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UMA FÁBRICA DE DESIGUALDADES

            "Ainda bem que já estou de férias!”
            A frase não me surpreendeu. Apesar de estudioso e bom leitor, o meu filho é um rapaz saudável e, como todos os outros, aspira pelo tempo de piscina, praia, passeio, televisão e outros divertimentos. Não dei andamento à conversa. Para minha surpresa, o miúdo resolveu no entanto desabafar enquanto punha a mesa e eu temperava a salada.
            “Até que enfim estou livre daquelas ‘oficinas’ em que levámos o ano inteiro a fazer projectos e nunca saímos do mesmo sítio... Uns trabalhavam e outros ficavam a ver. O costume... Nas apresentações ninguém se preocupava se estava bem feito ou não, se tinha sido copiado da internet ou escrito por nós... Além disso, eu pensava que os projectos eram para fazermos coisas úteis, giras... O nome engana... ‘oficinas’... São uma seca e das grandes!”
            Resolvi dar-lhe alguma atenção, mas silenciosa. Sem que eu lhe perguntasse coisa alguma, do alto dos seus onze anos, não teve papas na língua:
            “Os professores andam aborrecidos. Toda a gente vê. Não os deixam dar as aulas como querem e não têm tempo para dar a matéria toda. Fica sempre a meio, agora com a mania das disciplinas semestrais… Eles tentam disfarçar, mas nós bem vemos o que está a acontecer. Dizem que para o ano que vem as aulas vão ser todas assim. Só projectos e trabalhos de grupo. Que raiva! Estou mesmo a ver no que vai dar... Mas nem quero pensar muito nisso. Já estou de férias. Quem me dera que as aulas normais voltassem e acabasse esta porcaria que inventaram para aí.”
            Perguntei-lhe se era o único a pensar assim. Poderia ter chamado a irmã, avançada um ano nos estudos, mas quis saber o que ele me responderia.
            “Não sou o único a dizer isto. Os meus colegas estão fartos como eu e só aqueles que não se importam com nada é que andaram contentes porque não precisaram de fazer nenhum. Trabalham uns e eles assobiam, portam-se mal nas aulas e chateiam toda a gente, porque sabem que vão passar na mesma... Ninguém chumba no meu ano nesta escola, mesmo que faça porcaria e não aprenda. A directora diz que chumbar dá mau nome à escola... Que temos de acabar com o insucesso…”
            A interrogação final veio de chofre: “Achas justo? É justo dar o mesmo prémio àqueles que trabalham e àqueles que não se ralam e não querem trabalhar?”
            A opinião do catraio não me apanhou desprevenido, confesso. Já ao longo do ano lectivo notara um certo desalento no miúdo quando se aproximava o dia das “aulas diferentes”. Ia como cão por corda para a escola. A irmã, tanto quanto me era dado ver e ouvir, tinha o mesmo sentimento. Em conversas com outros pais e encarregados de educação, das suas turmas e de turmas diferentes, fui-me apercebendo de que era um sentimento alargado. Também conhecia a opinião de um grupo alargado de professores daquela escola. Ano após ano, várias dezenas tinham saído da instituição, mesmo tendo-lhe dado uma, duas ou até três décadas de serviço e dedicação. Muitos dos que permanecem no “degredo” desejam, dizem, seguir o mesmo caminho, perante as atitudes da tutela e da gerência. Pura e simplesmente, não aguentam – segundo afirmam – as pressões diárias de que são alvo para porem em prática uma “doutrina pedagógica” com traços totalitários.
            Não foi inesperado o desabafo do miúdo. Mas deixou-me porém preocupado,  sabendo eu o que é possível fazer e desfazer com os cinquenta por cento de autonomia que o governo quer “oferecer” às escolas, em troca da aplicação cega e militante da “flexibilidade curricular”. Também eu sou professor, embora tenha a graça de leccionar num Agrupamento de Escolas onde ainda vai reinando o equilíbrio, o bom senso e a sensibilidade humana. Como docente, consigo todavia ser camaleão, se for necessário. Como pai, a minha grave inquietação vai crescendo.
            Com as mãos livres e acalentadas pela 24 de Julho, há dirigentes escolares que estão a pôr em prática uma autêntica anarquia educativa, travestida contudo pelas melhores intenções, que não passam de vassouras para esconder os problemas que existem na nossa escola pública. E não lhes faltam coadjuvantes ou cúmplices: alguns docentes que esperam receber benesses (no horário, na distribuição de serviço ou quiçá em viagens ao estrangeiro, pagas pela União Europeia) e alguns pais que não enxergam um palmo à frente do nariz. Bom seria que alguém verificasse se os dirigentes escolares mais ferrenhos na aplicação da nova via “pedagógica” não serão muito próximos do partido do governo (ou mesmo seus militantes); há quem diga que sim. Não é por acaso que, para estranheza de muitos e estupefacção de alguns, dois dos secretários de estado do Ministério da Educação marcaram presença conjunta (!) na inauguração (!) da remodelação parcial (!) de um dos blocos de salas de aula de uma das escolas mais fundamentalistas na aplicação da “flexibilidade”… Não há almoços grátis, como se diz por aí.
            Vítimas de teorias e práticas pedagógicas que já eram velhas há quarenta anos atrás, porque lhes dão jeito para camuflar o insucesso que realmente existe e continuará a existir por este caminho, há escolas (e cada vez são mais) que vivem um autêntico PREC educativo, com traços de maldade e insanidade, cujas consequências plenas são ainda difíceis de alcançar. Uma delas é todavia evidente. Os alunos com bom respaldo familiar conseguirão sobreviver a tudo isto, com grande dispêndio de tempo e de dinheiro, que não há outro modo de compensar o que lhes é tirado nessas escolas públicas. Alguns, filhos de agregados mais abonados, partirão para bons colégios privados – onde a conversa é outra… Aqueles a quem falta o dinheiro ou a família ou tudo isto junto serão vítimas a médio prazo de uma escola que, assim, se demite de lutar contra as desigualdades, em benefício de uma “inclusão” que é, na realidade, exclusão social ao longo da vida.
            Os colegas dos meus filhos que não fazem testes de avaliação, que se alegram por passar de ano sem trabalhar e sem melhorar o seu comportamento, que deixam de ter aulas baseadas no conhecimento sólido dos seus professores, que não são treinados para o esforço que o estudo implica e implicará sempre, que são vítimas da “flexibilidade” e da “inclusão”, poderão agora exultar com as suas famílias, alheados do que se passa, do que motiva esta “nova pedagogia” e dos seus resultados futuros. Estou certo disso, porque os vejo, os ouço e converso com alguns dos seus pais. Os efeitos futuros não serão, todavia, algo que seja bom de ver. Sem se terem habituado à exigência, ao trabalho, à atenção, à concentração e ao estudo – enganados por sereias maviosas e sorridentes que, desse modo, dizem “levar habilmente a escola rumo ao sucesso” – ver-se-ão a braços com uma violenta e frustrante desigualdade de oportunidades. E tal não é digno de um país que afirma defender a dignidade de todos os seres humanos.


