António Carlos Cortez (2013)
"Ruy Ventura - Falas, figuras, cenas"
Jornal de Letras, de 26 de Junho: 13.

Leia a versão longa do texto aqui.




António Carlos Cortez

Ruy Ventura:

o poema como espectáculo
(do mundo)

 

«Contramina é uma tessitura de fios que se entrecruzam em dois planos. Em primeiro lugar deparo com uma teia de figuras, na ordem das várias dezenas, que se constituem como que a urdidura basilar da tapeçaria. Tais personagens, que tanto têm de colectivas como de pessoais, parecem formar a constelação de base onde se podem lançar os fios da trama. Esses fios, que dão a textura deste aparato, são as falas das figuras. Figuras e falas são assim a tela e a trama desta peça, que apresenta ainda três citações, uma abertura e um fecho.»

         Assim se deverá ler, segundo escreve António Cândido Franco no posfácio a este livro de Ruy Ventura, este mais recente livro dum poeta que, nascido em 1973, publicou já Arquitectura do Silêncio; Sete Capítulos do Mundo; Assim se Deixa Uma Casa; O Lugar, A Imagem; Chave de Ignição e Instrumentos de Sopro. Este é, portanto, o sétimo livro de alguém que, aos querenta anos, se afirma como um autor poliédrico, ou melhor, como um poeta para quem a poesia é experiência da linguagem e não tanto a famigerada (ou equivocada) linguagem da experiência. Neste aspecto Ruy Ventura afasta-se de forma absoluta de certa voga poética que foi moldando o gosto e a prática da escrita nos últimos dez a quinze anos em Portugal, preferindo essa consciência linguística da palavra.

Se repararmos, Cândido Franco chama-nos a atenção para o facto de este livro se articular, no fundo, em torno de três semas-chaves, em torno de três palavras que são o princípio e o fim (a finalidade?) deste «contramina»: o livro é teia, e o texto é tecido e trama de falas e figuras. Não será por acaso que o fascínio da linguagem se exerce em função dessa lúcida noção do poema como texto-trama-tecido, numa barthesiana – mas bem assimilada – lição do texto como gramática de figuras que mutuamente se articulam e articuladamente são participantes de cenários. Diga-se de outro modo: Ruy Ventura experimenta aqui o que, para uma autora que lhe deve ser cara – Fiama Hasse Pais Brandão – era o poema como «área branca», área textual onde a tessitura do real se interpreta por meio da essência humana que a diz: as palavras.

Noutras ocasiões tinha já lido Ruy Ventura. Por exemplo, quando li Instrumentos de Sopro. Vi, por essa altura, a proximidade deste autor com Fiama, é certo. Mas também com certo Carlos de Oliveira, aquele que mais tangencialmente está dum telurismo que nada tem de Torga, mas deve muito ao universo vivificador dum João Cabral de Melo Neto. Não falo dum telurismo sequer religioso. Apetece-me, antes, relacionar essa vontade de recriação do mundo, tal qual a lemos em Ventura, com a vontade de criação dum mundo de palavras que é sempre, bem vistas as coisas, o mais alto desígnio da poesia. Se a nossa relação com o mundo se faz por meio da linguagem, o poeta afirma-se nesse telos único e talvez último que é o de saber que tudo começa e acaba nas palavras. Talvez por esse motivo Contramina  seja um livro armadilhado, mais do que qualquer dos outros livros anteriormente publicados por Ruy Ventura. E essa armadilha está no modo como a teia, a trama e o tecido são objecto de um tratamento a todos os níveis – apetece dizer - «operático», como se (e daí Fiama e Carlos de Oliveira), todas as cenas tivessem lugar no texto e não fossem pensadas para a representação de facto. A religiosidade que possamos ver nesta poesia é, neste sentido, a religiosidade própria de quem sabe que o fenómeno poético – como quis, em tempos, Jean Onimus – é um fenómeno essencialmente espiritual porque é essencialmente «de linguagem» e é na linguagem que figuramos o mundo e o podemos, se quisermos, subverter ou a partir das palavras compensar a falha estrutural do nosso ser e estar no mundo. Construir figuras; figurar, projectar imagens, eis o que o autor de Contramina nos convida a fazer.

