Ruy Ventura e as viagens através do espelho

Nicolau Saião
in Arquivo de Renato Suttana, consultado em 3/12/2009:
http://www.arquivors.com/nsaiao22.htm



1.

Por vezes, atrás de nós, há um ruído insistente. Vamos por uma rua, estamos sentados na gare dum aeroporto, num café pouco frequentado, acabámos de nos levantar do banco de um jardim numa cidade estrangeira onde nos encontramos absolutamente sós ou, então, numa taberna de uma pequena estância balnear que visitamos pela primeira vez.

O ruído pode ser o de uma ferramenta manejada por um operário desconhecido, um animal enclausurado que forceja por se escapulir, uma qualquer máquina de que jamais veremos os contornos, o assobio intermitente de uma sirene de oficina ou de embarcação. Mais raramente, gritos abafados – que não identificámos ou que não sabemos de onde vêm.

Quem se esqueceu, quem pode olvidar a sensação de surpresa, de estranheza, de arrepio que esse barulho, quebrando a naturalidade do fragmento de quotidiano, despertou em nós?

Frequentemente, os poemas de certos autores são também assim: arrastam, suspendem, distorcem por um breve instante o mundo em que nos fixáramos, no qual excursionávamos ou que nos preparávamos para ocupar. São inquietantes, nostálgicos, palpitantes e, se nos sugestionam como a súbita aparição de uma paisagem desconhecida mas reconhecível, também criam em nós uma espécie de encantamento provocado por misteriosos filtros ou poções de secreta proveniência.

E afinal, para maior maravilha, tudo se passa no quotidiano. Tudo se revela, existe, projecta e vive a partir desse dia-a-dia em que as pessoas viajam, deambulam e se relacionam como se o fizessem num universo penoso ou fecundado pela alegria. Um universo concreto, onde existem sombras e luz.

Depois, tudo começa a existir nos livros e em nós enquanto leitores: de repente os poemas passam a pertencer-nos, tal como as visões das maiores aventuras que eles transportam. E, mais e melhor, afinal somos donos dos livros, essas máquinas de imaginar que a cada instante traçam no espaço rotas intemporais. Como num sonho (melhor, na realidade) somos habitantes dum país encantado, porque também as palavras que formam os versos, matéria aparentemente volátil, passam a ser tão nossas como um coração, um braço, as artérias ou a mão alucinada com que erguemos os sinais tempestuosos.


2.

O que mais me espanta neste autor (nesta pessoa) é a sua imensa disponibilidade, a sua curiosidade insaciável que o leva a explorar o interior pouco frequentado duma obscura loja de província ou de vila satélite, para ali descobrir por uma inflexão do destino livros há muito esperados e, depois, passar de repente para a audição de um disco de Bach ou de Haendel antes de elaborar um texto de reflexão política, efectuar um passeio à beira do Xévora, nos caminhos de S. Julião, conversando animadamente, a propósito de tudo e de nada, ao correr dos minutos: as aulas que irá dar, os projectos que procurará concretizar, aquilo que ouviu em Espanha ou encontrou em França – e sempre atento ao perfil melancólico ou ardente de uma árvore que de súbito palpita à beira do caminho ou, lá no fundo, que feição tem a água do rio que se espelha e as colinas que ainda se divisam sob o sol antes da chegada do anoitecer. Ou, nas suas horas, as meditações depois reveladas de como é o terror, de como é a miséria duma sociedade espúria e frequentemente concentracionária, de como é a graça e o privilégio de viver, de como é a esperança, o amor, a devoção à Terra. Tudo isto constitui a curiosidade dos verdadeiros poetas, o anti-academismo dos homens de carácter, a independência de espírito dos que sabem que, na verdade, tudo está em tudo, tudo contém o todo e por ele é propagado como um verso que atinge o cerne da vida renovada.

Na poesia de Ruy Ventura “as portas desaparecem com a noite mas as imagens ficam a meio da casa e a luz sobe para que possamos ver o seu rosto”. No seu mundo diário, que é um universo percorrido por acontecimentos e quimeras que cobram existência civil porque robustecidas pela vontade de tornar significativo o universo da necessidade, “há sempre alguém acenando para a mesa, um garfo ou somente um guardanapo traduzindo para a mesa o sabor da terra" e tudo existe livremente, mas gravemente – com a seriedade da vida que se escoa – "como se a noite fosse um sótão que há muito desapareceu”.

Em Ruy Ventura o homem inteligente e fraternal, a figura cívica de convicções e verticalidade que faz sombra a zoilos e a pequenos patifes – e por isso tem sido alvo de difamadores, de corruptos morais e de medíocres burlões – irmana-se com o poeta, ou seja: aquele que sabe reflectir, enquanto executa o seu mester, sobre a escrita e os seus meandros de temor e de serenidade, de busca e de encontro.

E por isso, para ele, decerto haverá sempre “uma luz que ao permanecer sob a água” será o seguro penhor de que mesmo que as casas se deixem, os tempos se abandonem à medida que os anos vão esgotando o nosso percurso, “há um tempo recuperado" e que sempre haverá, aberta e acolhedora, repleta de tempos a vir, "a porta que nos separava da terra”.
RUY VENTURA, A RECRIAÇÃO
DE UM MUNDO PECULIAR

José Vieira

(Fanal, suplemento cultural de O Distrito de Portalegre, nº 11, 23 de Março de 2001: 3.)


A poética de Ruy Ventura é uma poética de errâncias ou de desdobramentos contínuos, embora uma ideia de “casa”, “porta”, “interior da casa” pareça anula a outra ideia. Quer dizer, há como que uma espécie de abrangência: o querer concentrar num só lugar todos os lugares: “(…) toda a terra repetida no interior da sombra / (…) / toda a terra concentrada na mão (…)”.
A porta é, por outro lado, uma espécie de limite de sombra, um “limite diáfano”, parafraseando Sebastião Alba, que interroga e inquieta. Além de errância concentrada, a poética de Ruy Ventura parece-me também uma poética que deseja os limites, o para lá dos limites. Oxalá seja uma poética ida às últimas consequências: vida e obra. A coerência e o sentido ressoam aí. Valerá a pena? Um preço demasiado alto.
O primeiro poema propõe a “porta” e apresenta-se como a matéria disseminada por todas as linhas do mapa. Móvel, aliás. Porta que adivinha outras portas, outras dobras, outros desenvolvimentos, outras significações, outros lugares. É assim uma ideia que podia servir de epígrafe, lembrando-nos do verso de William Blake: “entre o conhecido e o desconhecido, estão as portas”. Essa matéria que compõe a porta é a substância da terra: a árvore – “entre a porta e a mão (…) / vai a distância (…) / esse pedaço de árvore (…)”. A porta: “árvore disseminada”, como diz Carlos de Oliveira num verso.
A origem do mundo, nesta poética, é ditada pela matéria: a árvore – “até os ramos das árvores baterão as palmas” (Livro de Isaías) –, a porta. É essa matéria, esse pretexto que unifica toda esta poética, penso.
A “porta” está referida em vários momentos: pp. 17, 39, 52, 87. A porta abre o interior da casa. A casa é o organismo.
A granada sobrecarregada de significados, onde tudo principia, acontece.
É o lugar das dobras, dos desenvolvimentos. E a “árvore”. A árvore é o exterior. Mas dizer a “porta” é dizer o exterior, é dizer a árvore. É propor talvez uma unificação.
A “porta”, a “casa”, a “árvore”. A “árvore” aparece desde “alicerces” móveis nas pp. 17, 40, 42, 49, 51, 59. Percorre todo o livro.
A floresta disseminada: quantas portas?, quantas casas?, quantos horizontes vistos?, quantas moradas?
Há muitas espécies arbóreas. Isso importa: o nome, os nomes – laranjeira, carvalhos, cerejeira, mimosa, pinheiros, macieira.
É importante encostar nome à coisa, e dar o nome à “casa”, ao som forte e sóbrio das pancadas no soalho limpo, na porta. Esse timbre depende também do nome, do grão das matérias. O sedimento que dá carácter à presença no “meio da casa”. Presença móvel ou volante, aliás.
O processo desta poética propõe outras figurações (“estátuas da noite”?), outros mundos. Afinal de contas o desconhecido ou o invisível sempre tão presente, mas tão inapreensível.
De muitos pontos de vista nos poderíamos aproximar desta poesia. Expus o que mais me chamou a atenção, o que considerei como que um punctum saliens, ou o determinante ou pormenor, por assim dizer, decisivo. O meu ponto de vista, afinal de contas.
Mas o livro de Ruy Ventura [Arquitectura do Silêncio] propõe muitos ângulos (“os ângulos das portas estão sobrecarregados de perigosas significações”, poeta irlandês). Eu vi por um deles e fiz a minha aproximação, o que vi ou percebi: a poética das coisas, a estrutura delas, ou a mudez que lhes estrutura o carácter.
José do Carmo Francisco

Prefácio a Arquitectura do Silêncio, Miraflores, Difel, 2000: 9 - 14.



