LEVI CONDINHO


"Ruy Ventura - Instrumentos de Sopro"

in Colóquio / Letras, nº 176, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, Janeiro / Abril de 2011: 227 - 229.





Vencedor, em 2000, do Prémio Revelação de Poesia, da Associação Portuguesa de Escritores, Ruy Ventura, nascido em 1973 na Serra de São Mamede, publicou, depois do seu primeiro livro de poesia, Arquitectura do Silêncio, mais cinco livros de poemas, alguns traduzidos em Espanha e um nos Estados Unidos. E menciono apenas a sua produção poética; por outros géneros e actividades literárias se espraiou Ruy Ventura.

Senhor de uma cada vez mais apurada ciência da linguagem, onde detectamos a laboriosa reflexão sobre a mesma, enformada por uma vasta e ecléctica cultura, proponho-me extrair da leitura da sua obra, e, sobretudo, de Instrumentos de Sopro, dois tópicos (entre outros possíveis) fundadores da sua poética: a) o elementarismo; b) a religião/religação.

Refiro o elementarismo, desde logo, pela atenção devota às coisas do mundo, da natureza (dos elementos) do tempo, da(s) memória(s), dos ritos do trabalho / da lavoura (e da arte), da história, do microcosmos do pequeno – mas nobilitante – quotidiano, ao macrocosmos em que ousamos, através do “sopro”, emitido a partir dos “instrumentos” de um corpo indissociado do espírito, pesarmo-nos na “balança transcendente das coisas” (Antero de Quental): “nesta noite em que vigiamos / o forno do alto da mais alta torre” (poema 39, “síntese”).

Determinante do elementarismo em questão é a própria matéria da linguagem, plena de contenção, de palavras sopesadas e oferecidas, uma a uma, diríamos, ao “sabor / paladar”, ao “táctil” do leitor, numa coesão orgânica que nos envia, remotamente, para as poéticas, por exemplo, de um certo Carlos de Oliveira, de um Nuno Guimarães. Palavras substanciais, em que signo e referente se casam indissociados, assentes, sobretudo, em substantivos (pedra, árvore, água, vinho, pão, casa, corpo, etc.) que raramente necessitam do abrilhantamento do adjectivo para projectarem o fulgor do seu brilho. Palavras associadas, por via de sábias “técnicas de engate” em que o óbvio é recusado, amiúde, para dar lugar ao efeito de estranhamento, à inesperada substituição de signos (“a janela guarda no poço uma língua estranha”), palavras que escavam, que raspam, que procuram o vestígio, o achado arqueológico, o arcano, “palavras que ninguém entende mas todos queremos escutar” (8, “evocação”), pelas quais o “caçador afasta o nevoeiro para melhor entender o nevoeiro” (2, “aparição”), nas quais coabitam “os ossos e a estrutura mineral das horas” (11, “registo”).

Referindo agora o outro tópico, aqui me surge o maior embaraço da escolha, já que toda a obra (e a vida, sei-o eu) de RV é, mais do que atravessada, pan-estruturada pela religião/religação. Não por acaso, RV (num poema do epílogo) escreve “ora. e labora. ora e labora” em alusão à recomendação de São Bento “ora et labora et noli contristari”, aqui se podendo acrescentar, para maior abrangência contra um possível reducionismo da sentença beneditina, o conselho de Agostinho da Silva: “Tudo o que fizermos, o façamos bem feito […] com disposição e intensidade litúrgicas.”

Se a religião surge, permanentemente, em RV, nos seus aspectos visíveis, rituais, litúrgicos (catedral, torre, sino, paramento…) com fortes reminiscências dos textos sagrados do cristianismo e do judaísmo (“a árvore / nascida no início.” – 25, “escritura”), numa denúncia clara da saudável prática cristã e católica (mas ecuménica) por parte do poeta, pobre seria a leitura da sua poesia se não ultrapassássemos essa prática/mundo no sentido de uma demanda/outra que é a do espiritual (por exemplo, no sentido estético kandinskyano), da luta pelo “achamento” do coração do invisível, em que “dois anjos abraçam o cume da montanha” (25, “escrituras”), enquanto se escutam “os sinos embalando o nevoeiro” (9, “regresso”).

E posso salientar, ainda nesse contexto de religião/religação, a denúncia, o protesto, a lamentação, contra a profanação do mundo (42, “cadáver” – sobre a transformação da igreja de São Julião, na Baixa lisboeta, em garagem de automóveis), contra o desrespeito e os atentados (incêndio da serra de Castelo de Vide, as questões em torno da serra da Malcata, etc.) contra a natureza (sagrada natureza), contra o património artístico e religioso. E afirmo a minha admiração por um poema que, só por si, vale todo um livro (5, “purificação”), texto admirável em que se rememora toda a existência da igreja de São Domingos, em Lisboa, palco de fogo, de fogos (o fogo conclamando o fogo), queima de homens e queima (“o incêndio purificou a pedra e a memória”) do edifício no seu (belo, recordo) interior.

Ruy Ventura recorre neste seu livro a umas “notas de autor” em que nos fornece um “mapa/guião” como visita guiada aos seus poemas que, “não sendo tópicos ou ecfrásticos”, assentam sobre “elementos materiais (povoações, lugares, casas, igrejas, castelos, sítios e achados arqueológicos, esculturas e pinturas) que convulsionaram as palavras”. Reconhece-se aí uma mais-valia para a leitura, mas julgo que, mesmo que, como outros poetas fazem, se deixassem os poemas na obscuridade, sem tais pistas de leitura, a autonomia, só por si, de cada poema, já nos bastaria. Na “travessia” (poema 15) entre Amieira e as Portas do Ródão, leiamos, em aberto, qualquer outra travessia (a vida…): “trasladaram o trigo e o fermento / com que fui diminuindo / a minha sede. / só não quiseram levar o calor / do vinho eterno. a barca era demasiado estreita.”

