Ruy Ventura:
esboço de uma biobibliografia




Filho de um natural do concelho de Marvão e de mãe nascida no termo de Portalegre, Ruy Ventura descende de alentejanos da região da Serra de São Mamede, tendo entre os seus ascendentes paternos alguns judeus de Castelo de Vide supliciados pela Inquisição de Évora. A sua árvore genealógica revela ainda na sua ascendência minhotos da região de Ponte de Lima, bem como de alguns migrantes espanhóis, nomeadamente extremenhos, bascos e andaluzes. Parece que houve ainda um antepassado seu, de apelido Petiti, que proveio do Piemonte, no norte de Itália.

Registado como Rui Pedro Biscainho Ventura (o “y” - littera pithagorica - é homenagem aos poetas Ruy Belo e Ruy Cinatti, dois cristãos católicos como ele…), nasceu no Hospital da Misericórdia da cidade de Portalegre, junto da igreja do Espírito Santo, corria a madrugada de 27 de Dezembro de 1973, dia do apóstolo e evangelista São João. Não cessara ainda esse ano quando uma urgência médica o enviou para um hospital pediátrico de Lisboa. Regressou ao norte do Alentejo já em 1974 – e a essa data se sucederam 21 anos de vida e crescimento numa das aldeias serranas da região, Carreiras, povoação situada a 7 quilómetros da vila de Castelo de Vide. (Nessa freguesia, tinham propriedades os sogros do poeta Francisco Bugalho, ou seja, os avós maternos dessoutra voz da poesia portuguesa, Cristovam Pavia.) Infelizmente, vê-se obrigado a afirmar que “as ruas das Carreiras, onde [nasceu], após ter visto a luz em Portalegre e sangue novo em Lisboa, já não existem” – embora continue “a regressar a [esse] espaço, como se regressasse chamado pela voz dos sinos”…

Toda a sua infância e toda a sua adolescência se viram envolvidas pelos ritmos de uma natureza agreste e resistente e pela poesia da tradição oral, bem como pelo mistério emanado pelas lendas que rodeavam e rodeiam vários marcos do património material da região, nomeadamente o castelo de Marvão e as ruínas romanas da cidade de Ammaia, em São Salvador da Aramenha. Esta dupla fecundação originou em si uma planta bifurcada, que ainda continua a crescer. De um mesmo tronco, saem duas fortes pernadas: do lado esquerdo, a Poesia e a Arte, em sentido lato, como imposição interior e “instrumentos do Espírito”; do lado direito, a necessidade de investigar o devir da História humana, das estruturas interiores e exteriores da ocupação do espaço pelo Homem e da produção de verdade, bondade e beleza a partir desses espaços, bem como de todas as estratégias inerentes à sua nomeação.

Licenciado em Línguas e mestre em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, desde 1995 que exerce actividade profissional docente, maioritariamente no 2º. Ciclo do Ensino Básico, mas também no Ensino Superior, onde leccionou Literatura Portuguesa, Literatura Tradicional e Cultura Portuguesa e exerceu as funções de formador de professores do Ensino Básico. Pertencente ao grupo daqueles que se viram obrigados a deixar o Alentejo, mas nunca o abandonarão, actualmente é professor na Península da Arrábida, na cidade de Setúbal.

Iniciou a sua actividade literária na primeira metade dos anos 90 do século passado. Em 1997, um júri da Associação Portuguesa de Escritores – constituído por Fiama Hasse Pais Brandão, Fernando Pinto do Amaral e Urbano Tavares Rodrigues – atribuiu o Prémio Revelação de Poesia ao seu primeiro livro, Arquitectura do Silêncio. Desde a edição dessa obra, no ano 2000, tem publicado regulamente outras obras: Sete capítulos do mundo (2003); Assim se deixa uma casa (2003); Chave de ignição (2009); Instrumentos de sopro (2010); Contramina (2012); e Detergente (2016). Em Espanha, deu à estampa Un poco más sobre la ciudad (2004), El lugar, la imagen (2006) e Campo de la Verdad (2013). A sua terceira colectânea foi, entretanto, traduzida nos Estados Unidos da América, num projecto cultural editado em San Francisco (Califórnia). Publicou, no Brasil (São Paulo), a antologia Rua da Outra Rua (2014) e em Espanha (Badajoz) a colectânea Poemas - Arqueologia (2015).