Uma das leituras possíveis deste título – Arquitectura do Silêncio – aponta para que estas páginas sejam também uma “construção da morte”. A morte surge aqui no sentido do desaparecimento visual (a casa, o avô, a infância) mas sempre com a porta aberta à recuperação possível através da memória.
Ruy Ventura organiza o seu livro a partir da casa:

toca a mão na madeira (direi porta?)
como se tocasse toda a substância da casa
o seu vento as suas vozes os seus cheiros
os seus objectos a totalidade do espaço
que se adivinha para além das janelas e das paredes


Não se trata de uma casa imóvel e vazia mas de uma casa em transformação:

por detrás do quotidiano
a casa transforma-se é como se reunisse
em si um corpo não somente corpo
mas espaço ocasionalmente
encoberto sob as formas e constelações da noite


O poeta viaja “da montanha até ao mar levando no bolso pedaços de palavras” porque a viagem é (entre outras coisas) uma forma de interrogar o mundo:

tudo o que temos é como o princípio de um cometa
entre as frases e o sabor das mãos
é como chuva fecundando o reflexo das nuvens
fruto que a sede alimenta
entre nossos corpos e a momentânea distância
de uma estrela à outra


O poeta viaja muitas vezes num comboio e pode, por isso, reclamar:

não nos tirem daqui esta vidraça
é comboio para um país de nevoeiros
tarde na sombra de uma vírgula
ou planeta


Noutro poema é a estrada que precipita a reflexão:

a estrada ignora a velocidade do automóvel
tal como a sombra parece ignorar a própria árvore
cada viagem por mais curta que seja
é muito mais que o simples retrato do vento


Se o silêncio é a imagem projectada da morte, a viagem é a imagem projectada da vida porque a rapidez é uma vitória sobre o tempo. Vejamos o poema a partir da música de Schubert ouvida entre Lisboa e Portalegre:

o automóvel avança
e ao volante as notas são porto de embarque para as palavras

ave gratia plena

entre os sobreiros e a erva a despontar junto das cercas
a manhã constrói o seu itinerário


A viagem pode ter outras formas além da geografia – pode ser uma viagem ao passado como quando o poeta recorda Agostinho da Silva no Jardim do Príncipe Real:

não vale a pena transformar em símbolos
tudo o que um rosto tem de veio de água
a experiência conta-nos que o fogo
está muito longe de mapas
e infinitos


Duas “terras pequenas” – Coruche e Marvão – são pontos dignos de registo da viagem do poeta, são o intervalo entre o Campo e a Cidade:

nas terras pequenas o tempo transforma-se
o tempo faz-se verso como luva de pelica
e acaricia-nos a cara com o perfume das cores que se movimentam
no reino vegetal


Tal como os primeiros poetas, que escolhiam o herói e o vinham cantar de terra em terra, Ruy Ventura escolheu os seus heróis e motivos para cantar. As casas que perdeu, o olhar do avô, os seus destroços pessoais. Daí não ser estranho o uso frequente de palavras como “navio”, “oceano” e “naufrágio”. Todos nascemos na água e morremos com dezassete dias de sede. A água do poema é a própria vida com outro nome. O poema é o salvado, aquilo que escapou do desastre, uma viagem para a qual nenhuma companhia de seguros se atreve a emitir uma apólice. O poeta canta ao que restou de um tempo, de “um caminho percorrido”, de uma memória. Mas cantar é rezar duas vezes e, neste caso de Ruy Ventura, a oração vem religar dois mundos separados pelo tempo – a infância e a idade adulta. Não há paraísos perdidos mas há memórias felizes resgatadas no poema, repetidas, recuperadas. O poema liga de novo aquilo que os dias acumulados ajudaram a separar.
O poeta, todo o poeta, quer sempre unir, juntar, ligar. A vida prática é, porém, uma constante e permanente fonte de rupturas. O poema surge, para Ruy Ventura, como uma teimosia, uma recusa da ordem, uma revolta perante o inevitável. O poeta constrói a sua escrita numa carpintaria certeira, solene, exacta. O discurso é sempre contido, o verso não se expande, a ideia não se amplia em desmesura. Tudo na escrita deste jovem poeta respira a sabedoria acumulada em muitos anos de leituras mas, ao mesmo tempo, uma voz própria, de contornos definidos e modulações felizes. Há um timbre poético que não se repete, não copia nem secunda.
Vejamos, para terminar, um excerto do poema-memória do avô:

quanto lhe custariam a idade e o próprio sorriso
(tão longínquo quanto os olhares dentro do retrato
a caixa de pedreiro distante na escuridão como uma navalha perdida dentro do bolso)?

entre a cama e a lembrança das pequenas coisas
apenas visíveis na sombra dalgum olhar molhado
quanto lhe custariam
o miar do gato a adormecer na lareira
as castanhas comidas como luzes
a bicicleta substantivo próprio à espera de um lugar
dentro da geografia?


A figura (o pretexto) do avô surge assim como tripla referência – “casa, viagem e memória” ao mesmo tempo. É uma cartografia pessoal que o poeta transforma em poema. Com a secreta intenção de que não venha o esquecimento a destruir aquilo que o laborioso esforço do poema conseguiu juntar.
O SILÊNCIO COMO MEMÓRIA E CONHECIMENTO
Manuel G. Simões(Fanal, suplemento cultural de O Distrito de Portalegre, nº 15, de 27 de Julho de 2001: 3.)