A epígrafe de abertura, de genesíaca inspiração, será pois um bom modo de ler o livro, de aí iniciarmos o percurso. Encenação de vozes, Ruy Ventura terá lido «Frisos», de Almada Negreiros, para além desse já clássico «Seis Personagens à procura de autor», de Pirandello. Como o «Director» da peça do dramaturgo de Agrigento, Ventura poderia interromper, invectivar, aconselhar, criticar, elogiar, irritar-se, ironizar com as «falas» das suas personagens. Mas o que acontece é que estas falas-figuras, actuam para além do «Director»/autor «Ruy Ventura». As cascatas de imagens que cumprem – que são ditas – por cada uma das «máscaras» deste livro escapam à autoridade do autor. Por isso, naquilo que poderia ser lido como um primeiro acto deste livro armadilhado – a meio caminho entre o texto poético e o texto dramático – não nos espantemos por se iniciar da seguinte forma este livro:

«destroços emergem desta língua. outra língua, sem voz, ecoa nos lugares e em vozes dominadas pela perda.»

 Quem fala é «João». O do Apocalipse? Talvez sim ou talvez não. Mas importa mais, a meu ver, o que se diz, deixando em aberto a simbologia ou o «estatuto» de quem diz. Desde logo, ao assumir-se que de uma língua emergem destroços, o que se afirma é a força destruidora de um dizer que, feito destroços, pode, em todo o caso, emergir: isto é – ser mundo. É um dizer que reenvia aos átomos e minerais, substâncias geradoras da vida. Fala-se, nessa primeira voz, do «ouro enterrado na pronúncia da matéria». É justo que assim seja o primeiro movimento de leitura: é de poesia, parece-me, que este «João» vem falar. A poesia é sempre, para recuperar, Deleuze (mas não abusemos na consabida estratégia retórica da citação pela citação – e também aqui não haverá espaço para citar Walter Benjamin  - que fica sempre bem nestas ocasiões), essa linguagem de destroços, essa gaguez e estremecimento da fala quotidiana.

Se o livro de Ruy Ventura é ou está minado, a hipótese de o desarmadilhar será o de vermos como, por detrás das falas das personagens (de João Evangelista a Santo Agostinho, passando por Graça Morais, Zénon [uma personagem de Marguerite Yourcenar], Casaubon [personagem de Umberto Eco] e Orlando [protagonista do romance de V. Woolf], sem esquecer outras «figuras» como Manoel de Barros, poeta brasileiro, Carlos de Oliveira, Cosme Lourenço – um mestre de obras – Francisco Bugalho – poeta e lavrador – até Cesariny, Fiama e Fernando Pessoa, Sá-Carneiro ou Gabriela Llansol – e muitas outras figuras faltam neste elenco breve) se ergue, mais do que a figuração das figuras, a tessitura das falas. É como se, na verdade, cada fala/ cenário que as «máscaras» dizem pudessem ser, no fundo, destituídas de nome próprio, pois não importa, de facto, saber quem consuma o quê (que uma epígrafe de fecho restitui à origem crística, como sendo as últimas palavras do Nazareno, dizendo que tudo estava, então, consomado), mas saber sobre e como cada uma das falas a si mesma se vai consumindo nesse exercício de gaguez que é dar ao leitor a surpresa constante de um livro difícil, porque se lê a vida – a do próprio autor ou a de outros – de forma exigente.

E com razão podemos falar de um texto estranho cujo engendramento se faz por meio de uma permanente descoincidência entre fala e figura. Os sete quadros lírico-dramáticos que compõem este livro são, para um leitor ingénuo, quase sonhos, espécie de projecção de imagens, num processo de escrita que tem tanto de rigoroso como de alucinatório. Ao colocar-se em cena, no texto, na página, tanta voz, como equilibrar os diálogos? Como o pirandelliano Director? Como quem, sabendo de antemão o projecto de livro, quisesse dizer-nos que o que neste livro prevalece é a subversão do poético pelo lado dramático do tratamento do texto? Tratar-se-á dum livro citacional, sem mais? Ou, pela citação, promove-se uma espécie de viagem ao mundo entendido como texto, como se fosse possível – a Ruy Ventura – refazer o seu «Livro da Natureza»?

Sejamos mais radicais. Será talvez possível entender a experiência poética aqui presente como um degrau já percorrido pela história dos géneros literários, reservando-se Ruy Ventura o direito de, também ele,  contribuir para aquilo que pessoanamente poderíamos ver como a subversão total dos géneros literários, na medida em que o «modo lírico», o género poético é transfigurado em um modo outro. Nesse sentido, o autor «Ruy Ventura» é como que o veículo de transmissão das vozes que, autónomas, firmam um estranho pacto de leitura: contramina é um texto, é trama de vozes e é tecido de figuras que, em rigor, nos desautoriza a qualquer leitura segura, de tão minado que está este volume por uma pessoana e labiríntica rede de vozes que vivem pela voz do autor, diluindo-a e fazendo-a comparticipar desse jogo de vozes várias que, por diversas vezes, ir-se-ão revezando, como se esse teatro polifónico construísse um mundo explicativo dos mundos pertencentes ao universo de cada «personagem» que comparece na página.

