos seus azulejos e deixou de ter malvariscos pelo São João.
A dona Maria José já não se preocupa com as suas dálias, algures entre as minhas duas tangerineiras. O ti’ João Narciso já não abre a sua meia-porta vermelha, nem a ti’ Bernarda fica comigo na altura das azeitonas.
O barro desapareceu hoje dos caminhos (assim como os escaravelhos, e os burros escorregando até em frente às ruínas da Casa da Carreirinha).
Do Chão da Amoreira, como eu ainda o conheci, ficou apenas uma nesga de terra apertada entre duas casas. Os castanheiros, os abrunheiros, o muro (quase segurando a oliveira), situam-se no mesmo lugar que hoje ocupa a casa da avó - amarela, com barras brancas, um botaréu cheio de craveiros, uma roseira fazendo esquina frente ao canto do lume, do outro lado da rua, entre as flores dos rapazinhos e a parede de pedra solta, há muito tempo esbarrondada.
O Ribeirinho é hoje só nome de rua. Já ninguém lava nas suas águas, empresadas junto de uma figueira velha. Desapareceu sob o alcatrão e a sarrisca, para dar lugar a uma estrada larga. Continuo, no entanto, a regressar a este espaço, como se regressasse chamado pela voz dos sinos, que tanto embalam os mortos quanto repicam carreirense novo ou hora de procissão. O automóvel (como há uns anos a camioneta) continua a dar a mesma volta, trezentos e sessenta graus em torno da distância, feita entre algum riso e toda a melancolia”.
Nicolau Saião
Flauta de Pan
Lisboa, Edições Colibri, 1998, p. 24.

R. V.
Inquietação e solenidade. Ao longe
nos contrafortes da serra, casas e árvores
na sombra. A lembrança de um passado
feito de muitas leituras cruzadas, a incógnita
dum futuro nostálgico, de vozes desconhecidas, de
interrogações fortuitas (Será possível que se saiba
o que de facto se pensa, o que se aprendeu ou sonhou
o que foi realmente a nossa rota?) ou então
a certeza de que não foi em vão que se olharam
as pessoas, os seres que por nós passaram, as
deambulações por praias e bosques (a visão dum
fruto, o sabor dum repasto, a silhueta de alguém
numa rua onde a chuva caía). Nada afinal poderemos
adivinhar, nada poderemos dizer – se a recordação
de tudo o que fizemos ficar retida noutras palavras
– instante perpétuo que perdêmos
sem que o soubéssemos, por nossa incauta razão.
Flauta de Pan
Lisboa, Edições Colibri, 1998, p. 24.

R. V.
Inquietação e solenidade. Ao longe
nos contrafortes da serra, casas e árvores
na sombra. A lembrança de um passado
feito de muitas leituras cruzadas, a incógnita
dum futuro nostálgico, de vozes desconhecidas, de
interrogações fortuitas (Será possível que se saiba
o que de facto se pensa, o que se aprendeu ou sonhou
o que foi realmente a nossa rota?) ou então
a certeza de que não foi em vão que se olharam
as pessoas, os seres que por nós passaram, as
deambulações por praias e bosques (a visão dum
fruto, o sabor dum repasto, a silhueta de alguém
numa rua onde a chuva caía). Nada afinal poderemos
adivinhar, nada poderemos dizer – se a recordação
de tudo o que fizemos ficar retida noutras palavras
– instante perpétuo que perdêmos
sem que o soubéssemos, por nossa incauta razão.
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