Nicolau Saião


Flauta de Pan
Lisboa, Edições Colibri, 1998, p. 24.






R. V.

Inquietação e solenidade. Ao longe
nos contrafortes da serra, casas e árvores
na sombra. A lembrança de um passado
feito de muitas leituras cruzadas, a incógnita
dum futuro nostálgico, de vozes desconhecidas, de
interrogações fortuitas (Será possível que se saiba
o que de facto se pensa, o que se aprendeu ou sonhou
o que foi realmente a nossa rota?) ou então
a certeza de que não foi em vão que se olharam
as pessoas, os seres que por nós passaram, as
deambulações por praias e bosques (a visão dum
fruto, o sabor dum repasto, a silhueta de alguém
numa rua onde a chuva caía). Nada afinal poderemos
adivinhar, nada poderemos dizer – se a recordação
de tudo o que fizemos ficar retida noutras palavras
– instante perpétuo que perdêmos
sem que o soubéssemos, por nossa incauta razão.