RUY VENTURA, A RECRIAÇÃO
DE UM MUNDO PECULIAR

José Vieira

(Fanal, suplemento cultural de O Distrito de Portalegre, nº 11, 23 de Março de 2001: 3.)


A poética de Ruy Ventura é uma poética de errâncias ou de desdobramentos contínuos, embora uma ideia de “casa”, “porta”, “interior da casa” pareça anula a outra ideia. Quer dizer, há como que uma espécie de abrangência: o querer concentrar num só lugar todos os lugares: “(…) toda a terra repetida no interior da sombra / (…) / toda a terra concentrada na mão (…)”.
A porta é, por outro lado, uma espécie de limite de sombra, um “limite diáfano”, parafraseando Sebastião Alba, que interroga e inquieta. Além de errância concentrada, a poética de Ruy Ventura parece-me também uma poética que deseja os limites, o para lá dos limites. Oxalá seja uma poética ida às últimas consequências: vida e obra. A coerência e o sentido ressoam aí. Valerá a pena? Um preço demasiado alto.
O primeiro poema propõe a “porta” e apresenta-se como a matéria disseminada por todas as linhas do mapa. Móvel, aliás. Porta que adivinha outras portas, outras dobras, outros desenvolvimentos, outras significações, outros lugares. É assim uma ideia que podia servir de epígrafe, lembrando-nos do verso de William Blake: “entre o conhecido e o desconhecido, estão as portas”. Essa matéria que compõe a porta é a substância da terra: a árvore – “entre a porta e a mão (…) / vai a distância (…) / esse pedaço de árvore (…)”. A porta: “árvore disseminada”, como diz Carlos de Oliveira num verso.
A origem do mundo, nesta poética, é ditada pela matéria: a árvore – “até os ramos das árvores baterão as palmas” (Livro de Isaías) –, a porta. É essa matéria, esse pretexto que unifica toda esta poética, penso.
A “porta” está referida em vários momentos: pp. 17, 39, 52, 87. A porta abre o interior da casa. A casa é o organismo.
A granada sobrecarregada de significados, onde tudo principia, acontece.
É o lugar das dobras, dos desenvolvimentos. E a “árvore”. A árvore é o exterior. Mas dizer a “porta” é dizer o exterior, é dizer a árvore. É propor talvez uma unificação.
A “porta”, a “casa”, a “árvore”. A “árvore” aparece desde “alicerces” móveis nas pp. 17, 40, 42, 49, 51, 59. Percorre todo o livro.
A floresta disseminada: quantas portas?, quantas casas?, quantos horizontes vistos?, quantas moradas?
Há muitas espécies arbóreas. Isso importa: o nome, os nomes – laranjeira, carvalhos, cerejeira, mimosa, pinheiros, macieira.
É importante encostar nome à coisa, e dar o nome à “casa”, ao som forte e sóbrio das pancadas no soalho limpo, na porta. Esse timbre depende também do nome, do grão das matérias. O sedimento que dá carácter à presença no “meio da casa”. Presença móvel ou volante, aliás.
O processo desta poética propõe outras figurações (“estátuas da noite”?), outros mundos. Afinal de contas o desconhecido ou o invisível sempre tão presente, mas tão inapreensível.
De muitos pontos de vista nos poderíamos aproximar desta poesia. Expus o que mais me chamou a atenção, o que considerei como que um punctum saliens, ou o determinante ou pormenor, por assim dizer, decisivo. O meu ponto de vista, afinal de contas.
Mas o livro de Ruy Ventura [Arquitectura do Silêncio] propõe muitos ângulos (“os ângulos das portas estão sobrecarregados de perigosas significações”, poeta irlandês). Eu vi por um deles e fiz a minha aproximação, o que vi ou percebi: a poética das coisas, a estrutura delas, ou a mudez que lhes estrutura o carácter.
José do Carmo Francisco

Prefácio a Arquitectura do Silêncio, Miraflores, Difel, 2000: 9 - 14.