Tendo participado em múltiplas antologias poéticas, organizou algumas, nomeadamente Poetas e Escritores da Serra de São Mamede (2002), Em memória de J. O. Travanca-Rêgo e Orlando Neves (2005) e a Antologia Poética, de Frei Agostinho da Cruz (2019). Orientou ainda os livros Contos e Lendas da Serra de São Mamede (2005) e José do Carmo Francisco, uma aproximação (2005), bem como a publicação na Apenas Livros de uma parte da literatura tradicional de Castelo de Vide, Marvão e Portalegre (de que saíram, em 2013, três cadernos). Editou poemas e ensaios em variadíssimas publicações periódicas portuguesas, brasileiras, espanholas, italianas e norte-americanas, tendo assinado prefácios ou posfácios de algumas obras literárias editadas em Portugal e no Brasil. Coordenou, com Nicolau Saião, o suplemento cultural Fanal do jornal O Distrito de Portalegre (2000-2003). Tem proferido palestras nalgumas instituições portuguesas, espanholas e italianas e foi, ainda, colaborador dos volumes de actualização do Dicionário de Literatura, de Jacinto do Prado Coelho. Presentemente, dirige com Nuno Matos Duarte a revista ibero-americana de cultura Devir (publicada nas edições Licorne, de Évora). Editou, em 2017, o ensaio A Chave de Sebastião da Gama e em 2018 o volume Sob os braços da azinheira - Leituras de Fátima.

Obras literárias suas estão publicadas em espanhol, francês, inglês, italiano e alemão. Tem, além disso, algum trabalho como tradutor literário, sendo autor das versões portuguesas de vários livros e poemas de autores espanhóis (Antonio Sáez Delgado, Ángel Campos Pámpano, José María Cumbreño, Alberto Corazón, entre outros); nesse âmbito traduziu ainda, para a Fundación Academia Europea de Yuste, um livro de poemas de um autor belga (Anton van Wilderode) sobre últimos anos de vida do imperador Carlos V. Tem sido também, esporadicamente, jurado nalguns prémios de poesia. A sua actividade literária e cultural vem sendo registada numa página pessoal (http://www.ruyventura.blogspot.com/), onde estão publicadas nomeadamente algumas opiniões e críticas sobre a sua produção poética.

Desde o início da década de 1990 que se dedica, em paralelo (ou nem tanto…), a uma actividade como investigador nas áreas do património imaterial (literatura tradicional e toponímia) e do património material (nomeadamente arte e arquitectura sacras). Neste âmbito, tem vários artigos publicados na imprensa, nomeadamente no semanário O Distrito de Portalegre (hoje extinto) e nas revistas culturais A Cidade (Portalegre), Ibn Maruán (Marvão), Elvas – Caia (Elvas), Calipole (Vila Viçosa), Sol XXI (Lisboa), Al-Rihana (Aljezur) e Invenire (Lisboa), tendo ainda participado nas Jornadas de Toponímia de Lisboa. Desde há algum tempo é coordenador das páginas electrónicas “Arquivo do Norte Alentejano” (http://www.nortealentejano.blogspot.com/) e “Arquivo d’ Aljezur” (http://www.arquivodaljezur.blogspot.com/). Com temática variada, esses artigos têm reflectido sobre o património religioso do norte alentejano, as torres senhoriais da região de Portalegre, a toponímia antiga e/ou medieval, as “Memórias Paroquiais”, o romanceiro tradicional e/ou popular e as representações de algumas figuras históricas (D. Carlos, vg.) na literatura oral. Neste seu trabalho de investigação, podem destacar-se os livros Memória d' Alva (sobre a igreja matriz de Aljezur, 2010), Santo António na Região de Portalegre (2013), O eixo e a árvore - notas sobre a sacralização do território arrábido (2014) e Notas sobre a história da igreja paroquial de Odesseixe (2014).