É nesta perspectiva poliédrica, como se o livro fosse um poliedro de vozes, e fosse ele mesmo figura, que Contramina se torna esse «teatro especular» de que fala Cândido Franco. Mas esse teatro especular é, na verdade, teatro performativamente espectacular, pois é como espectáculo de vozes – e não como speculum de vozes (estas vozes não são o espelho das pessoas ou dos referentes que as disseram num passado longínquo ou recente, sejam elas «Agostinho» ou «Fiama») – que a escrita se n os oferece em todo o esplendor da sua performatividade. Não é por acaso que Ruy Ventura coloca uma voz como Gabriela dialogando com vozes como Amatus ou João. Sabemos bem quanto Amato Lusitano ou João, o evangelista, partilham entre si o nome - «João» - e quanto a questão no nome (só mais um dos múltiplos aspectos fascinantes num livro como este, estranho – e por trazer consigo a condição da literatura: causar estranhamento) se impõe como das que mais obsessivamente se jogam no fazer literário. De facto, perguntemos: quem no nome de quem e pelo nome de quem nos vem falar em Contramina ? E a resposta, lacunar, parcial e provisória só poderá ser – pelo menos para mim – a voz da própria Literatura, assim com  maiúscula.

É que, em rigor, a construção de vozes aqui presente, neste teatro espectacular e em cuja escrita as figuras se levantam para serem o que são: figuras; essa construção de vozes é um modo subtilmente terrorista de dizer aos leitores que já não há espaço, no mundo actual, para a palavra de poesia. Ou, dito de outro modo, que o mundo dito pelas palavras não tem de ser esse mundo que, nas palavras, se torna mais banal do que é. Ruy Ventura, cujo percurso «original e exacto» será de acompanhar sempre, é um desses artistas para quem o mundo real conta, para quem os dados sensíveis contam, mas aos quais convém dar o relevo que só a linguagem de poesia confere. Um relevo próprio da arte, pois se a arte é essa «contramina poderosa do inefável», é possível que um livro assim ponha em relevo um modo absolutamente radical de dizer a realidade do nosso mundo.

Nesse sentido, Ruy Ventura está muito mais próximo dessa linhagem poética que reenvia aos «filhos de Álvaro de Campos» (para terminarmos lembrando Eduardo Lourenço e aqueles que, segundo o ensaísta, souberam revolucionar a linguagem do romance nos anos 60 (na poesia ocorreu o mesmo, como sabemos, com poetas como Gastão Cruz, Fiama ou Herberto ou Ruy Belo)) recusando um realismo em poesia que, querendo ser do seu tempo, mais não é do que essa nota de rodapé dum processo poético que teve na reinvenção ou subversão dos géneros e da linguagem quotidiana os seus momentos mais fulgurantes.

Neste início de século, quando uma equivocada moda de poesia realista ou dita «da experiência» pretende ser o pensamento único na poesia, eis um livro que tem de ser lido naquilo que é: na sua linguagem lírico-dramática, no seu engendramento ou arquitectura exigentes que fazem das páginas as cenas teatrais de vozes que, vindas da tradição, agitam o nosso ser e estar aqui. E o ser e estar aqui, no caso de Ruy Ventura, é assumir que a poesia pode ser o lugar onde há uma espécie de epifania, de «visão interior», a mesma de que falam os seus mestres – mestres da linguagem – Herberto Helder, Cesariny, Fiama ou Carlos de Oliveira. A este último atribui-se uma das mais sugestivas expressões do que a própria poesia de Ruy Ventura pretende ser: poesia que tem a brevidade (a incisão?) da pedra. A pedra, não o esqueçamos, é o poema que está no meio do caminho, a palavra que se interpõe entre nós e o mundo sensível. Que o poema imite a «incerteza das palavras» é revelar quanto a poesia, sendo monumento de palavras, manipulação delas e construção dum mundo por meio delas, é sempre o falar incerto. O dizer, a dicção que se afasta dos que raramente se enganam e nunca têm dúvidas. Esses, os que corrompem a palavra e a tornam comércio e propaganda, nunca poderão ler o espectáculo do mundo. 