Ruy Ventura

O PEIDO-MESTRE



Deve ser da idade, mas nos últimos tempos, sabe lá Deus porquê, tenho pensado muito naquela frase que, segundo se conta, era dita aos ouvidos dos pontífices romanos antes de tomarem sobre cabeça a tiara papal: "Sic transit gloria mundi", o mesmo é dizer que "assim passam as glórias do mundo". Nem tenho reflectido muito sobre as rasteiras da vida que a todos calham e nos fazem ir, prosaica e humildemente, com as ventas à lama. Está certo que vivemos num ambiente social e cultural que abomina as derrotas, camuflando-as, e por isso é, sem dúvida, um mundo dominado pela frustração, sobretudo quando mais alardeia vitórias, frequentemente de Pirro. Daí os narcóticos de vária espécie que nos vão envenenando desde tenra idade... É bem verdade que, neste tempo que nos calhou andar, temos de sentir na pele o quanto há de vaidade inútil nas nossas atitudes - sob pena de nos tornarmos perus de papelão, inchados, mas vazios e sem conteúdo, que qualquer chuvada transformará em pasta de papel sem serventia nem para a reciclagem. Mas não tem sido sobre isso que tenho congeminado.
Ao vir-me à memória a frase romana, tenho pensado sobretudo na morte ou, para vermos a coisa com alguma bonomia vocabular e um sorriso no rosto, no peido-mestre, como lhe chamam alguns alentejanos, entre os quais me incluo. Ver dar o peido-mestre, ir fazer tijolo, bater a bota ou entregar a alma ao Criador (tanto dá...) transmite-nos fortes ensinamentos que levamos meia-vida a ruminar, sem desconfiarmos onde estará o instante em que seremos nós o presunto a finar-se.
Já tenho a minha conta de confrontos com a moçoila da gadanha. Desde dois vizinhos da aldeia que me morreram, literalmente, nos braços, a dois parentes que vendiam saúde até ao momento em que a aguardente bebida lhes cobrou o bilhete de ida-sem-volta, passando por quatro ou cinco casos de ambiciosos e velhacos, que tudo queriam dado arregaçado ou mesmo sonegado, infernizando a vida a meio-mundo, família e vizinhança à cabeça, até ao dia em que se viram confinados a três badaladas no sino, três quartilhos de cal, meia dúzia de tábuas de pinho e uma mortalha sem força para travar a bicharada numa cova de pouca largura ou as chamas do crematório que (cá entre nós) bem deveria lembrar-nos os tratos de forno que o Adolfo alemão do bigodinho dava aos seus bem-odiados judeus e opositores.
De que vale andarmos a esgadanhar e a rasteirar os outros, arranhando a própria cara, cobrindo-a por vezes de lama ou de sangue sujo, se levamos todos a mesma volta? Os privilegiados ainda têm tempo de se arrepender do mal que fizeram (e todos vamos fazendo algum), partindo em descanso sabe Deus para onde. Os outros, nem isso... que hoje está fora de moda pedir ao sacerdote os últimos sacramentos. Sou, por isso, um mitigado e pouco fiel adepto de algumas páginas de Séneca que, avisado, nos aconselhava a bem vivermos cada momento como se fosse o último. "Ninguém sabe a que hora virá o ladrão", aconselhou-nos outro Mestre, com saber supremo e numinoso. E nós, aprendemos? Somos e seremos sempre os mesmos burros teimosos... quiçá mulas, que são bicheza híbrida que não se reproduz. E tal, convenhamos, não é bom para ninguém. Sobretudo se morrermos de barriga cheia, à custa da magreza ou das arrelias dos outros... A não ser, claro, que queiramos ser recordados pelos sonoros arrotos (reais ou simbólicos) que dávamos em público... Cada um lá sabe. É certo que a morte lava mais branco que o detergente da máquina e "se queres ser bom morre...", mas atrás de tempos tempos vêem e é conveniente deixarmos por cá uma famazinha que vá além do incómodo epíteto de "ruins pesetas", para pelo menos não envergonharmos a descendência física ou espiritual.

Ruy Ventura

RECORDAÇÃO E LOUVOR
DE CARLOS GARCIA DE CASTRO


            Repasso os livros que tenho de Carlos Garcia de Castro. Poderia reler as muitas cartas que dele guardo; a distância não é todavia ainda suficiente para delas me reaproximar. Não mudou de habitação assim há tanto tempo; soube que já não mora na praceta d' "Os Lusíadas"; continua em Portalegre, mas disseram-me que desde 2016 repousa noutro bairro, lá para os lados da Boavista. Não conheço ainda a nova habitação do seu corpo; imagino-a virada, contudo, para a casa de José Régio – esse escritor grande que, como ele e mais alguns, soube topar os furúnculos da cidade, não tendo medo de espremê-los com arte e frontalidade. 
            Repasso os livros de Castro. Fitando as dedicatórias, descubro a melhor palavra para designar os laços que criámos. Durante muitos anos, foi para mim apenas um vulto, investido da cortante grandeza poética que transcendia a pequenez bolorenta de muitos versos que então tentava ler. Aproximámo-nos, quase sem querer, com o meu ingresso na Escola Superior de Educação portalegrense, onde era professor. Quase no fim do curso, fui seu aluno nas lições de Cultura Portuguesa. Gostava de dissertar a partir dos bons livros do padre João Mendes, cuja valia nunca se cansava de enaltecer, mesmo sabendo que não era um autor da moda e perante a estupefacção dos ouvintes, com preocupações situadas a anos-luz das suas. Com gargalhadas súbitas, ironias surpreendentes e certeiras e uma rara profundidade nos raciocínios, partindo sempre de uma atenção cirúrgica, as suas aulas tornavam mais real a etimologia do termo francês élève (aquele que é elevado espiritualmente pelo seu mestre, o qual admira sem lhe lamber as botas). Alguns alunos interrompiam-no, picando-o (eu era um deles). Nunca nos mandava calar, embora o merecêssemos. Assumia com bonomia as provocações e respondia-lhes com a melhor doutrina, sem afastar a humildade. Mais tarde, sendo eu já docente na Grande Lisboa, confessou-me o que pensava nessas ocasiões. É para mim matéria reservada, de proveito e exemplo. Foi nessa altura que, estando eu a terminar a minha licenciatura, me ofereceu o conselho que modelaria o meu futuro. Tirando à pílula toda a folha de ouro, retratou-me com a maior dureza a sociedade da nossa terra natal, antevendo o que me sucederia caso aí permanecesse. Sabendo-me aldeão afastado dos ambientes da burguesia local, incitou-me à migração. (Quando um convite, passados anos, me levou a um breve regresso, não o aceitei sem antes lhe telefonar. Repetiu-me os avisos, sem me tirar a esperança. Optei, à sua revelia. Dois anos passados, vi-me obrigado a dar-lhe razão.)
            Do primeiro ao último livro que me dedicou, designou-me sempre do mesmo modo: "companheiro", "compagnon de route"... Só agora me apercebi disso. Nesse companheirismo, aprendi a manter sempre a minha independência fosse perante quem fosse, a caminhar sem vergar nem perder a coluna, a ser católico sem hipocrisias nem beatices, a não me misturar demasiado com o chamado meio literário, a sobreviver no ambiente escolar e docente com ardilosa distância e empático humor. Não me deixou pequena herança.