Colabora com a Pastoral da Cultura, o Secretariado Nacional dos Bens Culturais da Igreja e a Diocese de Setúbal, onde é responsável pelas comemorações do IV Centenário da Morte de Frei Agostinho da Cruz. É colaborador da Cátedra Poesia e Transcendência, da Universidade Católica Portuguesa - Porto, integrando nomeadamente a equipa de investigadores do projecto Teotopias, coordenada por José Rui Teixeira.


LANÇAMENTO DE
"MEMÓRIA D' ALVA
- CONTRIBUTOS PARA UMA BIOGRAFIA DA IGREJA MATRIZ DE ALJEZUR", de Ruy Ventura

A Comissão Organizadora das Comemorações do Bicentenário da Sagração da Igreja Matriz de Aljezur, tem o prazer de convidar V. Exa. e respectiva família para o lançamento do livro "Memória d' Alva - Contributos para uma Biografia da Igreja Matriz de Aljezur", da autoria de Ruy Ventura. A apresentação terá lugar no dia 18 de Dezembro, sábado, pelas 21 horas, na Igreja de Nossa Senhora d' Alva, em Aljezur, e estará a cargo do Professor Doutor José António Falcão, Historiador de Arte e Director do Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja. Agradecemos a sua presença.
LEVEZA, RIGOR E LUMINOSIDADE


(sobre a arte de Saúl Dias e de Julio)





1.



Júlio Maria dos Reis Pereira (1902-1983) constitui um caso interessante no campo dos estudos da onomástica artística. Num movimento pendular entre autor empírico e autor textual (considerando nós a sua pintura e os seus desenhos como textos, produtos – como os poemas – de uma tecelagem muito matizada, mas, a nosso ver, coerente), foi sendo estruturada uma identidade repartida que, colocando fora da esfera textual o primeiro, desdobra a substância do segundo.

O cidadão, com identidade civil, irmão carnal (e espiritual?!) de José Maria dos Reis Pereira (o poeta, ficcionista, dramaturgo e desenhista José Régio), apaga-se para deixar nascer duas outras personalidades: “Julio” (sem acento) e “Saúl Dias” (com acento). Se em José Régio, João Falco, Miguel Torga, Cristovam Pavia, Nicolau Saião ou noutros autores estamos perante casos de pseudonímia artística ou literária, com substituições totais ou parciais da designação atribuída pelo registo civil ou baptismal, no caso vertente a estratégia onomástica vai além disso. Não atinge, é certo, o extremo heteronímico talhado por Fernando Pessoa no seu “teatro em gente”, com Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis, António Mora, Alexander Search, Barão de Teive e outros. Não elabora uma ficção totalizante, como Boris Pasternak, ao atribuir a Jivago poemas que lhe pertencem enquanto autor empírico que dá propriedade literária ao romance, dada a inexistência de um pacto ficcional entre autor e leitores. A sua atitude perante a identidade poética (artística e literária) é mais próxima da que, nos anos ’70 do século passado, o pintor António Quadros assumiria, ao dar à sua obra plástica selos onomásticos aparentemente próximos do artista empírico (António Quadros e António Lucena), guardando para a sua importante produção poética personagens como João Pedro Grabato Dias, Frey Ioannes Grabatus ou Mutimati Barnabé João.

Julio” e “Saúl Dias” semi-heterónimos de Júlio Maria dos Reis Pereira? Como Bernardo Soares, de Fernando Pessoa? Temos suspeitas, mas as dúvidas não nos permitem uma afirmação peremptória. Ao contrário do poeta nascido em Lisboa, no Largo de São Carlos, que deixou declarações explícitas (partes, também elas, de uma ficção autoral) indicando pontes de aproximação e de afastamento entre as personagens dessa dramaturgia totalizante e o autor empírico que as ficcionou – no autor da “Série Poeta” não conhecemos qualquer texto claro sobre o assunto. Há indícios ténues semeados por toda a sua obra que não devemos pôr de lado, mas todas as conclusões serão sempre provisórias, incluídas no campo da indeterminação, como é apanágio da Poesia.