 
                                     Maio de 2013
 
(lido na apresentação de "Contramina" em Azeitão, a 24/5/2013;
versão longa de um artigo publicado a 26/6/2013 no "Jornal de Letras".)
Rui Lage

 “Sete Capítulos do Mundo”
Apeadeiro – revista de atitudes literárias, nº 4/5, Inverno, 2004: 203 – 207.

 
         “Sete Capítulos do Mundo” é o segundo livro de Ruy Ventura depois de “Arquitectura do Silêncio” (Difel, 2000, que foi distinguido com o Prémio Revelação da APE). A edição é da Black Sun, que, a par das Edições Mortas, sem alaridos e mediatismos, operando nas “margens” (nesse lusco-fusco onde a literatura é mais instável e vulnerável, e, por isso mesmo, mais maleável) tem vindo a dar a lume algumas das mais originais, inventivas – por vezes subversivas – soluções poéticas dos últimos anos.

         Este “Sete Capítulos do Mundo” é convidativo desde logo pelo seu formato: livro breve, não excede as trinta páginas que se lêem de um só fôlego, contrariando a tendência actual por parte de muitos dos “novos” poetas portugueses em olhar com desdém para todo o livro de poesia que se fique abaixo das oitenta páginas, como se já não fosse “livro”, como se um ritmo de produção febril fosse sinónimo de genialidade e o número de páginas tivesse alguma relação com a qualidade da poesia nelas contida. Na verdade, um livro de poesia extenso pode ser, em muitos casos, uma violência exercida sobre o leitor, um certo tipo de imposição. Outra forma de violência é o ritmo de publicação de alguns dos “novos” poetas, que bombardeiam os leitores que têm e os que não têm com vários títulos por ano. Pela sua brevidade, este último de Ruy Ventura traz de volta o prazer de ler um livro de poesia de fio a pavio. De resto, tem vindo a ser essa a prática da Black Sun e vem-se sentindo em tempos recentes uma vontade de voltar ao livro de poemas que se lê de um trago e que deixa ainda sede quanto baste para voltar a lê-lo quase de imediato.

         “Sete Capítulos do Mundo” é uma sequência de epifanias que se respiram, da primeira à última página, num só movimento poético. Ruy Ventura deu ao seu livro o sub-título de narrativa. No seu sentido original, a “narrativa” refere-se ao acto de “tornar algo conhecido”, e equivale a “história”, “acção” ou “fábula”. Trata-se pois de uma “narrativa” poética, lírico-biográfica, na medida em que estamos perante uma enunciação cadenciada, ritmada e progredindo por etapas que são variações sobre uma mesma intriga “lírica”, biográfica, confessional, e que “tornam conhecida” uma certa fruição e experienciação do mundo. Neste sentido, toda a poesia não-abstracta é uma “narrativa”. No caso deste “Sete Capítulos do Mundo”, o todo vale mais que as suas partes, o que se aplica, de uma forma geral, às boas “narrativas”, onde a coerência e a coesão são fundamentais e o encadeamento harmonioso dos “episódios” é, deixando de alguma literatura experimental, condição sine qua non.

         Estes poemas epifânicos são um prodígio de contenção e de economia linguística, maximizando os recursos expressivos e figurativos que assistem à enunciação poética. São poemas que se infiltram com vagar, com naturalidade, como se este livro fosse um pulmão luminoso que respirasse de forma regular e controlada – o controlo de quem já aprendeu, ao segundo livro, a domesticar o seu modo de dizer, a dirigir a sua voz.

         É evidente em Ruy Ventura a capacidade para criar imagens e metáforas sedutoras. Imagens e metáforas luminosas, subtis, à flor da pele. Eis um molho delas, escolhido ao sabor do folhear das páginas: “os ramos atravessam o mundo. / a luz cruza-nos na planície”; “a criança apanha uma réstia de sol / entre a rama dos canteiros”; “o relógio põe vírgulas nesta frase. / a pontuação que resta vem de algumas gotas de chuva.”; “como os plátanos, escondo uma viagem”; “inventava personagens guardadas no peito como numa carruagem”; “a trovoada desenhando a tarde”. O poema 45, tão breve quando belo, possui a mesma capacidade de um haiku de Bashô, de Issa, ou de Kikaku para capturar a luz do instante (Barthes chamava ao haiku, entre outras coisas, “emoção concentrada”, “instante de elite” ou simplesmente “silêncio”) no fluxo da eternidade: “somos todos uma espécie de beiral, / recolhendo a água. / projectando-a de novo / para a terra.”.