Uma das leituras possíveis deste título – Arquitectura do Silêncio – aponta para que estas páginas sejam também uma “construção da morte”. A morte surge aqui no sentido do desaparecimento visual (a casa, o avô, a infância) mas sempre com a porta aberta à recuperação possível através da memória.
Ruy Ventura organiza o seu livro a partir da casa:

toca a mão na madeira (direi porta?)
como se tocasse toda a substância da casa
o seu vento as suas vozes os seus cheiros
os seus objectos a totalidade do espaço
que se adivinha para além das janelas e das paredes


Não se trata de uma casa imóvel e vazia mas de uma casa em transformação:

por detrás do quotidiano
a casa transforma-se é como se reunisse
em si um corpo não somente corpo
mas espaço ocasionalmente
encoberto sob as formas e constelações da noite


O poeta viaja “da montanha até ao mar levando no bolso pedaços de palavras” porque a viagem é (entre outras coisas) uma forma de interrogar o mundo:

tudo o que temos é como o princípio de um cometa
entre as frases e o sabor das mãos
é como chuva fecundando o reflexo das nuvens
fruto que a sede alimenta
entre nossos corpos e a momentânea distância
de uma estrela à outra


O poeta viaja muitas vezes num comboio e pode, por isso, reclamar:

não nos tirem daqui esta vidraça
é comboio para um país de nevoeiros
tarde na sombra de uma vírgula
ou planeta


Noutro poema é a estrada que precipita a reflexão:

a estrada ignora a velocidade do automóvel
tal como a sombra parece ignorar a própria árvore
cada viagem por mais curta que seja
é muito mais que o simples retrato do vento


Se o silêncio é a imagem projectada da morte, a viagem é a imagem projectada da vida porque a rapidez é uma vitória sobre o tempo. Vejamos o poema a partir da música de Schubert ouvida entre Lisboa e Portalegre:

o automóvel avança
e ao volante as notas são porto de embarque para as palavras

ave gratia plena

entre os sobreiros e a erva a despontar junto das cercas
a manhã constrói o seu itinerário


A viagem pode ter outras formas além da geografia – pode ser uma viagem ao passado como quando o poeta recorda Agostinho da Silva no Jardim do Príncipe Real:

não vale a pena transformar em símbolos
tudo o que um rosto tem de veio de água
a experiência conta-nos que o fogo
está muito longe de mapas
e infinitos


Duas “terras pequenas” – Coruche e Marvão – são pontos dignos de registo da viagem do poeta, são o intervalo entre o Campo e a Cidade:

nas terras pequenas o tempo transforma-se
o tempo faz-se verso como luva de pelica
e acaricia-nos a cara com o perfume das cores que se movimentam
no reino vegetal


Tal como os primeiros poetas, que escolhiam o herói e o vinham cantar de terra em terra, Ruy Ventura escolheu os seus heróis e motivos para cantar. As casas que perdeu, o olhar do avô, os seus destroços pessoais. Daí não ser estranho o uso frequente de palavras como “navio”, “oceano” e “naufrágio”. Todos nascemos na água e morremos com dezassete dias de sede. A água do poema é a própria vida com outro nome. O poema é o salvado, aquilo que escapou do desastre, uma viagem para a qual nenhuma companhia de seguros se atreve a emitir uma apólice. O poeta canta ao que restou de um tempo, de “um caminho percorrido”, de uma memória. Mas cantar é rezar duas vezes e, neste caso de Ruy Ventura, a oração vem religar dois mundos separados pelo tempo – a infância e a idade adulta. Não há paraísos perdidos mas há memórias felizes resgatadas no poema, repetidas, recuperadas. O poema liga de novo aquilo que os dias acumulados ajudaram a separar.
O poeta, todo o poeta, quer sempre unir, juntar, ligar. A vida prática é, porém, uma constante e permanente fonte de rupturas. O poema surge, para Ruy Ventura, como uma teimosia, uma recusa da ordem, uma revolta perante o inevitável. O poeta constrói a sua escrita numa carpintaria certeira, solene, exacta. O discurso é sempre contido, o verso não se expande, a ideia não se amplia em desmesura. Tudo na escrita deste jovem poeta respira a sabedoria acumulada em muitos anos de leituras mas, ao mesmo tempo, uma voz própria, de contornos definidos e modulações felizes. Há um timbre poético que não se repete, não copia nem secunda.
Vejamos, para terminar, um excerto do poema-memória do avô:

quanto lhe custariam a idade e o próprio sorriso
(tão longínquo quanto os olhares dentro do retrato
a caixa de pedreiro distante na escuridão como uma navalha perdida dentro do bolso)?

entre a cama e a lembrança das pequenas coisas
apenas visíveis na sombra dalgum olhar molhado
quanto lhe custariam
o miar do gato a adormecer na lareira
as castanhas comidas como luzes
a bicicleta substantivo próprio à espera de um lugar
dentro da geografia?


A figura (o pretexto) do avô surge assim como tripla referência – “casa, viagem e memória” ao mesmo tempo. É uma cartografia pessoal que o poeta transforma em poema. Com a secreta intenção de que não venha o esquecimento a destruir aquilo que o laborioso esforço do poema conseguiu juntar.
O SILÊNCIO COMO MEMÓRIA E CONHECIMENTO
Manuel G. Simões(Fanal, suplemento cultural de O Distrito de Portalegre, nº 15, de 27 de Julho de 2001: 3.)