*

            Fosse Portugal outro país e a classe literária lusa de outro quilate e há muito teria já reconhecido Carlos Garcia de Castro como o poeta maior que é, sublinhando nomeadamente a sua aproximação ao quotidiano, numa linguagem certeira e tersa que nunca abandonou o apuro formal e estilístico, surpreendente nas suas imagens. Por ali surge, como trama oculta ou discreta, a transcendência do mundo e das relações humanas, que não dispensa as três dimensões do Amor: a amizade, a conjugalidade/sexualidade e a divindade. Quando outros ainda nem balbuciavam, já Castro tomava e transmitia muito melhorado o testemunho imagético e estético de Cesário Verde e Pessoa-Caeiro, aproximando a poesia de um real multiforme. Nunca foi, todavia, um criador de micro-narrativas em versos empilhados. Num impressionismo arguto, soube casar alguns pontos luminosos da tradição surrealista com um olhar lúcido sobre o seu entorno, sem deixar que a coloquialidade de uma parte substancial da sua linguagem fosse obstáculo à presença do sobrenatural, pobremente vestido, quase franciscano. Quanto recorre à memória, fá-la recordação e não apenas lembrança; combatendo toda a espécie de derrames sentimentais, trá-la ao coração para que seja fonte luminosa de atenção, de rigor e de esperança.
            Como “escravo […] das coisas naturais, / amante do concreto entre poetas / para quem não é enigma o arco-íris”, a poesia e a figura de Carlos Garcia de Castro merecem ser enaltecidas. Cidadão vertical, soube dissecar a sociedade, o estatuto que aí mantêm os seres humanos e os papéis nela desempenhados (entre a fidelidade, a subversão e a hipocrisia). Usando uma métrica regular, em versos brancos, não apagou dos seus poemas a metafísica, mas tornando-a subjacente, quase subterrânea, focalizou de preferência a physis e os jogos de poder, de dependência, de alienação, de simulação, de liberdade e de autonomia que dirigem e governam o devir do nosso mundo. O contraponto está numa subtil evocação da doutrina em que a criatura, sempre imperfeita, é reflexo do Criador.
            A ironia – “ingrata” e “traiçoeira”, como dizia, mas geradora dos “melhores efeitos em Literatura” – fez parte da sua estratégia de sobrevivência. Ao contrário de tantos outros, o autor de Rato do Campo escreveu “não-poemas”, ou seja, textos cuja finalidade sem fim foi, em grande parte, não encantar, efabular ou idealizar o meio social, doméstico e objectual, mas antes desencantar, esquadrinhar e virar do avesso, zurzir as redes que nos envolvem, modelam e, tantas vezes, aprisionam. Usando um raciocínio de cariz filosófico – ou mesmo histórico e sociológico –, quantas vezes meditativo, o sujeito poético pensa-se, pensa o seu meio e pensa-se nesse meio. E daí nascem poemas – ou “anti-poemas” (Nicanor Parra) – como quem entrança canastras: colhendo a matéria da natureza, entrelaçando com um braço artístico forte os ramos de castinceira e formando um recipiente duradouro, capaz dos mais pesados transportes – exactamente o contrário dos contentores de plástico, incapazes de deixar passar o sopro da leitura, de uma leitura infinita (aquela que nos conduz ao Paraíso).
            Na matéria, “utilitária e banal”, se mostra “enredada / – a Natureza”. Aí se revela, surpreendente, “o mistério das madeiras limpas”, o mesmo é dizer das matérias depuradas que todo o verdadeiro poeta procura alcançar.

RV

(Artigo publicado no jornal "Alto Alentejo", a 14/11/2018).