         A captura do “instante de elite” leva-nos a uma óbvia analogia com a fotografia. E, de facto, diferentes formas lexicais tendo por base a palavra “fotografia” ocorrem nestes poemas inúmeras vezes. A fotografia é testemunha de fenómenos, tem essa faculdade única de cristalizar num suporte físico aquilo que, num dado momento e num dado lugar, se encontra diante de nós. Mas não permite compreender melhor os fenómenos que testemunha, não os pode explicar ou decompor em fragmentos: é indivisível, assenta num pressuposto de integridade e de limpidez. É uma testemunha muda e, por isso, insuficiente (“fotografo tudo. / mas nada encontro / para revelar”). A poesia problematiza, indaga sobre essa essencial mudez do mundo; talvez não explique essa mudez, mas pode certamente dizê-la. A fotografia está presente, assiste ao acontecer do instante (“junto da figueira, o céu nasce / como numa fotografia”), mas não pode interrogá-lo. A poesia pode. Interroga permanentemente aquilo que não tem voz, o seu papel é pôr a pedra e o pássaro, a água e o fogo, a falar. Pode atravessar o coração das coisas e pode apenas, recatadamente, aflorá-las, medrar junto ou para além das suas mais difusas fronteiras, fazer do opaco espelho, forçar a linguagem secreta da natureza a articular-se: “nenhum retrato / permitirá entender. / as linhas desfazem o corpo que representam. / um chapéu esvoaça sobre o vale. / o fumo eleva a resina. / não a dos pinheiros. / a da seiva que se descobre / no limiar da casa”. Esta é portanto uma poesia de decifração e de revelação de fotografias da existência (“como um retábulo, / tento reconstruir a paisagem”), ainda que esbarre a cada passo na impossibilidade dessa decifração e dessa revelação – e sem ter sequer forma de saber se e quando alguma coisa é decifrada – como se não fosse possível ao sujeito imprimir numa representação nítida, lógica e consistente os instantes capturados pela fotografia e se tivesse que contentar com meros “negativos” da existência: “encontramos apenas a sombra, / quando queríamos a transparência. / será transparente esta fotografia? / os objectos falam – / do corpo que fomos. / prenunciarão outro caminho?” ou “os telhados estão demasiado limpos. / pouco dizem da água / e dos passos”.

         A recorrente imagem da fotografia (ou seja, da imagem de uma imagem, da representação de uma representação, de uma “mentira” no sentido platónico uma vez que se encontra pelo menos três graus abaixo do real, em suma, de uma espécie distinta de percepção do real a que chamaríamos a percepção poética) leva-nos, portanto, a uma problematização – se não angustiada pelo menos dorida – das representações mentais e afectivas do mundo cuja sede é o sujeito poético. A questão é expressamente equacionada no próprio texto poético: “deixei-me ferir por essa imagem”. É com este verso que começa o poema 15 de “Sete Capítulos do Mundo”, verso ao qual se segue uma dolorosa e belíssima epifania: “a dor alastra na garganta. / como o nevoeiro subindo a serra / numa manhã de outubro. / talvez fosse essa a sua função. / ferir para deixar uma cicatriz na pela – / para o futuro.” Será esta, porventura, a razão de ser da imagem ( que era, para Sartre, “um certo tipo de consciência”) formando-se na percepção (poética): a de deixar cicatrizes – pistas – para uma leitura íntima do mundo. Como se essas feridas se deixassem ler através da ponta dos dedos do pensamento, num exercício de “braille” poético. Há, pois, qualquer coisa de ascético nesta poesia: a tendência para o sujeito se tornar num recolector de imagens (ou de epifanias) que lhe indiquem um possível itinerário rumo ao auto-conhecimento, que lhe inventem um modo temporal para as ramificações possíveis da sua “narrativa” lírica: “os ramos atravessam o mundo. / a luz cruza-nos na planície. / entre as estradas, um outro itinerário / uma forma de cicatrizar as feridas”. As leituras desse “baille” poético são comandadas pelos altos e baixos-relevos do papel do mundo, pela sua rugosidade ou maciez, pelas suas saliências e fissuras, de acordo com os seus ritmos e com os seus ciclos. O sujeito poético (como, afinal, o leitor de poesia) jamais se banha duas vezes no mesmo texto, na mesma leitura, na mesma narrativa. Keats quis que ficasse para seu epitáfio “aqui jaz aquele cujo nome foi escrito na água”. Ruy Ventura diz algo parecido: “desenhamos uma palavra / ou apenas a água da ribeira?”.