Uma leitura do livro de Ruy Ventura (Prémio Revelação de poesia APE/IPLB 1997) passa inevitavelmente pelo título (“Arquitectura do Silêncio”), primeiro signo descodificador, e pelas duas epígrafes inseridas no exórdio dos dois capítulos: “Nós não somos. A casa é que nos habita”, de Fernando Guerreiro; e “Nada é, tudo coexiste”, de Bernardo Soares. E se “arquitectura” é a arte de edificar, o sintagma global concentra-se e projecta-se no segundo elemento do título, balizado como é pela contraposição exibida nas duas epígrafes. Isto pressupõe as relações do ser com as coisas (mundo) num processo de construção epistemológico que assiste ao fazer e desfazer de uma atmosfera / paisagem, colocando em primeiro lugar a casa, às vezes representada pela árvore em que os ramos funcionam como janelas de um espaço que se transforma na “memória do lugar” e em que os alicerces se ensaiam “dentro da linguagem”. A geometria da casa surge então quer como espaço interior (de silêncio), com efémeras ligações ou prolongamento com o espaço externo, quer como representação memorial de contornos esbatidos pelo tempo, pre(s)-sentidos do exterior. Em ambas as situações é a janela / vidraça (significantes com alto índice de frequência) o elemento que permite a intercomunicação de dois mundos, fronteira que “define a imagem entre as linhas e a textura das emoções” (p. 52), susceptível por isso de fornecer uma visão opaca (“uma vidraça / corpo volátil na insondável / textura do / abismo”, p. 55) ou ofuscada pela voragem do tempo que conduz à construção do silêncio: “a janela transforma o próprio espaço / acumula dentro de sua inquietação os instrumentos que vão transformando / a luz e a paisagem” (p. 51).
Na invenção verbal, a Natura passa de ambiente a “personagem” com que se confronta o sujeito poético na tentativa de sondar o enigma da viagem ou do fluir existencial, tornado obsessivo até pela gramática da intertextualidade, com a reutilização frequentíssima de segmentos textuais, dispostos embora noutra configuração prosódica. Mas ao mesmo tempo a voz poetante evidencia a sua função obsidente em torno do conhecimento, seguindo um processo gnoseológico só relativizado pela possibilidade de “erro” dos sentidos ou dos sentimentos.
Neste processo o sujeito desencadeia um mecanismo dialógico, interpelando, por exemplo, outra memória da casa (“recordarás aqui a máquina / de escrever”, p. 29; “vê como estremecem as flores”, p. 33; “não nos tirem daqui esta vidraça”, p. 53), embora tudo pareça apontar para um artifício retórico, isto é, de âmbito monologante. E o mesmo acontece quando o discurso invoca e evoca a memória como construção do silêncio em que o sujeito dual (“calemo-nos calemo-nos os dois”, pp. 77, 78 e 79) não obstante a iteração intratextual, tende a manifestar-se no sentido da opacidade: “somos / os dois apenas neblina / ou chuva nos limites do abismo”, p. 75).
O memorialismo que, ao fim e ao cabo, assoma à superfície do texto, indica como na construção está implícita uma reconstrução, ou seja, que a invenção é um lembrar de novo, um reflectir e um reflectir-se na memória; e que sob o véu problemático da invenção subjectiva se oculta sempre uma história real e objectiva (“memória do avô”, por exemplo, pp. 89-91) em relação à qual “as perguntas subsistem”: os rastos e os restos de antigas imagens.
Catarina Nunes de Almeida

Imagens da cidade na novíssima poesia portuguesa
Jovens Ensaístas Lêem Jovens Poetas. (Coordenação de Pedro Eiras), Porto, Deriva Editores, 2008: 58 – 59.


[…]
Quando cultiva a matéria ficcional que a metrópole lhe oferece, o poeta propõe quase sempre cidades dentro da cidade. O resultado é a aparição de cenários híbridos, talhados às luz de um certo realismo mítico. Interessante será explorar o facto de que na nova poesia portuguesa, ocasionalmente, a natureza ainda invada a c idade. O tema não é frequentado de modo significativo, ao ponto de podermos considerar o típico binómio cidade/campo tantas vezes estudado – não encontraremos por certo a giga de frutos, à cabeça de uma pobre vendedeira, que cruza o bairro moderno – porém, existem outros pequenos sinais, que graciosamente anunciam o natural, e que aliam uma vez mais o campo a uma dimensão libertadora. Essa ponte é projectada, com grande tenacidade, em alguns momentos de Arquitectura do Silêncio, de Ruy Ventura:

3.
lá dentro depois do portão fechado
tudo lembra a imprevista pontuação dos astros
cada
minuto
vale apenas como instrumento
secreta passagem para outros nomes
uma maçã comida pela madrugada
o ponteiro do relógio esperando encontrar nas cores
o fumo e as formas da natureza

4.
entre os ramos apenas a paisagem se prolonga
como se ninguém visse
tudo ou quase tudo vai guardando a identidade das coisas
geometria que sob as lâmpadas e o passar dos autocarros
vai desenhando a luminosidade
dos horizontes

[…]

No pequeno quintal, depois do portão fechado, um microcosmo edénico principia. Salvo por uma paz verde, o que existia no mundo, para o sujeito, acabou ali, como se murmurasse “santuário”, e a cidade se fechasse atrás de si. […]
Eberhard Geisler

Excerto do prefácio da antologia
Die Landschaft füllt sich mit Zeichen
Bamberg, Universitäts-Verlag Bamberg, 2007: 16 – 17.



[…]
Der letzte hier vorzustellende Dichter ist Ruy Ventura. Er wird 1973 in Portalegre geboren und verbringt seine Jugend in einem Dorf der Serra de São Mamede. Er studiert zeitgenössische portugiesische Literatur in Lissabon, unterrichtet an der Escola Superior de Educação in Portalegre und ist gegenwärtig Lehrer an einem Gymnasium in Sesimbra. Bislang liegen drei Gedichtbände vor: Arquitectura do Silêncio (2000), sete capítulos do mundo (2003) und Assim se deixa uma casa (2003). Für erstgenannten Band erhielt Ventura den Lyrikpreis der Associação Portuguesa de Escritores. Unsere Anthologie berücksichtigt nur diesen Band. Ventura ist, vielleicht ähnlich wie Luis Quintais, als Philosoph mit dichterischen Mitteln zu bezeichnen. So bedenkt er zunächst grundlegend das Seiende im Raum und in der Zeit. Er benennt Baum, Erde und Stein, aber auch die “tragezeit der sonne” und den Lauf des Baumes durch den Tag. Sodann bedenkt er das Eingelassensein des Seienden in die Offenheit de Welt. Heideggers Satz aus seinem Kunstwerkaufsatz, nach dem das Kunstwerk das Offene der Welt offen halt, ist hier nicht weit. Die Tür verschließt das Haus, ist aber zugleich über ihre pragmatische Funktion hinaus ein Öffnendes: “es berührt die hand das holz (sol lich tür sagen?) / als berührte sie die ganze substanz des hauses / seinen wind seine stimmen seine gerüche / seine gegenstände die gesamtheit des raums den man / jenseits der fenster und wände errät”. Man erinnert sich an die Sätze, die Heidegger im genannten Text über ein Paar in einem Gemälde von van Gogh abgebildete Bauernschuhe schrieb, um sich von Kunst als bloßer Abbildung abzugrenzen: “Aus der dunklen Öffnung des ausgetretenen Inwendigen des Schuhzeuges start die Mühsal des Arbeitsschritte. (…) Auf dem Leder liegt das Feuchte und Satte des Bodens. Unter den Sohlen schiebt sich hin die Einsamkeit des Feldweges durch den sinkenden Abend. In dem Schuhzeug schwingt der verschwiegene Zuruf der Erde, ihr stilles Versenken des reifenden Korns und ihr unerklärtes Sichversagen in der öden Brache des winterlichen Feldes”. Ein anderes Gedicht widmet sich dem Phänomen des Horizonts, um hieran ebenso das Wechselspiel von Begrenzung und Entgrenzung aufzuzeigen. Schließlich ist die durch die Neuzeit eingeleitete Epoche an, in der – nochmals Heidegger zufolge – die Offenheit des Seins von einem totalen technischen Zugriff auf Welt verstellt wird. Ein weiteres Charakteristikum der Lyrik Venturas sei noch genannt: die geheime Kommunikation unter den Dingen, von denen diese lyrische Welt bestimmt ist. Das lyrische Ich findet einmal “im geschmack der kastanien / alle farben und // alle planeten”. Eins liegt in der Nachbarschaft des anderen, eins geht aus dem anderen hervor. Man kann hier von einer gewissen Nähe zum Surrealismus sprechen. Sie gehört zu jenen Phänomen des Wohnens, das Ventura in dem hier vorgestellten Gedichtband beschreibt.
JOÃO MIGUEL HENRIQUES

CHAVE DE IGNIÇÃO

Já aqui falei do poeta Ruy Ventura. Por duas ocasiões, creio. A propósito da tradução para o inglês do seu terceiro livro Assim Se Deixa Uma Casa (2003), e anunciando o lançamento do seu último título, Chave de Ignição (Labirinto, 2009). Foi este livro de matéria e sublimação que andei a ler, a espaços desiguais, nos últimos tempos. Incursões íntimas pelo comportamento físico do mundo próximo (paisagem, habitação), invariavelmente processadas no plano emocional e espiritual de um sujeito que caminha sempre muito para além dos limites do estrito, ainda que belíssimo, mapa sensorial. Um livro denso, de cuja pluralidade de sentidos e de virtudes formais não me cabe dar conta nestas breves palavras. Elas servem sobretudo para introduzir o poema que retirei do livro e que aqui se dá a conhecer.