O ENCLAVE
        
         Conheço Aljezur desde 1 de Novembro de 2002 – e desde essa altura algo me intriga. Habituado a conversar com aqueles que nasceram ou desde sempre viveram nessa vila e no seu concelho, é frequente ouvi-los afirmar que vão “lá abaixo, ao Algarve”. Quando assim falam, referem-se por vezes a Lagos, mas sobretudo a Portimão, Lagoa, Albufeira, Faro ou a qualquer das terras circunvizinhas. Há dezasseis anos que ouço a expressão; há dezasseis anos que a estranho. E tem-me posto a pensar. Bem sei que o (meu) Alentejo termina na margem norte do rio Seixe. Não há engano. As placas turísticas e os mapas dizem-me, além disso, que na margem sul desse curso de água que deu nome à mais bela porta das terras meridionais, Odesseixe, começa o Algarve. Os aljezurenses (e, ao que parece, as gentes de Monchique) dizem no entanto que não, que assim não é. O Algarve é lá para baixo… É outra coisa. E a sua terra – a Serra, como gostam de dizer – é algo bem diferente.
         Admito: têm razão. Quem saia no Verão de qualquer ponto desse território montanhoso que desce do alto da Fóia até ao Atlântico, dirigindo-se a Lagos pela estrada que sobe aos cabeços do Espinhaço de Cão e depois serpenteia até encontrar a ribeira de Bensafrim, decerto notará a diferença. Desde logo, nas cores e, sobretudo, na frescura que corre até ao ponto mais alto do percurso: até aí, uma temperatura amena, transportada pela brisa sempre fresca e agradável; aí chegados, se levarmos a janela do carro aberta, o bafo quente, vindo talvez do Norte de África. Percebemos então que deixámos uma espécie de enclave climático que, bem vistas as coisas, revela uma subtil, mas sensível, distinção cultural e identitária. Basta estarmos atentos e sermos em Aljezur não turistas, mas viajantes humildes, abertos à grandeza do outro que construiu esse território ocupado há milhares de anos.
         Vale a pena contar uma velha história. Naquele que é talvez o relato mais antigo da conquista do território algarvio ao poder islâmico, datável de meados do século XIV, é revelado algo que mostra a inteligência e a independência dos aljezurenses. Dou a palavra ao cronista anónimo, adaptando a ortografia: “[…] o mestre [D. Paio Peres Correia] partiu de Loulé e foi-se lançar sobre Aljezur e quando os mouros souberam que Faro e Loulé e os outros lugares eram tomados, deram-se logo ao mestre com a condição que se deu Faro e o Mestre pelo cansaço que havia recebido ele e suas gentes nos outros lugares aprouve-lhe com isto […]”. A sanguinária lenda que hoje corre foi criação posterior, nascida cem anos depois, quando a dinastia de Avis se empenhava na ocupação cristã das praças marroquinas e era preciso acalentar a moral das tropas. A verdade basilar, sem acrescentos espúrios nem falsificações, é no entanto só uma: argutos, sem qualquer espécie fanatismo religioso, os aljezurenses souberam escolher com diplomacia o melhor caminho, para não sofrerem as agruras de uma resistência pouco sábia. Entenderam que a paz e a concórdia valem mais do que muitas certezas e teimosias.
         Aljezur, o seu território e as suas gentes são de facto um mundo inconfundível. Não é fácil dar por isso. A atenção descobre no entanto as linhas da diferença, mesmo nestes tempos de “salada russa” cultural. Não é das terras mais bonitas. Não tem monumentos grandiosos. A ela não estão ligadas grandes figuras da nossa identidade. Prima pela discrição. Quem se abeire, todavia, das suas falésias, em que a rocha tão imponente e tão escura nos obriga ao confronto com as forças mais sublimes da Natureza, descobre o que significa essa humildade, essa timidez de ser e afirmar-se.
         Os místicos do século XI souberam entender a grandeza do território. Pode parecer um deserto verdejante, de súbito interrompido pelo antracite que antecede a imponência do mar oceano. Mas esse deserto, pontuado pela brisa fresca incessante, permite-nos pressentir o melhor caminho, essencial nos dias que correm, envenenados pelo petróleo mental que tudo suja em benefício das mais diversas formas de lucro. A palavra “enclave” tem na sua origem o vocábulo latino que significa “chave”. Uma das chaves da cancela que abre essa estrada sobrenatural, sem portagens, parece estar em Aljezur. Resta abrir os olhos da mente e do espírito e, entendendo-a, seguir por ela.


RUY VENTURA
(Texto publicado no "Guia para o Visitante [de Aljezur]", 2018.)


IMAGENS FERIDAS

Desde que li "O Meu Deus é um Deus Ferido", talvez o melhor livro do teólogo checo Tomás Halík, comecei a compreender e a acolher de outro modo as representações de Cristo mutiladas pela iconoclastia, pelo maldade, pelo desleixo, pelo tempo. Se já tinha especial carinho pelas esculturinhas feitas pela imperfeita habilidade dos artistas sem formação, agora também estas se tornaram para mim instrumentos privilegiados de meditação, de pensamento e de oração.
Diz o autor de "Paciência com Deus":
"Se, na nossa oração, nos pusermos diante da cruz ou de um ícone, então este símbolo não deve ser um objecto mágico e sagrado, um instrumento de magia, mas sim uma lembrança (anamnesis) que nos arranca dos nossos sonhos, dos nossos círculos narcisistas e nos leva para fora da tentação do colóquio consigo mesmo. A oração é um diálogo."
Vê-las sem braços, sem pernas, desfiguradas, é contemplar a humanidade chagada por um tempo em que as máscaras tentam substituir o verdadeiro rosto das pessoas, sobretudo a sua imperfeição, que é fonte de sede e de vontade de beber. Ainda não li o livro de Tolentino (vem a caminho), mas parece-me que a negação da sede será sempre uma recusa da água pura, prontamente substituída por qualquer outro veneno sedutor que os ardis colocarão à nossa frente.
As máscaras tentam e vão conseguindo camuflar o rosto que nos pertence, para nossa desgraça. Resta-nos encontrar nessas feridas, mesmo ocultas, o paradoxo da esperança.

RV (21/5/2018)

NATAL INCÓMODO

         Em minha casa, o período natalício inaugura-se com uma ida ao campo, onde a família apanha musgos e ramos de variada vegetação para com eles montar e ornamentar o presépio. Se ainda é fácil encontrar a indispensável gilbardeira, com as suas bagas vermelhas nascidas de folhas duras e espinhosas, vai sendo cada vez mais difícil encher o balde com o tapete que há-de fingir um chão verde e fresco. Andamos todos a pagar os desmandos da ignorância e da ambição desmedida e a Natureza vai dando sinais muito preocupantes... Neste ano, quando chegou a altura de colocar a imagem do Menino no lugar que lhe pertence, houve uma saudável disputa entre as crianças. Quem teria a honra de colocar "O mais importante" no seu lugar? Comoveu-me a solução encontrada pelos miúdos: cada um pegou em seu braço e assim desceu ao centro a imagem mais pequena, mostrando que o ínfimo pode bem ser expressão do maior, daquele que mais importa.
         Terminada a “obra de arte” efémera, divulguei pelos amigos e conhecidos o resultado, não resistindo ao exibicionismo ingénuo de que todos vamos sendo mais ou menos vítimas incautas. Horas depois, ao abrir a minha caixa de correio, estavam lá depositadas as palavras de um (verdadeiro) amigo. Sem vocativo nem despedida, percebi que tinham sido escritas após a observação das fotografias do nosso presépio. Não seria curial trazê-las para o domínio público, mas interessa-me registar que elas me recordaram, picando-me, como se fossem um pampilho dos campinos ribatejanos, o que mais importa no Natal: o ínfimo que alcança a suprema importância.
         Época de alegrias, de felicidade - mas também de euforias fabricadas, manipuladas pelo consumo -, o Natal leva-nos, frequentemente, ao esquecimento daqueles que assim não sentem, travando diariamente uma terrível luta com a angústia, com o vazio ou com o negrume, mal conseguindo esboçar um sorriso perante as agruras da doença, do desemprego ou de uma dignidade perdida, tentando arranjar uma réstia de ânimo para se levantarem da cama sabendo-se alvo de injúrias e de incompreensões, querendo elevar o coração apesar de se verem sem tecto, sem alimentos dignos, sem uma companhia ao lado ou à distância, sem os seus entes queridos. Mesmo quando os lembramos nesta época de preparação para a festa do nascimento de Jesus Cristo, tantas vezes os olhamos como grãos de pó que é importante sacudir da lembrança, não vá ela ficar toldada (menos “alegre”) pelas suas nuvens incómodas. E, no entanto, foi sobretudo para estes nossos companheiros de existência que a encarnação do Divino Infante aconteceu e continua a acontecer, enquanto recordação rediviva e actuante. Bem sei que esse acontecimento milenar pouco ou nada interessa a uma sociedade onde o dinheiro é deus e rei, mas a verdade não tem outro conteúdo nem a festividade outro sentido, mesmo que o alheamento das luzes comerciais e financeiras nos tentem virar o olhar para lugares distintos e sentimentos menos nobres. Esquecer o sentido do Natal é esquecer tudo. Não há outro caminho. Ou somos incomodados por ele ou não vale a pena comemorá-lo.
         Nestes dias que nos conduzem à tão desejada jornada, teríamos certamente vontade de ser um pouco subversivos e, de uma vez por todas, substituirmos a correria pelas lojas por uma correria por muitos daqueles que precisam da nossa presença ou, pelo menos, da nossa palavra. De boas intenções está cheio o mundo inferior, pensarão... Muitos temos compromissos familiares ou sociais e facilmente, nestas semanas e naquela noite venturosa, esquecemos os que estão sós, sem ânimo ou com a sua dignidade erodida. Não é fácil irmos ter com eles ou trazê-los à nossa presença. Não é contudo difícil, no momento certo, marcarmos o nosso companheirismo com uma palavra oportuna ou, até, com um gesto ou com uma mensagem que vá além daquelas que mandamos por atacado a todos os nossos "amigos" que, tantas vezes, nem conhecidos são na verdadeira acepção do vocábulo. Se calhar será esse o momento mais alegre ou mais feliz da noite. O momento em que o Natal nos incomodou. Creio que sim. Afinal o Paráclito é aquele que nos espicaça e consola... (Espero, sinceramente, não ser como frei Tomás...)

