Chave de ignição, de Ruy Ventura

Chave de ignição (Editora Labirinto) é o mais recente livro de Ruy Ventura (n. 1973) e organiza-se entre dois pólos – Natureza e Cultura.
O ponto de partida é a Natureza: «O cabelo recolhe a temperatura / da terra. Dissolve tudo / neste caminho virado a poente. / a mão segura as asas. / tenta encontrar o sono, a respiração – da montanha – e uma gota de água. / em silêncio, tenta encontrar uma gota de água / para dissolver este sal / que vai queimando a carne – e essa memória.»
A viagem faz-se num mapa de citações literárias: José Régio, C. Ronald, Maria Gabriela Llansol, Fiama Hasse Pais Brandão e um texto do evangelho de São Lucas. Se juntarmos as palavras de Fernando Guimarães e Pedro Sena-Lino na contracapa, o prólogo de Gonçalo M. Tavares e o óleo da capa de Nuno de Matos Duarte, temos a provável chave de ignição para viajar neste livro.
Trata-se de uma viagem entre a Morte («sem voz, sem terra, sem sombra – estes ossos e / estes músculos limitam-se a fotografar / um tráfego de sombras e revelá-lo entre os poros / enegrecendo a pele, tornando roxas as unhas, encanecendo o cabelo, / eliminando-se assim as poucas palavras / que permitiriam atravessar a fronteira») e o Amor: «desenho no poema os recantos / dessa casa que habitamos / abro a porta quando menos espero / entro com a sede de quem viu nessa noite / o fogo devorando o sol e a alma / morro e ressuscito / como quem visita um santuário.»
Entre a Morte e o Amor, a viagem da Vida: «a árvore estabelece o eixo e o caminho».



(Artigo de José do Carmo Francisco publicado no blogue Aspirina B, a 25/7/2009, em http://aspirinab.com/jose-do-carmo-francisco/vinte-linhas-384/)
Seis Apontamentos
sobre
Chave de ignição, de Ruy Ventura

por João Candeias

Há quem diga que vivemos na sociedade da algazarra. Todos falam, todos querem aparecer. É verdade que numa sociedade dita democrática cada cidadão tem direito à opinião. Esta algazarra é consequência de um deserto de ideias – palavras oralizadas, mas vazias de conteúdo, são geralmente um deserto de ideias em que se vão repetindo conceitos de outros até à exaustão. Ou seja, muito barulho por nada (esta expressão não me é estranha…). Talvez nada seja um pouco exagerado. Muito barulho por quase nada. E assim, com este quase, aqui estou sorrateiramente (procurando não fazer muito ruído), com muito prazer, a apresentar um breve texto como proposta de leitura do livro Chave de ignição, de Ruy Ventura, que organizei sob a forma de “seis apontamentos”.
Antes disso, porém, gostaria de recordar que o autor destes poemas tem publicados vários títulos, dos quais destaco os seguintes: Arquitectura do silêncio (2000), Sete capítulos do mundo (2003), Assim se deixa uma casa (2003) e El lugar, la imagen (editado em Espanha) (2006).



1.

O livro sobre o qual nos debruçamos – Chave de ignição, de Ruy Ventura – é denso, de uma energia primordial e de instintual vitalidade.
Várias abordagens seriam possíveis e esquematizáveis: abordagem ao conteúdo e suas diversidades semânticas (e, aqui, com a complexidade do sujeito enunciador), estrutural e polissémico, com os materiais linguísticos em presença, de análise particular que cada poema propõe; ou, uma aproximação mais geral, mais global de toda a obra.
Decidimos optar por esta última hipótese. Tocar em vários aspectos que o texto apresenta, com o cuidado de que esta apresentação se não prolongue para além do que é tolerável para quem aqui está presente. “Esto brevis et placebis” – Sê breve e agradarás.


2.

Chave de ignição está dividido em cinco núcleos: um prólogo, três partes e um epílogo, ou um prólogo, um epílogo e três jornadas, um pouco à maneira wagneriana. A saber: “[prólogo]”, “contramina”, “viagem”, “ignição” e “[epílogo].
No conspecto da obra em apreço, um ponto deve ser especialmente considerado (ainda que inconscientemente) – a análise comparativa – uma vez que nunca nos alheámos nem nos furtámos ao que para trás ficou das leituras que, ao longo de décadas, mais nos marcaram.
Esta leitura não foi excepção: uma girândola de livros e autores surgiram na busca axial destes versos. E assim, toda uma arqueologia substantiva e arquitectural da construção do poema emerge desta incursão pelo “corpus” da obra. Destacar desta incursão o que nos pareceu mais saliente não foi tarefa hermenêutica despicienda.
Ruy Ventura em cada poema fragmenta a lógica do discurso para assim o tornar mais acutilante e impressivo. Contudo, a lógica interna de cada uma das cinco partes em que se divide o livro une-se num todo perfeitamente coeso e centrípeto. Devemos considerar também o sentir que move o autor em sentido, por vezes ambíguo, mas evidente – o desejo.
Como diz Silvina Rodrigues Lopes no seu livro Anomalia Poética, “[…] há um móbil muito poderoso que leva à poesia, o desejo”. E nós acrescentaríamos – a necessidade da escrita.
A conclusão é a de que estamos perante uma obra rara neste tempo de secura, de culturas poéticas extensivas e sonolentas.


3.