[...]

Texto de João Miguel Henriques, publicado em 09/10/2009 no blogue Quartos Escuros:
http://quartosescuros.blogspot.com/2009/10/chave-de-ignicao.html
GONÇALO M. TAVARES

[prefácio de Chave de ignição, Labirinto, 2009]


“prefiro (…) a ligação do aço ao combustível”


Palavras que apontam para matérias e objectos – combustível, aço, dicionário, motor, chave – são de entre todas as que mais lembram essa energia que o choque físico entre o corpo e as coisas deixa sair. Porque entre o percurso de um ser vivo, o seu itinerário concreto, e os obstáculos do mundo, há, por vezes, avarias: o corpo falha e os obstáculos acertam; tropeçamos, somos derrubados. Porém, entre o choque e a queda, uma energia abandona – por convite do corpo – os objectos. E dos objectos transita para a atmosfera baixa. Daí, essa energia regressa de novo aos objectos – a sua origem – mas regressa já diferente.
O que Ruy Ventura procura é então esse encontro súbito e agressivo entre quem escreve e uma palavra; quebrar, pois, “o vidro que nos separa / do terramoto.

Maria Augusta Silva


Chave de ignição”.
Notícias Sábado, nº. 195 (revista do jornal Diário de Notícias, nº. 51315), de 3 de Outubro de 2009: 60 – 61.

Em Chave de Ignição, de Ruy Ventura, há uma viagem poética de “fogo imenso” e de frios ou do “vento e sombra de vento”, circulando “entre duas agonias” porque “(…) a chuva não afasta / a poeira dos olhos / os ramos reverdecem, mas não existe água / que possa vencer / a sonolência da tarde.” O escritor Gonçalo M. Tavares assina a breve nota de abertura, sendo a capa de Nuno de Matos Duarte.
Cada instante dos poemas revela uma invulgar imagética, questionando-nos sobre a transmutação dos elementos da vida e da própria morte. A energia do dizer poético de Ruy Ventura encontramo-la igualmente em obras anteriores, de que destacamos Arquitectura do Silêncio, distinguida com o Prémio Revelação de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores (2000), e Assim se Deixa Uma Casa (2003). O “amplo sentido inventivo” da sua escrita foi já sublinhado por ensaístas como Fernando Guimarães.
A casa, o corpo, a terra, o sangue, a água, a árvore, o tempo, a memória, o fogo e a cinza são matérias essenciais na poetização de um autor que pergunta: “Que noite vivo?” e “deixa nas árvores o último grito”. E sente a “pele queimada nas raízes”, porém confiante em que a seiva não se perderá mesmo permanecendo a dor de muitas feridas.
Ruy Ventura chama também para as páginas deste seu trabalho vultos da literatura como José Régio, C. Ronald, Maria Gabriela Llansol e Fiama. No final, visita a palavra de Jesus de Nazaré segundo S. Lucas: “Quem tem ouvidos para ouvir, oiça!” Neste “epílogo”, o poeta é imenso na elaboração da metáfora, no choque das imagens (ao mesmo tempo cruento e sublime), avançando com a grande sabedoria: “(…) nada existe. tudo coexiste (…)”.
EDMAR GUIMARÃES

Sobre Chave de ignição


"[...] Além da riqueza sutil das imagens, chamou-me a atenção a densidade dos poemas, neles não sobra espaço para expressões fáceis. Pretendo reler os seus livros anteriores, pois, ao que me parece, há uma amplitude de temas através de analogias, imagens misteriosamente recombinadas na descrição de uma viagem tensa, insólita, e ao mesmo tempo muito chão, retomadas nesta obra recente de forma admirável. O leitor experimenta as temperaturas do organismo do motor e do ser que o move, no embate com a paisagem e circunstâncias misteriosamente elaboradas. Imagens geradoras de energia, de transformação da matéria, através da queima propriamente orgânica de elementos se coadunam a sentimentos que tangem alturas existenciais. Não sei ainda o que me dói nessas palavras tão vivas, estou atento. Desconfio que essa chave abrirá o que procuro menos pelo contato que pela fusão de elementos. [...]"

(De um email enviado ao autor, a 23 de Setembro de 2009.)
NO ARQUIVO DE SUTTANA

O texto lido por João Candeias no lançamento do meu novo livro, Chave de ignição, passou a estar disponível no Arquivo de Renato Suttana. Agradeço mais uma vez a sua leitura e divulgação.






Esta é, em português, a primeira edição de um livro do escritor espanhol José María Cumbreño. A antologia poética intitula-se Teorias da Ordem e é traduzida do castelhano por Ruy Ventura. A obra é publicada pelas Edições Sempre-em-Pé, na sua colecção UniVersos.
(Quem carregar na imagem da contracapa poderá ler um dos poemas do livro; brevemente serão divulgados outros no blogue http://www.alicerces1.blogspot.com/).

IGREJA NOVA DE NOSSA SENHORA D’ ALVA, TEMPLO DA MEMÓRIA


Quando – no dia 10 de Setembro de 1809 – D. Francisco Gomes do Avelar entrou na nova igreja de Nossa Senhora d’ Alva em Aljezur não penetrou num templo sem história. Embora se tratasse, de facto, de uma construção elevada de raiz, esse edifício contava com pelo menos 14 anos de memória. Tal como um ser humano – que não começa a existir apenas na hora do seu nascimento – também uma casa (seja de Deus e/o
u dos Homens) tem sempre um passado, por mais recente que seja. Herdeira directa da velha matriz de Santa Maria d’ Alva, definitivamente arruinada no dia 1 de Novembro de 1755, depois de um violento terramoto que destruiu Lisboa e muitas povoações e edifícios do nosso país, a igreja que por estes dias faz 200 anos de sagração nasceu, de facto, no momento em que as autoridades locais de Aljezur decidiram construir um novo local de culto para a sua padroeira.
Embora não conheçamos a data exacta das primeiras diligências nesse sentido, sabemos que 12 anos após o cataclismo, em 1767, Rodrigo José d’ Andrada Homem (prior de Santa Maria de Tavira e visitador da Ordem de Sant’ Iago) se deslocou à vila em visitação e que, entre as normais incumbências que lhe cabiam, trazia a de escolher o melhor sítio para edificar uma nova igreja matriz, por ordem do rei D. José I. Logo nessa data, considerou incapaz de reconstrução o velho templo – pela sua localização e pelo seu isolamento –, tendo decidido que o local mais adequado seria o das casas arruinadas de D. Bruno de Sousa (um fidalgo espanhol radicado nesta localidade do Barlavento Algarvio), situadas no início da rua do Gabão, não muito longe da igreja da Misericórdia. Não foi essa, contudo, a vontade dos homens – por motivos que desconhecemos. E, apesar de precariamente instalada em pequenas ermidas (primeiro na de Santo António, depois na do Espírito Santo e, por fim, na Misericórdia), com graves incómodos para as celebrações religiosas – relatados em vários documentos –, seria preciso esperar pelo início da década de 90 do século XVIII para registarmos movimentos efectivos no sentido da construção de uma casa digna de Santa Maria d’ Alva e capaz de acolher os cristãos da maior parte do concelho de Aljezur (que, então, contava apenas com mais uma paróquia, a de Odesseixe, uma vez que nem a Bordeira nem a Carrapateira lhe estavam adstritas). É nesse momento também que surge a alavanca, o motor e o eixo da iniciativa, aquela figura que soube congregar vontades e alertar consciências: o bispo do Algarve, D. Francisco Gomes do Avelar.
Começando por verificar a precariedade do culto na sua primeira visitação, em 1790 ou 91, logo numa segunda deslocação a Aljezur toma posição inequívoca, ao afirmar que mais vale investir na construção de uma igreja matriz nova do que gastar fundos na reparação das várias ermidas afectadas pelo terramoto. (Pouco tempo antes – segundo afirma Francisco Xavier Ataíde de Oliveira – havia decidido reconstruir a igreja de Santa Maria da Graça, em Lagos. Não tendo recebido, contudo, o apoio da população e dos responsáveis locais para essa obra, apesar de prometido, “enojado de tanta avareza, largou os trabalhos do templo e partiu para Aljezur em auxilio dos proprietarios desta vila”). De acordo com um documento assinado pelo prior Bernardo Joaquim de Faria, é ele quem convence os aljezurenses e seus responsáveis a construírem a igreja no sítio da Barrada ou noutro com igual comodidade, nomeadamente aqueles que – como afirma o “Auto de sagração” – tinham “natural amor ao Lugar do seu nascimento” e antes o “querião ver augmentado; do que dezerto”. A discussão deve ter sido acesa, mas finalmente consideraram “a cituação da Villa […] como […] doentia, e sem capacidade para nella se edificar a nova Igreja, por ser escabroza sem terreno plano”. Por detrás dessa escolha, estruturada pelo bispo, estava no entanto um projecto mais vasto de carácter urbanístico (só concretizado a partir do último quartel do século XIX), plenamente integrado no Iluminismo racionalista que levou à construção da Baixa Pombalina lisboeta, de Vila Real de Santo António ou do núcleo central de Porto Covo: “a maior parte das Cazas ainda ezistentes [na vila velha], encravadas nos Cerros, se deveria[m] com efeito mudar para onde houvesse melhores comodidades publicas, e particulares a beneficio publico, e interesse dos moradores da Villa, e mais freguezia”. Foi então escolhida a Barrada (também chamada “Sílio”, como refere um documento de 1794), defronte das ruínas do castelo, onde existia um moinho desactivado e, soube-se mais tarde, um conjunto importante de vestígios arqueológicos, nomeadamente um complexo tumular com cerca de 5000 anos cuja importância maior foi registada por Estácio da Veiga. Terá D. Francisco Gomes querido cristianizar esse monumento, tendo tido conhecimento da sua existência? Terão os aljezurenses desejado consagrar o local de enterramento dos seus antepassados remotos? Infelizmente não sabemos.