RUY VENTURA


Em defesa do património religioso 
– agir é preciso... E depressa!

Foi há um par de anos. Entrei na loja de uns missionários em Fátima, uma das maiores do centro da localidade. Falando com um familiar de uma peça de arte sacra antiga a precisar de conservação competente (hoje felizmente bem restaurada, com critérios éticos e científicos), fui prontamente interpelado pela empregada do estabelecimento. Solícita, sem grande noção das conveniências, interrompeu a conversa e atirou, de arrancada: “Se quiser, temos um senhor muito jeitoso que a põe como nova...”
Percebi que a senhora me confundira com um sacerdote. Fiquei estupefacto, respondi de forma evasiva, mas fiquei a pensar: “Quem resiste a estas abordagens se não tiver ética, educação, juízo, pudor ou um bispo com mão de ferro e sabedoria de um diplomata? Quem?”
Multiplicam-se pelo nosso país casos de raspagem e repinte de esculturas e retábulos das nossas paróquias, de vandalismo aplicado a telas, tábuas e pinturas murais centenárias. São peças importantes do património espiritual dos crentes e, também, elementos inalienáveis da nossa memória coletiva. São obras de arte e criações inspiradas e, como tal, merecem o mais escrupuloso respeito. Outra coisa não diz, aliás, o Direito Canónico. A situação a que chegámos é todavia muito grave, mesmo que vejamos alguns exemplos de boas práticas, pontuais e minoritários, que não escondem a “selva” que por aí vai, do Algarve ao Alto Minho, com exemplos recentes de perigoso retrocesso.
Enquanto tivermos como fiéis depositários do património religioso pessoas que, à parte a sua competência pastoral, revelam (como autarcas deslumbrados ou construtores civis siderados) uma ânsia incontrolável, querendo “deixar obra” construída, esculpida ou pintada a todo o custo, continuaremos a assistir atónitos à destruição do nosso património artístico e espiritual. Enquanto se manifestar um insaciável voluntarismo que olha para as obras de arte como objectos utilitários sem valor intrínseco e não como manifestações materiais, visíveis, de Deus connosco, continuaremos a testemunhar um vandalismo cujos agentes, ainda por cima, se apresentam com ares de esteticistas ou maquilhadoras de bairro pobre. Enquanto quem de direito não agir com rapidez, ciência e firmeza, parando os desmandos que violam as leis do País e o Código do Direito Canónico, ou deixando mesmo de colaborar com eles, continuaremos a multiplicar os lamentos por um património perdido, quiçá para sempre.
Não será tempo de todos nós – investigadores, conservadores-restauradores, museólogos, amantes da arte, sacerdotes com sabedoria, fiéis com ética e estética, simples amantes do património – fazermos algo além dos simples comentários no “feicebuque”? Se o não fizermos, talvez seja tarde. E não valerá a pena tecermos mais tarde um rol de lamentações.

Artigo publicado nos jornais "Diário do Alentejo" (Beja), "Alto Alentejo" (Portalegre) e "Raio de Luz" (Sesimbra).




UM HOMEM BOM

por Ruy Ventura
(in "Raio de Luz", de 27/7/2017)