De tudo quanto lemos e observámos de Saúl Dias-Júlio ficou-nos no entanto a convicção da existência de algo de borgesiano neste(s) autor(es). Ao separar-se do engenheiro nascido em Vila do Conde, a personalidade poética de Reis Pereira parece dizer, com Jorge Luís Borges: “talvez eu seja também uma personagem imaginária”...

Há, em nosso entender, uma sobreposição de trindades poéticas e/ou identitárias. Se tivermos em conta quanto temos vindo a expôr, temos em primeiro lugar uma triangulação da identidade em que o vértice A (autor empírico) potencia dois vértices distintos, B (autor literário) e C (autor pictórico), que por sua vez dialogam entre si, num movimento biunívoco (o que também sucede, empiricamente, entre A e B e entre A e C, havendo por detrás dos quadros e dos poemas uma mão que escreve, que pinta e desenha).

Podemos, de seguida, figurar um triângulo onomástico – pseudonímico ou semi-heteronímico – em que a base de sustentação é constituída pelos dois vocábulos do nome literário (Saúl e Dias) e o vértice superior pelo designativo atribuído ao autor plástico (Julio).

Esta figuração é permitida por um pequeno, mas importante, pormenor de índole ortográfica. Decerto conhecedor de que nada existe enquanto memória se não existir primeiro enquanto expressão (verbal ou não-verbal), Júlio Maria dos Reis Pereira introduziu nas duas identidades-entidades em que se apagou para se dividir uma quase imperceptível modificação: suprimiu o acento da esdrúxula “Júlio” e acrescentou-o à aguda “Saul”. Há um passo de um texto seu de 1980 (“Nos Dois Pratos da Balança”) que nos parece significativo:

[...] embora as artes plásticas me tenham ocupado muito mais tempo do que a poesia, a verdade é que foram os versos que mais alegria me deram (refiro-me à alegria interior que se sente quando uma obra realizada ou em realização nos sai bem). Não sei explicar isto, mas assim tem acontecido.”

Subvertendo as regras da língua portuguesa e da sua gramática, o autor empírico retirou ao acento gráfico a sua funcionalidade prática, transformando-o num sinal deíctico, num dedo que aponta para “Saúl Dias”, desviando a atenção de “Julio”, aquele nome que mais aproximaria o(s) seu(s) ser(es) poético(s) do cidadão Reis Pereira e levaria os leitores dos seus poemas e os observadores dos seus quadros a formarem com ele um pacto autobiográfico, que aparentemente desejou afastar.

Embora tenha passado mais tempo a pintar do que a escrever, tal como declara no excerto acima transcrito, a personagem em que mais se revê (isto é, a parte da sua obra em que mais se realizou enquanto eu-próprio-outro) é a do criador literário e não a do criador plástico. Ao contrário do que se tem proposto ao longo de décadas e por muitas vozes, Reis Pereira não é assim um pintor que escreve, mas um poeta que também pinta. A Poesia assume-se enquanto edifício largo, totalizador, de que a pintura é apenas uma das fachadas (ou, talvez, um dos pilares). Há um domínio maior, assinado pelo “fazedor” Saúl Dias, o da Poesia, do qual fazem parte tanto a obra versificada quanto a pintada e desenhada – processos diversos, linguagens diferenciadas que contribuem para o mesmo todo, embora os poemas se situem no patamar criativo mais importante.

Perante estes dados, não erraremos muito se considerarmos que toda a obra criada por Júlio Maria dos Reis Pereira foi por ele enquadrada numa ficção autoral. O autor empírico apagou-se logo de início, afastou-se para que a sua personagem, Saúl Dias, vivesse. Pseudónimo ou semi-heterónimo, num processo de inversão identitária, enquanto na realidade material “Júlio” é o homem e “Saul” a sua invenção virtual, na escrita o jogo transfigurador inverte os termos: é “Saúl” o ser vivente que assina os poemas e, em simultâneo, pinta sob o nome de “Julio”.