Obtida a necessária licença da parte da rainha D. Maria I, em 20 de Maio de 1794 o bispo é nomeado inspector da obra, cabendo a construção da capela-mor, da sacristia e da torre ao comendador da Ordem de Sant’ Iago, o Marquês de Angeja, e o restante edifício aos paroquianos. Com autorização da monarca, as sobras do rendimento das confrarias e da fábrica contribuiriam para a despesa. Em Setembro desse ano, D. Francisco – “com a Camera, Nobreza, e Povo de Aljezur”, e também com o prior Bernardo Pereira e o anterior pároco Manuel Guerreiro Aires – pôde então subir ao lugar da futura igreja e aí aprovou a localização, traçando com as mãos na enxada “o alinhamento do novo Edificio que esperava ver concluido em sua vida como fruto das suas fadigas Apostolicas”. A 19 de Setembro de 1795 foi colocada a cruz no lugar do futuro altar-mor, assentando-se a primeira pedra no dia seguinte, em cerimónia muito concorrida. A construção iniciara-se no entanto meses antes, a 13 de Abril, com a cozedura da cal e, decerto, com a preparação do terreno. Em Outubro/Novembro desmontou-se o arco da capela-mor da igreja velha para se aproveitarem algumas pedras no templo novo, cumprindo a ordem de total demolição expedida pelo bispo. (A medieval Santa Maria d’ Alva servia já nessa altura como cemitério, “com pouco resguardo e decencia”). A construção da ousia da nova igreja iniciou-se entre 7 e 24 de Dezembro. Ao longo dos 14 anos que duraria a obra, continuaram abertas ao culto as igrejas de Santo António e do Espírito Santo – embora muito danificadas –, estando a matriz sediada na igreja da Misericórdia. As duas primeiras seriam profanadas por D. Francisco Gomes no dia 7 de Setembro de 1809, poucos dias antes da sagração da nova matriz, continuando a última em funções até aos nossos dias.
Ao longo de quase década e meia, foram vários os avanços e paragens sofridos pela obra de um edifício que ainda hoje se destaca na paisagem pela sua volumetria e pela sua situação no terreno. E se hoje é difícil avaliar com pormenor como se processou a elevação do corpo da igreja – devido ao desaparecimento de alguma documentação importantíssima existente até há poucas décadas no Arquivo da Diocese do Algarve, nomeadamente um livro de contas que ainda recebeu comentário (muito insuficiente e precário, diga-se) de Pinheiro e Rosa em 1993 –, temos a possibilidade de conhecer com algum detalhe como ocorreu a edificação da capela-mor e da sacristia, através de um livro também de contas localizado há poucos meses em Faro no referido Arquivo. Se não é este o lugar apropriado para delongas, convém registar que os 14 anos de demora se deveram em parte a suspensões frequentes que não vale a pena enumerar aqui, as quais chegavam a demorar vários meses. Mas, se a obra da capela-mor e da sacristia (cuja despesa chegou a 1.642.150 réis, paga quase totalmente pelo Marquês de Angeja) viu a sua construção terminada em finais de 1803, só seis anos mais tarde o corpo e a torre teriam a mesma sorte. E nessa parte, foi decisiva a acção de D. Francisco Gomes do Avelar que, de facto – para utilizar a expressão do seu biógrafo, Ataíde de Oliveira – “punha as toalhas”, isto é, contribuía com avultados montantes para a edificação de um templo de que a sua honrosa memória não pode separar-se. Basta referirmos que, dos 5.359.715 réis em que se importou a construção do corpo da igreja, mais de um quinto foi coberto pelo dinheiro entregue pelo prelado – não contando com o que terá gasto no pagamento do projecto, do retábulo principal e da escultura de Nossa Senhora d’ Alva, que se deveram certamente à sua iniciativa directa. A igreja nova não se teria concluído porém sem a contribuição de muitas outras pessoas de Aljezur: as que faziam parte das confrarias e da fábrica (cujos rendimentos iam para a obra), as que davam a sua contribuição monetária ou em géneros (como o antigo pároco da vila, Manuel Guerreiro Aires, que ofereceu 35.000 réis em trigo), as que deixavam a sua esmola numa caixa destinada às obras, etc..






Ao entrar na nova igreja de Nossa Senhora d’ Alva no dia 10 de Setembro de 1809, D. Francisco Gomes do Avelar sagrava um templo que era bem o reflexo do seu tempo e das suas ideias, interpretadas talvez por Francisco Xavier Fabri, a quem se costuma atribuir – com fundamentos sólidos – o risco do projecto. Se todo o edifício manifesta no interior e no exterior a aversão do arquitecto italiano a “huma Arquitectura intrincada”, com excesso decorativo, e o seu apreço pelo rigor e pela contenção, mais adequados ao carácter sério dos edifícios – não deixa de espelhar também o iluminismo católico do prelado algarvio, que não dispensava o respeito pela história das edificações e pela integridade de cada estilo, “imbuído” – no dizer de Carla Varela Fernandes – “já de um espírito pré-romântico, que olha para o passado longínquo com entusiasmo e admiração”.
A sua sensação não terá sido diferente da que ainda hoje sentimos quando visitamos o templo, agora duplamente centenário. Estamos perante um edifício neoclássico, cuja fachada – apesar da ausência de uma das torres sineiras, que não deveria faltar no projecto inicial – relembra a de alguns santuários de altitude, sobretudo a do Bom Jesus do Monte (em Braga), seu contemporâneo, erigido entre 1785 e 1811 a partir de um projecto de Carlos Amarante. O embrião de escadório que precede o adro parece apontar precisamente para essa ligação. O interior – com três naves, transepto, capela-mor profunda ladeada por duas capelas colaterais e capelas laterais com planta absidal – é no entanto um discreto arquivo de citações arquitectónicas, fazendo lembrar uma catedral em miniatura, a que não faltava – como ainda documentam algumas fotografias dos anos 60 do século XX – um cadeiral, hoje desaparecido. A nave central, mais elevada e mais larga do que as laterais, faz lembrar a estrutura das igrejas góticas mendicantes. A secção semicircular do fundo da capela-mor e das capelas laterais recorda a arquitectura renascentista, recuperando os modelos da antiguidade. A planta do retábulo-mor (atribuído com fundamento ao farense José da Costa, a partir de um risco de Fabri) – apresentando a racionalidade das altas colunas e do frontão triangular (repetido na frontaria e no coroamento do pano murário das traseiras da ousia), plenos de novo classicismo – não dispensa a lembrança dos tronos barrocos.