         Ao longo dos últimos vinte anos, Sesimbra foi um município afortunado. Nem todos os concelhos se podem gabar de ter tido à frente dos seus destinos dois homens bons, como Amadeu Penim e Augusto Pólvora. Não me refiro, como é óbvio, à bondade destes cidadãos e homens políticos exemplares que me habituei a admirar, mesmo discordando dalgumas das suas opções políticas, estratégicas ou pessoais. Tendo embora notícia das suas qualidades éticas e morais, nestes anos que levo de munícipe e, agora, amigo da digna Piscosa, não me sinto autorizado a tecer ditirambos a essa qualidade que, segundo rezam os testemunhos mais fidedignos, sempre lhes assistiu enquanto foram edis da capital da Arrábida e do seu território. Também não me refiro, como é óbvio, à bitola económica, fundiária ou profissional que, na Idade Média, seleccionava aqueles que podiam votar e ser votados nos órgãos municipais. Felizmente vivemos noutros tempos, nos quais a democracia, ainda que muito imperfeita, nos garante outros critérios na escolha de quem nos governa e na dispensa daqueles que nos vão desgovernando.
         Recentemente retirado do número dos vivos, Augusto Pólvora era para mim – e ficará sendo – um homem bom do seu concelho e da sua região. Posso afirmar, sem rebuço, que nisso foi um bom sucessor de Amadeu Penim, garantindo a continuidade de uma política autárquica que, na minha modesta opinião distante, soube aliar proximidade e empatia com o necessário rigor na gestão da causa pública, sendo simultaneamente humilde e estratega, atenta e proactiva. Em qualquer das personalidades, não creio que o seu legado possa ser reivindicado seja por que força política for, seja por quem for, sob pena de desrespeito ao trabalho que deixaram como património e como semente. Homens da terra, pela terra trabalharam. Tudo o mais foram ferramentas e circunstâncias de somenos, necessárias, mas secundaríssimas.
         Quando me ponho a recordar as memórias que guardo e guardarei do arquitecto Augusto Pólvora, só consigo lembrar alguém que amava, com todas as suas forças, a terra onde nascera. Filho de gente simples e resistente, daquela que o tempo longo foi ensinando a enfrentar a terra e, sobretudo, os abismos oceânicos, sentia-se nele um entusiasmo pelas coisas de Sesimbra que não era fácil encontrar noutros que o acompanhavam nas lides autárquicas. Segundo me contaram na sede do distrito, essa sua força conseguia impor-se nas reuniões decisivas, levando não só a água ao seu moinho, mas gerando sinergias que conseguiam dar lugar a uma visão mais aberta e integrada do território arrábido, a qual não dispensava a afirmação da importância da Península no todo regional e nacional. Nem sempre conseguiu fazer vingar a sua leitura – a democracia assim funciona –, mas pelo menos deixou-nos uma maneira de ver e de actuar que ninguém pode recusar, como testemunho recebido na corrida de estafetas que é a nossa existência.
         Não gosto daquele velho hábito português que limpa a memória deixada pelos defuntos das suas impurezas como quem lava um cadáver, antes de enterrá-lo. Se queres ser bom, morre… Não. Discordei bastas vezes das decisões das vereações presididas por Augusto Pólvora e nunca tal escondi, pelo menos durante os seis anos em que fui eleitor no município sesimbrense. Tal olhar não tolda no entanto a admiração com que fui lendo, ao longo do tempo, a sua personalidade humana e política. Além de tudo, amava a sua terra. Tive provas disso, embora modestas. Não foram poucas as vezes em que, pessoalmente, por escrito ou por gestos, manifestou o seu apreço pelo meu trabalho de investigador da sacralidade da Arrábida e das tradições religiosas sesimbrenses. Isso tenho a agradecer-lhe. Desses pequenos gestos recebi ânimo para continuar, reduzindo à sua irrelevância a atitude bem diferente de outros que poderiam ter agido com outra inteligência e abertura, nem que fosse por cálculo diplomático.

         Lembro, nomeadamente, o seu olhar entusiasmado na memorável sessão de 24/7/2014 na igreja da Misericórdia de Sesimbra, perante a voz magnífica de Teresa Salgueiro, perante a força da declamação de Maria Barroso e, também, perante as pobres palavras deste que vos escreve, enquanto defendia – aos pés do Senhor Jesus das Chagas – que Sesimbra é de pleno direito a capital da Arrábida. Outros fingiam ou cochichavam. Ele não. Bem sei que palavras me dirigiu no final do evento. Não as reproduzo. Guardá-las-ei no meu “arquivo” pessoal. Naquele dia, contudo, percebi melhor as razões que levaram o grande filósofo e grande sesimbrense Agostinho da Silva a defender que a política deve ser uma forma de santidade ou uma via a caminho da santificação. Basta que os representantes do povo, desde as juntas à suprema magistratura da nação, exerçam da melhor forma a sua bondade, tornando-se homens bons, inteiramente ao serviço do seu povo.

ALGUNS APONTAMENTOS
PERANTE UMA TRAGÉDIA


O FOGO, SOBRE O AUTOMÓVEL

Perante o que vejo e leio, não conseguiria manter-me em silêncio.
Foi num último dia de Julho, em 2003 (creio). Junto de Arês (Nisa), uma súbita mudança de vento fez passar o fogo sobre o meu carro… Imparável. Ainda hoje sinto o calor e vejo a flama a passar sobre mim. Não sei por que escapei. Não sei como escapei – vivo! (Já tive duas vezes a minha terra quase cercada de fogo, mas nada foi pior do que isto.)
Em Pedrógão, entre Castanheira de Pêra e Figueiró dos Vinhos, dezenas não conseguiram escapar. Estavam no local errado à hora errada.
Recordo o que me sucedeu há 14 anos e não posso conter as lágrimas por aqueles que morreram (62? mais?). Há dias em que nada conseguimos dizer. Nem a Deus nem aos outros, nem a sequer a nós. O silêncio reverente é talvez o melhor caminho. Que descansem em paz! Dai-lhes, Senhor, o eterno descanso.


PERMITE QUE ATÉ TI CHEGUE O MEU PRANTO
Ao chegar o meio-dia, fez-se trevas por toda a terra, até às três da tarde. E às três da tarde, Jesus exclamou em alta voz: ‘Eloí, Eloí, lemá sabachtáni?’, que quer dizer ‘Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?’ " (Mc 15, 33 - 34).
É em dias como este que percebemos deveras o que são e para que serviram (e servem) as cinco chagas do Salvador. É nestas ocasiões que entendemos, no mais fundo do nosso ser, que o nosso Deus é “um Deus ferido, como tão bem viu Tomás Halík. Ficamos então a saber em que consiste a imitação de Cristo, ainda que tentemos esquecer tal proposta, pois parece-nos demasiado pesada.
Rezo com T. S. Eliot:
O ar que agora é completamente rarefeito e seco
Menor e mais seco que a vontade
Ensina-nos a curar e a descurar
Ensina-nos a permanecer tranquilos.
[…]
Não consintas que nos iludamos com embustes
Ensina-nos a curar e a descurar
Ensina-nos a permanecer tranquilos
[…]
Não consintas que eu me aparte
E permite que até Ti chegue o meu pranto.


AINDA O LUTO (MAS TAMBÉM A INDIFERENÇA ALARVE E ARROGANTE)

Na sua sabedoria aldeã, a minha avó dizia: “Agora o luto é um par de óculos escuros…”. Se vivesse neste tempo, diria: “Agora o luto é um boneco que se põe no facebook…
Cada um tem a liberdade de fazer o que quer, mas há atitudes que me chocam. Como é possível que alguém, no seu mural, manifeste o seu luto pela tragédia colectiva que estamos a viver e, ao mesmo tempo, continue a publicar fotos de comezainas, de pernas ao léu na praia ou noutro lado, de copos de imperial acompanhados por sorrisos satisfeitos ou alarves, de outras trampas que nem vale a pena listar?
Um dos grandes dramas do interior português que vai ardendo todos os verões e das suas vítimas é a indiferença com que tudo é olhado por aqueles cujo único horizonte está no seu próprio umbigo. São como Basílio Enxertado (personagem de Camilo) que arrotava satisfeito, mesmo perante os dramas alheios, porque se sentia bem longe deles e, quiçá, acima deles. 
Enxertados há muitos, infelizmente e para nossa desgraça. Enxertados com rebentos de indiferença, de egoísmo, de nihilismo, de carreirismo, de sobranceria, de arrogância, de tudo quanto há de mau por aí à mão de semear E nem todos são políticos, empresários ou gente grada
Tenho dito (porque tinha de dizer).