Ruy Ventura é já um poeta maior da nossa contemporaneidade. Mas ele também sabe que “a linha desconhece esta presença. / o padrão (se existiu) foi engolido / pela velocidade com que passaram” (15, “travessia”).
LIVROS DE 2010

Considero inútil a listagem dos melhores livros publicados num ano que fecha. Serve apenas interesses comerciais - uma vez que é impossível tê-los lido todos. Como se sabe, ninguém pode servir ao mesmo tempo o Espírito e o Dinheiro... Pelo contrário, parece-me útil a revelação dos livros que mais marcaram um ser humano durante uma parcela do tempo. Há anos que o venho fazendo e este ano não é excepção. Aqui fica a lista:


ETTY HILLESUM - "Cartas" e "Diário 1943 - 1945"
ROBERT MUSIL - "L' Homme sans Qualités" (edição francesa)
PEDRO MACIEL - "Como deixei de ser deus" (2009)
ALBERTO VELHO NOGUEIRA - "Baldes - Restos" (2001)
AMADEU BAPTISTA - "Doze Cantos do Mundo" (2009)
PEDRO TAMEN - "O Livro do Sapateiro" (2010)
HALLDÓR LAXNESS - "Gente Independente" (1934/35)
YVES NAMUR - "Figures du très obscur" (2000)
MARIA TERESA DUARTE MARTINHO - "Visões e Demonstrações" (2006)
TEIXEIRA DE PASCOAES - "Ensaios de Exegese Literária e Vária Escrita" (2004)
JULIO CORTÁZAR - "Rayuela" (1963)
GEORGE ORWELL - "Livros & Cigarros"
CASÉ LONTRA MARQUES - "A densidade do céu sobre a demolição" e "Saber o sol do esquecimento" (2010)
JOSEPH RATZINGER - "Fé e Futuro" (1970) e "A Europa de Bento na crise de culturas" (2005)
MÁRCIO-ANDRÉ - "Ensaios Radioativos" (2008)
FERNANDO ECHEVARRÍA - "Lugar de Estudo" (2009)
FIALHO D' ALMEIDA - "Barbear, pentear"
MARC CHAGALL - "Ma Vie" (1922)
LUIZ PACHECO - "Textos Sadinos"
FREY IOANNES GARABATUS - "As Quybyrycas" (1972)
ROBERTO BOLAÑO - "2666" (2004)
ADALBERTO ALVES - "As Sandálias do Mestre" (2009)
LUÍS DE CAMÕES - "Rimas"
FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO - "Obra Breve"
J. P. OLIVEIRA MARTINS - "Correspondência"
NUNO RAMOS - "Ó" (2008)
CRISTOVAM PAVIA - "Poesia" (ed. 2010)
MARIA GABRIELA LLANSOL - "Livro de Horas II"
ALBERTO MANGUEL - "The Library at Night" (2006) e "Reading Pictures [...]" (2000)
EÇA DE QUEIRÓS - "A Correspondência de Fradique Mendes" (1900)
J. M. G. LE CLÉZIO - "L' Extase Matérielle" (1967)
ÁLVARO RIBEIRO - "A Razão Animada" (1956)
AULA IBÉRICA
[António Sáez Delgado]

Ruy Ventura
'Instrumentos de sopro'

Diário espanhol Hoy, 03.01.2011:
http://www.hoy.es/v/20110103/sociedad/h2aula-iberica-h2ruy-ventura-20110103.html

Son muchos los lectores de Raya de Papel que nos han pedido que ampliemos nuestras propuestas de lectura a libros originales en lengua portuguesa de los que no exista traducción española. Uno muy recomendable es este 'Instrumentos de sopro', de Ruy Ventura, publicado por Edições Sempre-em-Pé, y que supone la séptima entrega poética de este autor de Portalegre. En él explora buena parte del terreno simbólico que sostiene su obra, una de las más personales de la reciente poesía lusa. La cita de Josep M. Rodríguez que le sirve de prólogo («Vivir es abrazar oscuridades: / de lo que no sabemos a lo que no sabemos, / desde una lejanía a otra lejanía. / Todo es inaccesible») ofrece ya claros indicios del territorio que habita la poesía de Ruy Ventura, que se convierte en indagación profunda y serena sobre la trascendencia de la existencia y sus huellas en la vida cotidiana y en el espacio, convertido en territorio, que habitamos. Es la suya una poesía profundamente simbólica, que concede especial importancia a lo sustantivo, a la esencia de esa búsqueda permanente. Y lo hace desde una poética que bebe de diferentes tradiciones y en la que cobran singular importancia sus contactos, como buen hombre de la Raya, con algunos escritores extremeños. La proximidad del poeta con su tierra es otra de las constantes de su poesía, que nace con vocación universal y con las mismas preocupaciones con que sus antepasados cultivaban los campos y veían correr los ríos del Alto Alentejo. Poesía, en suma, reflexiva, meditativa, afilada a veces como un cuchillo.
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Aljezur, 18 de Dezembro de 2010
apresentação do livro "Memória d' Alva" na igreja matriz de Nossa Senhora d' Alva:
1 - Intervenção de José António Falcão
2 - Intervenção de RV
3 - RV e José António Falcão na sessão de autógrafos

(Mais fotografias, de F. Barradinha, em http://www.arquivodaljezur.blogspot.com/)