2.



Se a ficção autoral apenas se vislumbra nos indícios deixados na fixação onomástica, a figuração do Poeta enquanto personagem dentro do poema e da pintura está bem presente em toda a produção de Saúl Dias-Julio. Mais evidente na justamente célebre “Série Poeta” (conjunto de desenhos e de pinturas que têm como tema a personagem que lhe dá título), encontra-se também presente ao longo da sua poesia. Excluindo os dispersos e inéditos recolhidos postumamente nas suas poesias completas, não podemos menosprezar o facto de que, em todos os seus livros, se encontram textos onde, de forma mais desenvolvida ou mais elíptica, se reflecte sobre o fazer poético ou sobre a figura idealizada do Poeta.

O primeiro poema do seu livro inicial, ...mais e mais..., de 1932, é uma declaração de princípios, um prefácio a toda a sua obra, um programa de vida para essa personagem dupla, Saúl Dias-Julio, que produzirá durante mais de cinco décadas uma obra ímpar na literatura de expressão portuguesa e nas artes plásticas lusas.

Um obra chã, próxima do húmus terreno e humano, nasce da contemplação e do confronto com essa trindade identitária e vital, triangulada em verbos que procuram resumir toda a vivência psicológica de um ser arquetípico, que se torna personagem de uma “história” (como refere Júlio Reis Pereira no artigo citado no capítulo anterior):

(Aquele triângulo, ali, / pintado a rubro no chão, / desperta em mim a obsessão / de que tudo o que eu senti, / amei, chorei ou sorri / era pintado no chão.)

Não sem antes se situar esteticamente perante a literatura e a arte do passado, defendendo implicitamente, na senda dos manifestos do Segundo Modernismo português, assinados por José Régio na revista presença, uma “literatura viva”, mais autêntica (ainda que, para ele, a defesa da “sinceridade” levada a cabo pelos presencistas como valor artístico e literário se configure antes, ao longo dos seus poemas, como uma procura da veracidade e de outros fundamentos que adiante descortinaremos). Há um claro corte com o passado:

Eram outras as guitarras / e as melodias intensas... / Partiram-se as cordas tensas / que eram enormes amarras, / a separar-me das charras, / medíocres existências!...

Um corte que se faz, sobretudo, pela escavação interior, na consciência de que a exploração de um “corpo” exterior poderá revelar a sujidade de uma alma, até aí escondida. O psicologismo (decorrente, talvez, de leituras de Dostoiewsky e das intuições especulativas de Freud) é evidente, assumido enquanto caminho para o encontro com a verdade ontológica:

A inconsciente devassa / cujo corpo é uma tulipa, / esguio como uma ripa, / airoso como o da garça!... / A perturbante comparsa / transmudou-se em suja pipa.”

A proposta do poema inicial de Saúl Dias é, no entanto, consequente. Não se dirige aos outros, mas a si próprio. O lirismo de imparável escavação / desvendação interior é assumido pelo sujeito poético:

Que os meus versos sejam líricos / e me desvendem!... Ascendam / e – maravilha! – se acendam / quando a noite toda em círculos, / como o falar dos ventrílocos, / de ignoto brota... se estendam!... // Que eles sejam o reflexo / de tudo o que me embriaga: / esta ânsia que me alaga, / e as exigências do sexo, / e os pensamentos sem nexo, / e aquela hora toda chaga... // e esses minutos todos / ferindo-me quais punhais, / e risos, lágrimas, ais, / e rios de oiro e de lodo, / e esse vago, estranho modo... / isto tudo... e mais e mais...