A poesia é, de certo modo, o eu perscrutando o insondável, como sentido antecipador do devir.
A eclosão do poema é a consequência do pulsar de uma tensão interior das palavras forçando a sua periferia de silêncio. Partindo desta ideia, encontramos nestes versos uma contraposição dialógica entre tempo e memória, morte e salvação. Temos, portanto, o tempo ausente em “acontecimentos” memorados e o tempo presente em “acontecimentos” quotidianos.
Cito Paul Veyne, inserto por Gilles Deleuze no livro O Mistério de Ariana: “aquilo que se opõe ao tempo, tal como se opõe à eternidade, é a nossa actualidade”.
A noção de tempo atravessa estas páginas em que as palavras cimentam como elementos de composição a nossa actualidade, numa síntese visceral entre o objecto inanimado e a vida. A sombra do tempo acolhe o mistério. A violência da vida pode ou não conter a redenção? Demos a palavra ao poeta: “[…] a serenidade acolhe-nos – / como uma tempestade.” (p. 33)
Qualquer coisa de escatológico se esconde nos meandros da obscuridade, como veremos ao longo da leitura da obra. A vida só é vida com os seus fantasmas. É aí, no fluir – e da tempestade – que se apresentam, sob a forma de corpo que arde, se mortifica, se transforma em cinza e que, quando parece que se salva, ressurge em dúvida. E o poeta pergunta: “que dança divide o coração?” (p. 32). O medo instala-se intenso no corpo efémero. A dor é a palavra, a palavra balbuciada com o medo – a presença da morte.
A vida terá que ter sentido, e Ruy Ventura monda o eu, onde o ser parece perplexo com o que o circunda, como se se esperasse uma existência diáfana e definitiva. “A primeira forma de esperança é o medo, o primeiro rosto do desconhecido, o susto”, como refere Heiner Müller. George Steiner reforça: “O medo tem em si um grão de esperança, o pressentimento de poder ser superado. É o estatuto da esperança que é hoje problemático.” Para todo o efeito, resta-nos a esperança, quem sabe, a esperança num deus escondido que permita – sem livre arbítrio, como lhe compete – a salvação da vida, num planeta em fogo e chamas.


4.

Mas é, efectivamente, a memória que pauta e conduz o discurso, que agita o verbo e leva ao encontro de uma profusão lexical definidora dos propósitos do seu autor e da sua contribuição para a consistência da obra: medo, corpo, lume, fogo, cinza, sangue, dor, tempo, memória, etc., resultam na densidade dos poemas, envoltos em cepticismo invulgar na obra de Ruy Ventura. Apetece dizer como Strindberg na sua peça O Sonho: “A humanidade mete dó”.
Convoquemos de novo o autor: “[…] a carne / apodrece no lugar onde procuravam o curso / dos planetas […]” (p. 44). Assim regressa a voz ao fatalismo de uma existência da qual – quem sabe? – só a memória, a memória da História, nos salvará.
Por vezes, a memória dissolve-se em cinza – com o corpo – e são necessárias imagens fixas ou dinâmicas como suporte material: a gravura, a fotografia, o retrato, o filme. Damos exemplos com os seguintes versos: “não existe paisagem / para além do quadro. / monótona, a tinta dissolve / a alma e o pintor. / descreve esse segredo / como telha enegrecida – / lançando água para a terra, / guardando (sem saber) / fragmentos de tempo / que ninguém quis conservar.” (pp. 23-24)
A erosão impondo a sua acção sobre as coisas que a memória tenta reter.
O poeta quer agarrar a imagem, a vida fixada, como se esta fosse a última forma de reter a realidade. Consideremos os seguintes fragmentos: “a fotografia permanece em segredo” (p. 21), “o retrato transcende a caligrafia” (p. 22), “projectamos este filme na memória” (p. 35), “arde sobre o ventre a mais antiga gravura” (p. 44)… são exemplos que se apresentam ao longo destas páginas.


5.

E regressamos, como se percorrêssemos um círculo perfeito, ao primeiro texto deste livro: “a inteligência dos motores / dispensa a entrada da chave. / a ignição precisa apenas de sinapses / cujo código permita a deslocação / do objecto sobre o espaço.” (p. 13) ou “uma chave é somente uma chave. / alavanca que o metal permite, utensílio / apenas utensílio – de movimento, de entrada, de saída. / a combustão não vale como símbolo. / reduz a cinza, a fumo – e tudo o mais / é efeito da luz, da temperatura.” (p. 13). Sendo, na nossa opinião, estes versos fundamentais para uma leitura destes poemas, é nos versos que se seguem, também do “[prólogo]”, que encontro o centro desta obra: “mas guardo nas mãos o objecto – / metal e plástico, sem filosofia.” (p. 14).
É conclusivo, sem filosofia! Temos talvez num outro tentame sem filosofia, a autobiografia das sensações, das “pequenas percepções” – como dizia José Gil –, também elas em conflito com o que Ruy Ventura pretenderia, um apaziguamento do real, uma luz nas trevas, que de tanto persistir tem a certeza de encontrar.


6.

Fizemos uma viagem tortuosa, enfrentámos muitos dos pesadelos que a vida nos traz, mas não queremos terminar sem revelar o que um dos últimos poemas do livro nos propõe, embora sem excessos de optimismo. É, de resto, um dos muito bons poemas deste livro.
A luz volta a brilhar e a difícil esperança aparece como uma alvorada. Estamos no berço do futuro. E dizem os versos: “um corpo nasce. um corpo nasce // para que eu possa morrer.” (p. 47).
A vida vence a morte. A semente lançada à terra dará os seus frutos e, perspectiva-se então, a continuidade de um planeta onde todos poderemos habitar, mesmo com as atrocidades conhecidas. O risco é imenso, mas o sonho é a possibilidade do impossível.
O passado está completo. O futuro falará por si.

Lido por João Candeias a 16 de Julho de 2009
na apresentação de
Chave de ignição em Sesimbra.

Disponível também aqui.