Uma leitura do livro de Ruy Ventura (Prémio Revelação de poesia APE/IPLB 1997) passa inevitavelmente pelo título (“Arquitectura do Silêncio”), primeiro signo descodificador, e pelas duas epígrafes inseridas no exórdio dos dois capítulos: “Nós não somos. A casa é que nos habita”, de Fernando Guerreiro; e “Nada é, tudo coexiste”, de Bernardo Soares. E se “arquitectura” é a arte de edificar, o sintagma global concentra-se e projecta-se no segundo elemento do título, balizado como é pela contraposição exibida nas duas epígrafes. Isto pressupõe as relações do ser com as coisas (mundo) num processo de construção epistemológico que assiste ao fazer e desfazer de uma atmosfera / paisagem, colocando em primeiro lugar a casa, às vezes representada pela árvore em que os ramos funcionam como janelas de um espaço que se transforma na “memória do lugar” e em que os alicerces se ensaiam “dentro da linguagem”. A geometria da casa surge então quer como espaço interior (de silêncio), com efémeras ligações ou prolongamento com o espaço externo, quer como representação memorial de contornos esbatidos pelo tempo, pre(s)-sentidos do exterior. Em ambas as situações é a janela / vidraça (significantes com alto índice de frequência) o elemento que permite a intercomunicação de dois mundos, fronteira que “define a imagem entre as linhas e a textura das emoções” (p. 52), susceptível por isso de fornecer uma visão opaca (“uma vidraça / corpo volátil na insondável / textura do / abismo”, p. 55) ou ofuscada pela voragem do tempo que conduz à construção do silêncio: “a janela transforma o próprio espaço / acumula dentro de sua inquietação os instrumentos que vão transformando / a luz e a paisagem” (p. 51).
Na invenção verbal, a Natura passa de ambiente a “personagem” com que se confronta o sujeito poético na tentativa de sondar o enigma da viagem ou do fluir existencial, tornado obsessivo até pela gramática da intertextualidade, com a reutilização frequentíssima de segmentos textuais, dispostos embora noutra configuração prosódica. Mas ao mesmo tempo a voz poetante evidencia a sua função obsidente em torno do conhecimento, seguindo um processo gnoseológico só relativizado pela possibilidade de “erro” dos sentidos ou dos sentimentos.
Neste processo o sujeito desencadeia um mecanismo dialógico, interpelando, por exemplo, outra memória da casa (“recordarás aqui a máquina / de escrever”, p. 29; “vê como estremecem as flores”, p. 33; “não nos tirem daqui esta vidraça”, p. 53), embora tudo pareça apontar para um artifício retórico, isto é, de âmbito monologante. E o mesmo acontece quando o discurso invoca e evoca a memória como construção do silêncio em que o sujeito dual (“calemo-nos calemo-nos os dois”, pp. 77, 78 e 79) não obstante a iteração intratextual, tende a manifestar-se no sentido da opacidade: “somos / os dois apenas neblina / ou chuva nos limites do abismo”, p. 75).
O memorialismo que, ao fim e ao cabo, assoma à superfície do texto, indica como na construção está implícita uma reconstrução, ou seja, que a invenção é um lembrar de novo, um reflectir e um reflectir-se na memória; e que sob o véu problemático da invenção subjectiva se oculta sempre uma história real e objectiva (“memória do avô”, por exemplo, pp. 89-91) em relação à qual “as perguntas subsistem”: os rastos e os restos de antigas imagens.
Catarina Nunes de Almeida

Imagens da cidade na novíssima poesia portuguesa
Jovens Ensaístas Lêem Jovens Poetas. (Coordenação de Pedro Eiras), Porto, Deriva Editores, 2008: 58 – 59.