O resultado expressivo, vertido em textos versificados, é no entanto o da incompletude. Fragmentos poéticos resultantes de um ser fragmentado, imperfeito, são assumidos pelo autor textual enquanto excrescências também imperfeitas. A ironia remata o poema, como forma de desconstrução da solenidade que, por vezes, rodeia o ideal romântico do Poeta, enquanto figura superior, aureolada. O triângulo poético pinta-se no chão, lembremos... Não é apenas uma humildade ritualizada, feita de falsas modéstias. Trata-se de um sarcasmo auto-crítico, que deseja destruir a vaidade de ser Poeta:

Os meus poemas bizarros / quase nunca os acabo. / São um luxo de nababo / p’r’os meus nervos afiados. / Inacabados, quebrados, / lembram-me galos sem rabo.”

Saúl Dias irá aprofundar (por vezes modificando pequenos pormenores) estes propósitos ao longo da sua obra curta, quase bissexta. A escolha da onomástica literária não é alheia a este poema-prefácio. “Saul” foi o primeiro rei de Israel escolhido por Javé, destronado por David, devido à sua ignomínia. A unção (real ou poética), parece dizer-nos, pode ser revogada a qualquer momento se a soberba pretender elevar a criatura acima do criador. “Dias” parecem ser, simplesmente, os dias vividos, o quotidiano passado conservado na memória, que o sujeito poético – seguindo as teorias de Bergson – pretende restituir ao presente, iluminando-o, dando-lhe assim capacidade para se projectar no futuro. Assim no-lo indica um soneto publicado no livro Ainda, como cólofon:

Eu não quero esquecer os dias que viveram. / Por eles escrevi estes versos mofinos; / escrevi-os à tarde ouvindo rir meninos, / meninos loiro-sóis que bem cedo morreram. // Eu não quero esquecer os dias que enumeram / desejos e prazeres, rezas e desatinos; / e, em loucuras ou entoando hinos, / lá na Curva da Estrada, azuis, desapareceram. // Eu não quero esquecer dos dias mais felizes / a bênção branca-e-astral, lá das Alturas vinda, / nem tampouco o travor das horas infelizes. // Eu não quero esquecer... Quero viver ainda / o tempo que secou, mas que deixou raízes, / e em verde volverá, e florirá ainda...

Rei destronado à procura dos dias perdidos? Assim parece ser. Ente desdobrado, “os dias consome / a cantar ao desafio, / ao desafio consigo” (in Essência). Saúl Dias não parece considerar-se sequer poeta. Se fala com voz própria quando trata de reflectir sobre a estrutura muscular e óssea do poema, esta personagem criada por Júlio Maria dos Reis Pereira (talvez imagem espelhada de si próprio) pronuncia-se sobre o Poeta (e dirige-se ao Poeta) sempre como de alguém exterior a si, como de uma terceira pessoa. Descreve-lo como um ser ideal, fora do mundo, asceta e mendigo, vagabundo, louco, visionário, humilde, recolector de imagens visíveis ou invisíveis, transmissor de emoções, de sentimentos e de experiências, solitário, temerário, eternizador dos instantes (“Uma palavra quente! / Uma palavra para todo o sempre!”, in Essência) ao lutar contra “o Tempo / irreversível e eterno” (in Essência), com “a pretensão / de que [um] intenso clarão / [é] um sinal lá dos céus, / e de, no meio do assombro, / [pressentir] a mão de Deus / tocar-lhe, amiga, no ombro” (in Essência). Um ser distante de si – como se revivesse o cenário bíblico de um Saul impotente e transviado, substituído por David, o verdadeiro rei e poeta.

Nisto tudo, há a procura da leveza, expressão do pensamento essencial que só se concretiza no extremo rigor da exactidão de uma palavra:

Na tarde longa / imaginei um longo poema. / Depois, / fui-o encurtando / e reduzi-o a pequenos versos. // Quisera que os meus versos / fossem duas palavras apenas, / aéreos como penas, / leves / como tons dispersos…” (in Sangue)

Ao longo de toda a sua busca, Saúl Dias vai encontrando “receitas”, expressas em diversas artes poéticas que tenta concretizar. À maneira de Rainer Maria Rilke, pensa que “Versos / escrevem-se / depois de ter sofrido. / O coração / dita-os apressadamente. / E a mão tremente / quer fixar no papel os sons dispersos. // É só com sangue que se escrevem versos.” (in Sangue)

O poema, “estranha rosa / rubra e preta”, abre-se “na alma do poeta”, porque é a fixação de “uma pena”, de quem sente “estoirar / o calabre / do coração, / nostálgico do éden…” e deve deixar “o coração sangrar” (in Gérmen).