*


De luto, porque é impossível sentir de outro modo neste dia e nos próximos. De luto, porque luto contra o desânimo e a desesperança (e é preciso lutarmos todos)!



20 ANOS DEPOIS, É TEMPO DE PERGUNTAR

Iniciei a minha actividade como poeta e como investigador na primeira metade dos anos 90 do século passado. Em 1997, um júri da Associação Portuguesa de Escritores – constituído por Fiama Hasse Pais Brandão, Fernando Pinto do Amaral e Urbano Tavares Rodrigues – atribuiu ao meu primeiro livro, "Arquitectura do Silêncio", o Prémio Revelação de Poesia. Por esta altura, há precisamente 20 anos...
Passado este tempo, é uma boa altura para deitar contas à vida. Desde a edição dessa primeira obra, no ano 2000, publiquei bem mais de uma dezena de livros e antologias, não contando com as obras de investigação histórica, literária ou etnográfica, ou com a revista "Devir" - e esquecendo os estudos, ensaios, crónicas e poemas que estão por aí espalhados, em colectâneas, revistas e jornais, bem como as palestras, comunicações e conferências que tenho feito. Tenho traduzido vários autores para a nossa língua e tido a satisfação de ver textos meus em espanhol, francês, inglês, alemão, catalão e italiano. (Só Deus sabe as alegrias, as chatices e os sofrimentos que todo este trabalho me tem trazido...)
Passadas duas décadas, impõem-se com mais força as perguntas necessárias e de sempre, ainda que conduzam a um processo de revisão pessoal, nem sempre fácil:
- Porquê?
- Para quê?
- Para quem?
- Vale a pena?
Das respostas que eu venha a dar, tirarei as devidas consequências.

QUE RESTARÁ DA FÉ?

As intervenções públicas dalguns teólogos (cuja eminência cultural e exegética não discuto e admiro) têm-me levado a remoer aquela pergunta assustadora de Jesus de Nazaré, registada por São Lucas: "[...] quando o Filho do Homem voltar, encontrará a fé sobre a terra?" (Lc 18, 8). Ultimamente têm falado sobre o acontecimento-Fátima, mas as suas reflexões multiplicam-se e espraiam-se pelos mais variados assuntos. Nesses artigos, livros e entrevistas, parecem ser avessos ao "meta-realismo" essencial na experiência religiosa, recusando a distância que existirá sempre "entre nós e a verdade", "entre nós e o infinito", pois, como confirma Jean Guitton, a crença "não é saber, acreditar não é compreender, acreditar é aderir na noite".
Bem sei que o Salvador tinha consciência desta postura, existente já no seu tempo e multiplicada até à nossa contemporaneidade. Por isso mesmo nos assegurou de que a entrada no Paraíso só ocorrerá se voltarmos a ter a humildade das crianças de tenra idade (Mt 18, 3 - 5). Com grande alegria, Ele mesmo agradeceu ao Pai ter escondido "estas coisas aos sábios e inteligentes", guardando a revelação para os "pequeninos" (Lc 10, 21)... Estas e outras palavras de Jesus comprovam quão grande era a distância entre a Sua doutrina e uma postura gnóstica e cátara da aproximação a Deus, propagada logo nos primeiros séculos do cristianismo e transformada, no nosso tempo, em várias formas de sobranceria intelectual.
Bem sei, ainda e de antemão, que chegará um tempo em que dominará o chamado "mistério da iniquidade", "com todo o tipo de seduções de injustiça para os que se perdem, porque não acolheram o amor da verdade para serem salvos" (2 Ts 2, 3 - 12). Mas mesmo assim me deixo inquietar pelo discurso dalguns teólogos com visibilidade pública. Desconfio que esse tempo iníquo já chegou e que os "milagres, sinais e prodígios enganadores" se vão operando por aí, pela mão de uma humanidade seduzida pelo canto das sereias que, mais tarde ou mais cedo, levará ao seu afogamento.
Talvez me engane, todavia... Afinal, não deixo de recordar que atribuir ao Demo a acção divina é, sem dúvida, o maior pecado que se pode cometer, pois se atenta contra o Espírito Santo: se alguém disser algo contra Cristo, "há-de ser-lhe perdoado; mas, se falar contra o Espírito Santo, não lhe será perdoado, nem neste mundo nem no futuro" (Mt 12, 31 - 32). Afinal, nesse tempo iníquo, Deus enviará "uma força que leva ao erro", de modo a conduzir os que recusaram o "amor da verdade" a acreditarem "na mentira", levando assim à condenação de todos quantos "sentiram prazer na injustiça" (2 Ts 2, 11 - 12).
O que escrevo só o registo porque tenho as costas quentes... Rodeado pela memória e pelos livros de Charles Péguy, Marie Noël, Cristina Campo, Jean Guitton, Agostinho da Silva, Teilhard de Chardin, Dalila Pereira da Costa, Sebastião da Gama, Frei Agostinho da Cruz, Santa Edith Stein, São Karol Wojtila, etc. a minha coragem é outra.

RUY VENTURA


(Gravura: "Fé, Esperança e Caridade", de Johan Wierix.)


SALVAÇÃO PELA LEITURA
(do livro ao Livro do Mundo, 
passando pela Ilha dos Amores 
e pela esfera armilar)

Domingos Fernandes, poeta alentejano falecido em 1972, tinha versos surpreendentes. Vendedor de pratos antigos a José Régio, sem nunca lhe dizer que também escrevia poemas, era capaz de palavras certeiras como estas: "Há muito livro bonito, / Muito bem encadernado; / Mas tudo quanto tem escrito / É reclame de mercado. // Há livros mal capeados, / Não prestam para vender; / Mas são uns livros sagrados / Que todos deviam ler. // Com tais livros apontados / Há homens muito parecidos; / Há talentos mal roupados, / Há imbecis bem vestidos. // Há muito sábio perdido, / É pena não ser achado, / Há muito burro mantido / À manjedoura do Estado". A preservação deste texto deve-se a José Correia Tavares, seu sobrinho por afinidade, que em 1967 os publicou numa revista editada em Angola, sem conseguir todavia impedir o corte da última estrofe pela censura.
Já em 1999, a sua discípula Maria Tavares Transmontano divulgou uma quadra de sua autoria que nos obriga a pensar: "Mais ainda que os outros livros, / Lê bem o livro do mundo, / Que hás-de achar onde te salves / De algum pélago profundo!"
Se o primeiro poema me agrada pela comparação sarcástica e certeira, o segundo traz-me ressonâncias longínquas com que o autor, homem culto mas simples das serranias do Alto Alentejo, nem sequer terá sonhado. O "livro do mundo" faz-me sempre recordar o emblema adoptado por el-rei Dom Manuel: uma esfera, tendo à volta ou na base a legenda spera mundi
Sempre me intrigou este letreiro usado pelo herdeiro de D. João II. A leitura literal da esfera armilar deveria obrigar à indicação de uma sphera mundi. Todavia, tal não aconteceu. Entre uma e outra palavra alguém resolveu estabelecer a polissemia, uma leitura dupla ou infinita promovida pelo equívoco significativo. Suprimiu-se a H - e a esfera viu-se transformada em esperança, a que chegamos pela espera, pois só a paciência nos pode levar a alcançá-la. E a paciência liga-se à alegria que, nas palavras inspiradas de São Francisco de Assis, consiste na calma perante as maiores adversidades.