O carácter eclético do templo, propositadamente eclético, é reforçado pela disseminação na igreja de peças mais antigas, vindas de outros locais, aí colocadas mais tarde por necessidade ou desejo expresso: o retábulo do Santíssimo, onde se encaixou um sacrário barroco vindo da igreja de Santa Maria d’ Alva; o retábulo do Senhor dos Passos, rococó, vindo do convento do Desterro, em Monchique; as colunas maneiristas vindas do mesmo cenóbio, existentes nas capelas das Almas e de São Sebastião; a imaginária quinhentista, seiscentista e setecentista; a pia baptismal manuelina, proveniente da antiga matriz e aí colocada em 1813; o conjunto de pinturas maneiristas e barrocas, de proveniência desconhecida, oferecidas à igreja na década de 1920.
Seduz-nos este templo – tal como terá seduzido D. Francisco Gomes do Avelar. As alterações sofridas nestes 200 anos foram reduzidas e não modificaram a percepção geral da identidade do edifício – embora algumas intervenções de actualização e restauro não tenham sido felizes, como não foram felizes aqueles que suprimiram algumas peças que hoje muito enriqueceriam a igreja nova da Senhora d’ Alva (penso no púlpito e no cadeiral, mas também nas grades que resguardavam a capela-mor, a capela do Santíssimo e o baptistério).
Templo da memória, exige de todos os aljezurenses (depositários do seu património) uma atenção dedicada e zeladora que o conserve sem o alterar e, sobretudo, sem deturpar a simplicidade que presidiu ao espírito do seu fundador e do seu arquitecto. O trabalho será permanente, mas compensador. Porque nenhum ser humano passa da Existência à Vida sem entender e integrar todos os momentos que o antecederam.

Lido em Aljezur, a 13 de Setembro de 2009, na sessão comemorativa
do Bicentenário da sagração da Igreja Nova de Nossa Senhora d’ Alva
PARABÉNS, SARRABAL! (RUY VENTURA)

Ao abrir este presente, esta caixinha com laçarote de cetim, dei com o poema que publico abaixo. O seu autor é Ruy Ventura, outro dos meus «convidados» para o aniversário do Sarrabal.

O poema consta do último livro do Ruy, intitulado, sugestivamente, «Chave de Ignição». O lançamento da obra, com a chancela da Editorial Labirinto, efectuou-se no dia 16 do passado mês de Julho, na Sala Polivalente da Biblioteca Municipal de Sesimbra.

Tive conhecimento, por quem lá esteve (o Ruy sabe a razão da minha não comparência), que o lançamento foi um êxito: sala cheia, bom convívio, boa participação do poeta João Candeias (que não vejo há imenso tempo), a quem coube a apresentação da obra.

Conheci Ruy Ventura no lançamento de um livro de Rita Ferro. Poucos anos antes havia ganho o Prémio Revelação de Poesia/2000, atribuido pela Associação Portuguesa de Escritores (contava, apenas, 27 anos de idade).

Muitos são já os livros que publicou, dividindo-se o seu trabalho pela poesia, ensaio, crónica e tradução.

Mas o Ruy é também um bloguista. São dele os blogs Estrada do Alicerce (um pouco abandonado) e Arquivo do Norte Alentejano. Aqui, com o blog actualizado, podemos admirar, principalmente, boas fotografias do nosso património arqueológico. Ruy Ventura dá-nos a conhecer monumentos e belíssimas fachadas e riquíssimos interiores de muitas das capelas e igrejas espalhadas (pois, com certeza!) por várias localidades alentejanas: Portalegre (terra natal do Ruy), Castelo de Vide, Marvão, Alpalhão, Nisa e outras. Sem dúvida, um blog a visitar.

Muito mais havia a dizer, mas é tempo de voltar a pegar na passadeira vermelha e a estendê-la, aqui, no Sarrabal. Ruy Ventura, hoje é a sua vez. Faça o obséquio de passar!

Soledade Martinho Costa in http://sarrabal.blogs.sapo.pt/85934.html a 13/8/2009



A ÁGUA SOBREVIVE


a água sobrevive
ao esplendor do mundo.
o assento
desmonta a paisagem.
a primeira dor aproxima-nos,
alimenta a força da corrente
- raiz e crescimento.

os arcos abateram.
a biografia reserva-nos
um pouco de sangue
na confluência
do medo
com a memória.

recorda-nos que o rio
escreveu
a morte e a viagem.

desvia-nos do silêncio.
acompanha o sono
até à nascente.

esta manhã não termina.
o assento faz-se. sem pausas.

teu nome, junto à foz,
resguarda-me

da morte.

Ruy Ventura
Chave de ignição, de Ruy Ventura

Chave de ignição (Editora Labirinto) é o mais recente livro de Ruy Ventura (n. 1973) e organiza-se entre dois pólos – Natureza e Cultura.
O ponto de partida é a Natureza: «O cabelo recolhe a temperatura / da terra. Dissolve tudo / neste caminho virado a poente. / a mão segura as asas. / tenta encontrar o sono, a respiração – da montanha – e uma gota de água. / em silêncio, tenta encontrar uma gota de água / para dissolver este sal / que vai queimando a carne – e essa memória.»
A viagem faz-se num mapa de citações literárias: José Régio, C. Ronald, Maria Gabriela Llansol, Fiama Hasse Pais Brandão e um texto do evangelho de São Lucas. Se juntarmos as palavras de Fernando Guimarães e Pedro Sena-Lino na contracapa, o prólogo de Gonçalo M. Tavares e o óleo da capa de Nuno de Matos Duarte, temos a provável chave de ignição para viajar neste livro.
Trata-se de uma viagem entre a Morte («sem voz, sem terra, sem sombra – estes ossos e / estes músculos limitam-se a fotografar / um tráfego de sombras e revelá-lo entre os poros / enegrecendo a pele, tornando roxas as unhas, encanecendo o cabelo, / eliminando-se assim as poucas palavras / que permitiriam atravessar a fronteira») e o Amor: «desenho no poema os recantos / dessa casa que habitamos / abro a porta quando menos espero / entro com a sede de quem viu nessa noite / o fogo devorando o sol e a alma / morro e ressuscito / como quem visita um santuário.»
Entre a Morte e o Amor, a viagem da Vida: «a árvore estabelece o eixo e o caminho».



(Artigo de José do Carmo Francisco publicado no blogue Aspirina B, a 25/7/2009, em http://aspirinab.com/jose-do-carmo-francisco/vinte-linhas-384/)
Seis Apontamentos
sobre
Chave de ignição, de Ruy Ventura

por João Candeias

Há quem diga que vivemos na sociedade da algazarra. Todos falam, todos querem aparecer. É verdade que numa sociedade dita democrática cada cidadão tem direito à opinião. Esta algazarra é consequência de um deserto de ideias – palavras oralizadas, mas vazias de conteúdo, são geralmente um deserto de ideias em que se vão repetindo conceitos de outros até à exaustão. Ou seja, muito barulho por nada (esta expressão não me é estranha…). Talvez nada seja um pouco exagerado. Muito barulho por quase nada. E assim, com este quase, aqui estou sorrateiramente (procurando não fazer muito ruído), com muito prazer, a apresentar um breve texto como proposta de leitura do livro Chave de ignição, de Ruy Ventura, que organizei sob a forma de “seis apontamentos”.
Antes disso, porém, gostaria de recordar que o autor destes poemas tem publicados vários títulos, dos quais destaco os seguintes: Arquitectura do silêncio (2000), Sete capítulos do mundo (2003), Assim se deixa uma casa (2003) e El lugar, la imagen (editado em Espanha) (2006).