[…]
Quando cultiva a matéria ficcional que a metrópole lhe oferece, o poeta propõe quase sempre cidades dentro da cidade. O resultado é a aparição de cenários híbridos, talhados às luz de um certo realismo mítico. Interessante será explorar o facto de que na nova poesia portuguesa, ocasionalmente, a natureza ainda invada a c idade. O tema não é frequentado de modo significativo, ao ponto de podermos considerar o típico binómio cidade/campo tantas vezes estudado – não encontraremos por certo a giga de frutos, à cabeça de uma pobre vendedeira, que cruza o bairro moderno – porém, existem outros pequenos sinais, que graciosamente anunciam o natural, e que aliam uma vez mais o campo a uma dimensão libertadora. Essa ponte é projectada, com grande tenacidade, em alguns momentos de Arquitectura do Silêncio, de Ruy Ventura:

3.
lá dentro depois do portão fechado
tudo lembra a imprevista pontuação dos astros
cada
minuto
vale apenas como instrumento
secreta passagem para outros nomes
uma maçã comida pela madrugada
o ponteiro do relógio esperando encontrar nas cores
o fumo e as formas da natureza

4.
entre os ramos apenas a paisagem se prolonga
como se ninguém visse
tudo ou quase tudo vai guardando a identidade das coisas
geometria que sob as lâmpadas e o passar dos autocarros
vai desenhando a luminosidade
dos horizontes

[…]

No pequeno quintal, depois do portão fechado, um microcosmo edénico principia. Salvo por uma paz verde, o que existia no mundo, para o sujeito, acabou ali, como se murmurasse “santuário”, e a cidade se fechasse atrás de si. […]
Eberhard Geisler

Excerto do prefácio da antologia
Die Landschaft füllt sich mit Zeichen
Bamberg, Universitäts-Verlag Bamberg, 2007: 16 – 17.



[…]
Der letzte hier vorzustellende Dichter ist Ruy Ventura. Er wird 1973 in Portalegre geboren und verbringt seine Jugend in einem Dorf der Serra de São Mamede. Er studiert zeitgenössische portugiesische Literatur in Lissabon, unterrichtet an der Escola Superior de Educação in Portalegre und ist gegenwärtig Lehrer an einem Gymnasium in Sesimbra. Bislang liegen drei Gedichtbände vor: Arquitectura do Silêncio (2000), sete capítulos do mundo (2003) und Assim se deixa uma casa (2003). Für erstgenannten Band erhielt Ventura den Lyrikpreis der Associação Portuguesa de Escritores. Unsere Anthologie berücksichtigt nur diesen Band. Ventura ist, vielleicht ähnlich wie Luis Quintais, als Philosoph mit dichterischen Mitteln zu bezeichnen. So bedenkt er zunächst grundlegend das Seiende im Raum und in der Zeit. Er benennt Baum, Erde und Stein, aber auch die “tragezeit der sonne” und den Lauf des Baumes durch den Tag. Sodann bedenkt er das Eingelassensein des Seienden in die Offenheit de Welt. Heideggers Satz aus seinem Kunstwerkaufsatz, nach dem das Kunstwerk das Offene der Welt offen halt, ist hier nicht weit. Die Tür verschließt das Haus, ist aber zugleich über ihre pragmatische Funktion hinaus ein Öffnendes: “es berührt die hand das holz (sol lich tür sagen?) / als berührte sie die ganze substanz des hauses / seinen wind seine stimmen seine gerüche / seine gegenstände die gesamtheit des raums den man / jenseits der fenster und wände errät”. Man erinnert sich an die Sätze, die Heidegger im genannten Text über ein Paar in einem Gemälde von van Gogh abgebildete Bauernschuhe schrieb, um sich von Kunst als bloßer Abbildung abzugrenzen: “Aus der dunklen Öffnung des ausgetretenen Inwendigen des Schuhzeuges start die Mühsal des Arbeitsschritte. (…) Auf dem Leder liegt das Feuchte und Satte des Bodens. Unter den Sohlen schiebt sich hin die Einsamkeit des Feldweges durch den sinkenden Abend. In dem Schuhzeug schwingt der verschwiegene Zuruf der Erde, ihr stilles Versenken des reifenden Korns und ihr unerklärtes Sichversagen in der öden Brache des winterlichen Feldes”. Ein anderes Gedicht widmet sich dem Phänomen des Horizonts, um hieran ebenso das Wechselspiel von Begrenzung und Entgrenzung aufzuzeigen. Schließlich ist die durch die Neuzeit eingeleitete Epoche an, in der – nochmals Heidegger zufolge – die Offenheit des Seins von einem totalen technischen Zugriff auf Welt verstellt wird. Ein weiteres Charakteristikum der Lyrik Venturas sei noch genannt: die geheime Kommunikation unter den Dingen, von denen diese lyrische Welt bestimmt ist. Das lyrische Ich findet einmal “im geschmack der kastanien / alle farben und // alle planeten”. Eins liegt in der Nachbarschaft des anderen, eins geht aus dem anderen hervor. Man kann hier von einer gewissen Nähe zum Surrealismus sprechen. Sie gehört zu jenen Phänomen des Wohnens, das Ventura in dem hier vorgestellten Gedichtband beschreibt.