Não creio que essa espécie de divisa manuelina se tratasse apenas de um jogo. N' Os Lusíadas, por exemplo, Camões fala da contemplação da esfera ofuscante como cume da experiência mística (o que deita por terra todas as leitura chãs do episódio da Ilha dos Amores, como bem sabiam Fiama Hasse Pais Brandão e António Telmo). Dalila Pereira da Costa, por seu turno, explicou que a contemplação do mistério de Deus pode consistir na contemplação de um globo luminoso, visto no mais alto instante da vivência inefável. Dá-se a coincidência de a raiz semita SPR significar escriba, mas também livro, escrita, número, arquivo ou registo de memórias. Tal radical pode ter originado a nossa esfera especiosa, misteriosa. Assim se indica que o globo é, sobretudo, um livro; que a sua contemplação corresponde à sua leitura; e que nesse livro (sepher) está a esperança (spera ou spes), porque contém o mundo (sphera), ou seja, a memória de todos nós (spr).
Se seguirmos por aqui, concluiremos que na leitura está uma via de salvação. Não numa leitura qualquer, mas na contemplação consequente das Escrituras que revelam o mistério divino. Não concebiam os mestres talmúdicos o Paraíso (Pardèsh) como "lugar da leitura"? Tenhamos pois Esperança, que é a ponte entre a Fé e o Amor. E meditemos nas palavras avisadas de Domingos Fernandes: a leitura do "livro do mundo" pode salvar-nos do abismo.



Ruy Ventura
Nicolau Saião
(no jornal caboverdiano O Liberal, 3/11/2005)

FIGURAS PORTALEGRENSES – RUY VENTURA

[...]
No princípio dos anos 90 – era eu funcionário na Biblioteca Municipal de Portalegre – , certa manhã fui procurado por um jovem dos seus 18 anos que a breve trecho da conversa percebi não ser pessoa vulgar. Vinha informar-se sobre etnografia da região e, pouco depois, a conversa orientou-se para os lados da poesia. Palavra puxou palavra e a dado passo, algo timidamente, o meu interlocutor disse-me que também fazia versos e que, interessado nas artes, até já vira quadros meus numa exposição havida pouco tempo atrás na galeria local.
Lá tratámos dos assuntos que o ocupavam e, passados uns dias, trouxe-me um caderninho com poemas escritos à mão que considerei atentamente.
Estebelecera-se um contacto que persistiu através dos anos e se cimentou depois de eu ter tomado conta da função de responsável directo no Centro de Estudos José Régio.
Estudante de excepção – trabalhador e muito informado, faria a seguir uma licenciatura e um mestrado em estudos literários – Ruy Ventura (nas.1973) continuou a escrever poemas que, em 1997, mereceram o Prémio Revelação/Poesia da Associação Portuguesa de Escritores pelo seu livro “Arquitectura do Silêncio”.
Hoje, o meu amigo e confrade é uma das vozes representativas da novíssima poesia portuguesa. Tal tem sido reconhecido por personalidades tão diferentes como Agostinho da Silva, J.O.Travanca-Rego, Amadeu Carvalho Homem, Marcelo Rebelo de Sousa ou, no estrangeiro, Antonio Sáez Delgado, Floriano Martins ou Gérard Calandre. Autor de outros livros de poemas, de traduções e de ensaios, RV é um companheiro esclarecido, talentoso e vertical – um homem de antes quebrar que torcer, como se diz em português vernáculo.
Foi ele que escreveu o texto que vai a seguir, celebrando nostalgicamente a sua vila de Carreiras – e assim inicio como prometera a cíclica apresentação de figuras notáveis da minha região alentejana.

As ruas das Carreiras onde eu nasci (após ter visto a luz em Portalegre e sangue novo em Lisboa) já não existem. São outros os nomes, outras as pedras – que teimam em não deixar esquecer a calçada antiga -, outras as casas. Só o horizonte não mudou ainda: a mesma serra, o mesmo azul longínquo, os mesmos sobreiros rompendo por entre as lajes, a escola, rompendo a folhagem das acácias e das amoreiras.
Entre o número oito da rua da Fonte Nova e o número cinco da Calçadinha, pouco resta de há vinte e cinco anos.
A fonte perdeu alguns dos seus azulejos e deixou de ter malvariscos pelo São João.
A dona Maria José já não se preocupa com as suas dálias, algures entre as minhas duas tangerineiras. O ti’ João Narciso já não abre a sua meia-porta vermelha, nem a ti’ Bernarda fica comigo na altura das azeitonas.
O barro desapareceu hoje dos caminhos (assim como os escaravelhos, e os burros escorregando até em frente às ruínas da Casa da Carreirinha).
Do Chão da Amoreira, como eu ainda o conheci, ficou apenas uma nesga de terra apertada entre duas casas. Os castanheiros, os abrunheiros, o muro (quase segurando a oliveira), situam-se no mesmo lugar que hoje ocupa a casa da avó - amarela, com barras brancas, um botaréu cheio de craveiros, uma roseira fazendo esquina frente ao canto do lume, do outro lado da rua, entre as flores dos rapazinhos e a parede de pedra solta, há muito tempo esbarrondada.
O Ribeirinho é hoje só nome de rua. Já ninguém lava nas suas águas, empresadas junto de uma figueira velha. Desapareceu sob o alcatrão e a sarrisca, para dar lugar a uma estrada larga. Continuo, no entanto, a regressar a este espaço, como se regressasse chamado pela voz dos sinos, que tanto embalam os mortos quanto repicam carreirense novo ou hora de procissão. O automóvel (como há uns anos a camioneta) continua a dar a mesma volta, trezentos e sessenta graus em torno da distância, feita entre algum riso e toda a melancolia
”.