1.

O livro sobre o qual nos debruçamos – Chave de ignição, de Ruy Ventura – é denso, de uma energia primordial e de instintual vitalidade.
Várias abordagens seriam possíveis e esquematizáveis: abordagem ao conteúdo e suas diversidades semânticas (e, aqui, com a complexidade do sujeito enunciador), estrutural e polissémico, com os materiais linguísticos em presença, de análise particular que cada poema propõe; ou, uma aproximação mais geral, mais global de toda a obra.
Decidimos optar por esta última hipótese. Tocar em vários aspectos que o texto apresenta, com o cuidado de que esta apresentação se não prolongue para além do que é tolerável para quem aqui está presente. “Esto brevis et placebis” – Sê breve e agradarás.


2.

Chave de ignição está dividido em cinco núcleos: um prólogo, três partes e um epílogo, ou um prólogo, um epílogo e três jornadas, um pouco à maneira wagneriana. A saber: “[prólogo]”, “contramina”, “viagem”, “ignição” e “[epílogo].
No conspecto da obra em apreço, um ponto deve ser especialmente considerado (ainda que inconscientemente) – a análise comparativa – uma vez que nunca nos alheámos nem nos furtámos ao que para trás ficou das leituras que, ao longo de décadas, mais nos marcaram.
Esta leitura não foi excepção: uma girândola de livros e autores surgiram na busca axial destes versos. E assim, toda uma arqueologia substantiva e arquitectural da construção do poema emerge desta incursão pelo “corpus” da obra. Destacar desta incursão o que nos pareceu mais saliente não foi tarefa hermenêutica despicienda.
Ruy Ventura em cada poema fragmenta a lógica do discurso para assim o tornar mais acutilante e impressivo. Contudo, a lógica interna de cada uma das cinco partes em que se divide o livro une-se num todo perfeitamente coeso e centrípeto. Devemos considerar também o sentir que move o autor em sentido, por vezes ambíguo, mas evidente – o desejo.
Como diz Silvina Rodrigues Lopes no seu livro Anomalia Poética, “[…] há um móbil muito poderoso que leva à poesia, o desejo”. E nós acrescentaríamos – a necessidade da escrita.
A conclusão é a de que estamos perante uma obra rara neste tempo de secura, de culturas poéticas extensivas e sonolentas.


3.

A poesia é, de certo modo, o eu perscrutando o insondável, como sentido antecipador do devir.
A eclosão do poema é a consequência do pulsar de uma tensão interior das palavras forçando a sua periferia de silêncio. Partindo desta ideia, encontramos nestes versos uma contraposição dialógica entre tempo e memória, morte e salvação. Temos, portanto, o tempo ausente em “acontecimentos” memorados e o tempo presente em “acontecimentos” quotidianos.
Cito Paul Veyne, inserto por Gilles Deleuze no livro O Mistério de Ariana: “aquilo que se opõe ao tempo, tal como se opõe à eternidade, é a nossa actualidade”.
A noção de tempo atravessa estas páginas em que as palavras cimentam como elementos de composição a nossa actualidade, numa síntese visceral entre o objecto inanimado e a vida. A sombra do tempo acolhe o mistério. A violência da vida pode ou não conter a redenção? Demos a palavra ao poeta: “[…] a serenidade acolhe-nos – / como uma tempestade.” (p. 33)
Qualquer coisa de escatológico se esconde nos meandros da obscuridade, como veremos ao longo da leitura da obra. A vida só é vida com os seus fantasmas. É aí, no fluir – e da tempestade – que se apresentam, sob a forma de corpo que arde, se mortifica, se transforma em cinza e que, quando parece que se salva, ressurge em dúvida. E o poeta pergunta: “que dança divide o coração?” (p. 32). O medo instala-se intenso no corpo efémero. A dor é a palavra, a palavra balbuciada com o medo – a presença da morte.
A vida terá que ter sentido, e Ruy Ventura monda o eu, onde o ser parece perplexo com o que o circunda, como se se esperasse uma existência diáfana e definitiva. “A primeira forma de esperança é o medo, o primeiro rosto do desconhecido, o susto”, como refere Heiner Müller. George Steiner reforça: “O medo tem em si um grão de esperança, o pressentimento de poder ser superado. É o estatuto da esperança que é hoje problemático.” Para todo o efeito, resta-nos a esperança, quem sabe, a esperança num deus escondido que permita – sem livre arbítrio, como lhe compete – a salvação da vida, num planeta em fogo e chamas.


4.

Mas é, efectivamente, a memória que pauta e conduz o discurso, que agita o verbo e leva ao encontro de uma profusão lexical definidora dos propósitos do seu autor e da sua contribuição para a consistência da obra: medo, corpo, lume, fogo, cinza, sangue, dor, tempo, memória, etc., resultam na densidade dos poemas, envoltos em cepticismo invulgar na obra de Ruy Ventura. Apetece dizer como Strindberg na sua peça O Sonho: “A humanidade mete dó”.
Convoquemos de novo o autor: “[…] a carne / apodrece no lugar onde procuravam o curso / dos planetas […]” (p. 44). Assim regressa a voz ao fatalismo de uma existência da qual – quem sabe? – só a memória, a memória da História, nos salvará.
Por vezes, a memória dissolve-se em cinza – com o corpo – e são necessárias imagens fixas ou dinâmicas como suporte material: a gravura, a fotografia, o retrato, o filme. Damos exemplos com os seguintes versos: “não existe paisagem / para além do quadro. / monótona, a tinta dissolve / a alma e o pintor. / descreve esse segredo / como telha enegrecida – / lançando água para a terra, / guardando (sem saber) / fragmentos de tempo / que ninguém quis conservar.” (pp. 23-24)
A erosão impondo a sua acção sobre as coisas que a memória tenta reter.
O poeta quer agarrar a imagem, a vida fixada, como se esta fosse a última forma de reter a realidade. Consideremos os seguintes fragmentos: “a fotografia permanece em segredo” (p. 21), “o retrato transcende a caligrafia” (p. 22), “projectamos este filme na memória” (p. 35), “arde sobre o ventre a mais antiga gravura” (p. 44)… são exemplos que se apresentam ao longo destas páginas.


5.

E regressamos, como se percorrêssemos um círculo perfeito, ao primeiro texto deste livro: “a inteligência dos motores / dispensa a entrada da chave. / a ignição precisa apenas de sinapses / cujo código permita a deslocação / do objecto sobre o espaço.” (p. 13) ou “uma chave é somente uma chave. / alavanca que o metal permite, utensílio / apenas utensílio – de movimento, de entrada, de saída. / a combustão não vale como símbolo. / reduz a cinza, a fumo – e tudo o mais / é efeito da luz, da temperatura.” (p. 13). Sendo, na nossa opinião, estes versos fundamentais para uma leitura destes poemas, é nos versos que se seguem, também do “[prólogo]”, que encontro o centro desta obra: “mas guardo nas mãos o objecto – / metal e plástico, sem filosofia.” (p. 14).
É conclusivo, sem filosofia! Temos talvez num outro tentame sem filosofia, a autobiografia das sensações, das “pequenas percepções” – como dizia José Gil –, também elas em conflito com o que Ruy Ventura pretenderia, um apaziguamento do real, uma luz nas trevas, que de tanto persistir tem a certeza de encontrar.


6.

Fizemos uma viagem tortuosa, enfrentámos muitos dos pesadelos que a vida nos traz, mas não queremos terminar sem revelar o que um dos últimos poemas do livro nos propõe, embora sem excessos de optimismo. É, de resto, um dos muito bons poemas deste livro.
A luz volta a brilhar e a difícil esperança aparece como uma alvorada. Estamos no berço do futuro. E dizem os versos: “um corpo nasce. um corpo nasce // para que eu possa morrer.” (p. 47).
A vida vence a morte. A semente lançada à terra dará os seus frutos e, perspectiva-se então, a continuidade de um planeta onde todos poderemos habitar, mesmo com as atrocidades conhecidas. O risco é imenso, mas o sonho é a possibilidade do impossível.
O passado está completo. O futuro falará por si.