Sujeito à transitoriedade da existência, o texto poético, nascendo da meditação (ascética?) nos domínios da imaginação, é “Um esquema dorido. / Um teorema / que se contradiz. / Uma súplica. / Uma esmola” que transmite as dores do Homem, “vividas umas, sonhadas outras… / (Inútil destrinçar.)” (in Essência).

A Saúl Dias interessa sobretudo a capacidade fertilizadora do texto, matéria orgânica que alavanca o crescimento do mundo e a ressurreição da vida. Como as rosas, que não devem conservar-se numa jarra, porque murchariam:

Joga-as fora! / A valeta / que dessora / húmida, quente, / fá-las-á reviver / em húmus, sangue, lume… // E, rosas outra vez, / serão cor e perfume, / abraçando o jardim / de lés a lés…” (poema inicial de Gérmen)

Na hora da morte (isto é, no final da narrativa que se inicia com o primeiro poema de Saúl Dias e termina com o último publicado num livro em vida), o autor textual – que vê na Poesia um vislumbre de alegria, mesmo na doença e na dor (“Mesmo na dor / a sua alma é contente / se uma rima fugace / poalha de harmonia / um verso recortado…”, in Essência) – sabe que o Poeta, cessante enquanto ser biológico, não cessa enquanto ser virtual e verbal que é. Como José Duro nos versos finais de Fel (1898), sabe que “enquanto escreve / vive ressuscitando fugidias horas / mudadas em auroras…” (in Essência), porque a permanência de um escritor, ser feito de palavras, se deve à actividade revivificadora dos leitores, multiplicadores de sentidos.

O testamento de Saúl é, no entanto, mais uma manifestação do sentimento de incompletude de um caminho. O Poeta, até aí um ser ideal a alcançar na sua eminência, passa a coincidir com o sujeito da escrita. Poeta-desejo, sente que nunca alcançou a meta desejada (“Dias e dias / a tentar um verso, uma rima… / (um pobre verso, uma pobre rima…)”, in Vislumbre), conseguindo embora manter a alegria da ingenuidade infantil (“no coração do Poeta / há música, foguetes / e bandeiras ao vento… / (como outrora, na infância, nalgum dia de festa…”, in Vislumbre).

No fundo, sabe que a Poesia é um interminável exercício de depuração interior, manifestação da “sabedoria da linguagem, […] uma aventura de linguagem” (Ruy Belo, 1970). Um Poeta ideal ou idealizado chegaria ao fim. Na sua humildade, Saúl Dias tem a convicção de que ficou a meio do caminho. Numa estrutura circular, o poema final da sua obra retoma, meditativo, um sentimento semelhante ao expresso, de forma irónica, no início:

Só conheço, talvez, uma palavra. // Só quero dizer uma palavra. // A vida inteira para dizer uma palavra! // Felizes os que chegam a dizer uma palavra!” (in Vislumbre)





3.



Júlio Reis Pereira afirmava que a “Série Poeta” contava a mesma narrativa presente nos poemas de Saúl Dias. Podemos afirmar que os desenhos e as pinturas do conjunto pictórico mais conhecido de Julio legendam (lêem e interpretam) os poemas. E não apenas esse ciclo coerente, mas muitas outras obras plásticas que, ao contrário do que poderá parecer, não ilustram um texto, mas iluminam-no, desverbalizando-o, de modo a torná-lo, talvez, mais universal.