Lido por João Candeias a 16 de Julho de 2009
na apresentação de
Chave de ignição em Sesimbra.

Disponível também aqui.



Seis anos depois, volto a publicar em Portugal um livro de poesia. Chave de ignição, cuja capa (construída a partir de um óleo sobre tela do pintor Nuno de Matos Duarte) se apresenta, é publicado pela Editora Labirinto, contando com um prefácio do escritor Gonçalo M. Tavares. Será lançado no próximo dia 16 de Julho, 5ª. feira, pelas 21 horas, na sala polivalente da Biblioteca Municipal de Sesimbra, sendo apresentado pelo poeta João Candeias. Honrar-me-á muito a sua presença.


Considero este quadro de Nuno de Matos Duarte uma das melhores interpretações da poesia que tenho escrito. Será, dentro de três ou quatro semanas, o centro da capa do meu próximo livro de poemas, intitulado Chave de Ignição.
JULIÁN RODRÍGUEZ
(http://www.editoraregextremadura.com/main.htm)



El lugar, la imagen
de Ruy Ventura


El libro de poemas de Ruy Ventura El lugar, la imagen, pertenece a la serie “Letras portuguesas”, en la que la Editora Regional de Extremadura irá presentando algunas de las voces fundamentales de la última literatura del país vecino: poesía, narrativa, ensayo...

Esta edición, bilingüe, cuenta con una traducción al castellano de Antonio Sáez Delgado (Cáceres, 1970), poeta, ensayista y prestigioso traductor y profesor de la Universidad de Évora.
Una cita de Bernardo Soares, heterónimo de Pessoa y “autor” del Libro del desasosiego, abre este libro: “Lo que vemos no es lo que vemos, sino lo que somos”. Y en torno a estas palabras se articula el poemario de Ruy Ventura, uno de los nombres más interesantes de la nueva poesía portuguesa: la imagen, parece decirnos, también puede ser “interior”, es decir, no construida con la mirada sino con las vivencias, con los lugares visitados, vividos, siempre con una carga de pasado, de atemporalidad, y, casi, de sacralidad: un fuerte (el de Portinho da Arrábida, el de Aveyron...), una iglesia (la de Portalegre), un castillo (el de Sesimbra, el de Carreiras, el de Valencia de Alcántara...), una torre (la de las Jerónimas, en Trujillo)... Y no sólo lugares: también objetos, objetos “contemplados” (una escultura antigua, una talla de madera...)
Los paisajes -los lugares- son proyectados en la escritura con un distanciamiento y una dicción (siempre esa combinación: las formas populares y la vanguardia, digamos, tradicional) que los hace más verdaderos y duraderos: la emoción siempre contenida, y las palabras siempre en voz baja. La huella que deja esta poesía tiene que ver tanto con lo dicho como con lo no dicho. Sirvan como ejemplo unos versos del poema “regreso”, que nacieron, como señala Ventura en una nota al pie, al contemplar una escultura del legendario rey portugués Don Sebastián, un verdadero mito, más sentimental que heroico, en su país: “dejaste en la piedra / tu mirada sin sombra / para soportar mejor / el peso de los hombros, / recuperando la ceniza / que quedó sobre el océano”. Y una estela funeraria romana hallada en Mérida provoca estos otros, del poema “memoria”: “oigo mal el sonido del laúd en tu casa. / no puedo ver la paloma / que vuela sobre la ceniza, / en el sepulcro de la ruina y de este alma. / he exhumado con los ojos / el mosaico que rodeaba, quizá, a ese corazón / –sumergido en el agua y la melodía. // siglos después, encuentro ese rostro / tan pronto escondido. / dibujado en el mármol. / como en una fotografía. / esa sonrisa excavando la penumbra de la nave // la iluminación de las lágrimas / en el interior del cristal”.




*



O livro de poemas de Ruy Ventura, O lugar, a imagem, pertence à colecção “Letras Portuguesas”, na qual a Editora Regional da Extremadura irá apresentando algumas das vozes fundamentais da mais recente literatura portuguesa: poesia, narrativa, ensaio... Esta edição, bilingue, conta com uma tradução para o castelhano de Antonio Sáez Delgado (Cáceres, 1970), poeta, ensaísta e prestigiado tradutor e professor da Universidade de Évora.Uma citação de Bernardo Soares, heterónimo de Pessoa e “autor” do Livro do Desassossego, abre este livro: “O que vemos, não é o que vemos, senão o que somos”. Em volta destas palavras se articula o poemário de Ruy Ventura, um dos nomes mais interessantes da nova poesia portuguesa. A imagem, parece dizer-nos, também pode ser “interior”, isto é, não construída com o olhar mas com as vivências, com os lugares visitados, vividos, sempre com uma carga de passado, de atemporalidade e, quase, de sacralidade. Uma fortaleza (a do Portinho da Arrábida, ou a de Aveyron), uma igreja (a de Portalegre), um castelo (o de Sesimbra, o das Carreiras, o de Valencia de Alcántara...), uma torre (a das Jerónimas, em Trujillo)... E não apenas lugares: também objectos, objectos “contemplados” (uma escultura antiga, uma talha de madeira...).
As paisagens – os lugares – são projectados na escrita com um distanciamento e uma dicção (sempre essa combinação: as formas populares e a vanguarda, digamos, tradicional) que as faz mais verdadeiras e duradouras: a emoção sempre contida e as palavras sempre ditas em voz baixa. A marca que deixa esta poesia tem que ver tanto com o dito como com o não dito. Sirvam como exemplo alguns versos do poema “regresso”, que nasceram, como assinala Ventura numa nota de rodapé, ao contemplar uma escultura do lendário rei português Dom Sebastião, um verdadeiro mito, mais sentimental do que heróico, no seu país:
depositaste na pedra / o teu olhar sem sombra / para melhor suportares / o peso desses ombros, / recuperando a cinza / que ficou sobre o oceano.” (p. 30)
E uma estela funerária romana encontrada em Mérida provoca estes outros, saídos do poema “memória”:
“mal oiço o som do alaúde em tua casa. / não consigo ver a pomba / voando sobre a cinza, / no sepulcro da ruína e desta alma. / exumei com os olhos / o mosaico que rodeava, talvez, esse coração – / mergulhado na água e na melodia. / séculos depois, encontro esse rosto / tão cedo escondido. / desenhado no mármore. / como numa fotografia. / esse sorriso escavando a penumbra da nave – / a iluminação das lágrimas / no interior do vidro.” (p. 28)

Tradução de Duarte Correia, a partir da página da Editora Regional da Extremadura. Julián Rodríguez, escritor espanhol (Ceclavín, 1968), é o autor do design gráfico e da capa deste livro de RV.
José María Cumbreño

Ruy Ventura acaba de publicar en Estados Unidos (con el título How to leave a house) su poemario Assim se deixa uma casa. De la traducción se ha encargado Briang Strang.
Me alegro sinceramente de que la obra de Ruy comience a divulgarse como se merece. Él es un poeta de una sensibilidad y un talento fuera de lo común. Nosotros, dentro de unos meses (por desgracia, más de los que me gustaría), tendremos la fortuna de publicar la versión española del poemario que en Portugal le sacará la prestigiosa editorial Cosmorama.
La relación de Ruy con Extremadura viene de hace tiempo. De hecho, los lectores que quieran acercarse a su obra en español deberán hacerlo a través de editoriales extremeñas: la Editora Regional de Extremadura (El lugar, la imagen), los Cuadernos Porticus (Un poco más sobre la ciudad) y, en un futuro, Littera Libros (Chave de igniçao).Ojalá Cáceres y Badajoz terminasen siendo dos provincias del Alentejo.

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