Praça onde confluiram várias avenidas da arte europeia do século XX, foi José Régio quem – em nosso entender – melhor compreendeu essa centralidade do pintor. Não existem influências, se as entendermos enquanto processo epigonal. Como refere o autor de Davam Grandes Passeios aos Domingos…, num texto de 1967, na pintura de Julio

[…] cabem manifestações tão diversas como a de um expressionismo violento, alimentado por uma tendência caricatural, dramática, satírica; a de uma espécie de dadaísmo muito pessoal (ou ultra-realismo) gerado no pendor tão instintivo como consciente para certos achados da arte infantil ou popular; a de um realismo mágico – feliz expressão que gozou em tempos de certo prestígio – transfigurador da realidade através das semialucinações do sonho; a de um decorativismo fundado na cor e na construção; ou a de um moderno classicismo banhado no lirismo congénito […]

Num artigo de 1935, o mesmo autor já diagnosticara:

Do futurismo, do cubismo, do dadaísmo, do expressionismo, do super-realismo […] resulta, embora não sistematicamente, o que nesses quadros e desenhos é mais característico de uma certa época de pintura. Neles perpassam ecos das vozes dos seus principais criadores ou intérpretes, e efeitos da vasta literatura especulativa ou crítica sobre tais escolas e mestre. […] / […] Nada, porém, […] se refere propriamente ao íntimo da obra de Julio. […] A aceitação de quantas inovações e liberdades trouxe à pintura moderna não aparece na obra de Julio senão como meio da mais completa expressão. Por isso se não poderá dizer dele que seja um futurista, um cubista, um super-realista, ou qualquer ista puro – ainda que dos vários ismos se aproveite a sua arte. E dizendo que ela se aproveita deles, disse tudo.

Ao olharmos para a globalidade da obra pintada e desenhada pelo pseudónimo de Saúl Dias, mesmo para aqueles quadros onde mais se nota uma expressão sarcástica, a primeira e principal impressão com que ficamos é a da permanência em todo o lado de uma extrema leveza. Italo Calvino, num ensaio dos anos ’80 (in Seis Propostas para o Próximo Milénio, 1990), considerava a leveza um dos valores fundamentais a serem transmitidos como herança ao futuro (que já começámos a viver). Em conjunto com a exactidão e com o rigor (propostas também para este novo tempo), a leveza e a luminosidade da arte verbal e não-verbal criada por Júlio Maria dos Reis Pereira faz dele não só um autor universal, como o “proprietário” de uma obra que o futuro ganhará em observar, lendo e legendando.

O irmão de José Régio contou certo dia um sonho que tivera, onde se via avaliado no dia do Juízo Final. Perante o peso dos seus pecados, colocou na balança das virtudes quanto criara de belo na “Série Poeta”. A balança começou a pender para o lado da salvação. Em 1980, “dez anos passados sobre essa antevisão”, assaltava-o uma dúvida: “terão ainda esses desenhos peso suficiente para forçar a descer o prato?” A pergunta ficou sem resposta. Não sabendo nós responder – por não conhecermos totalmente a cotação junto de tal juiz das boas obras artísticas (apesar de vermos hoje beatificado pela Igreja um pintor como Fra Angelico…) –, resta-nos uma convicção interior. Podemos até estar enganados; acreditando nós que a Justiça não será cega no futuro, parece-nos contudo que nesses tempos se julgará toda a obra de Saúl Dias-Julio (não só a “Série Poeta”, mas a sua pintura inteira e toda a sua poesia) como virtudes e valores a preservar e a transmitir.



Aljezur e Cotovia, Páscoa / 2007
(para o Eng. José Alberto Reis Pereira)

Ensaio publicado como prefácio da antologia de Saúl Dias, De ainda a vislumbre,
publicada em São Paulo (Brasil) pela Editorial Escrituras:

Fernando Guimarães




“Ouvir devagar…”

Jornal de Letras, nº. 1048, de 1 a 14 de Dezembro de 2010: 16-17.

[S/ livros de Daniel Faria, Gonçalo Salvado, José Emílio-Nelson e RV.]



[…]

Ruy Ventura publicou um novo livro de poemas, Instrumentos de Sopro. Há nele um sentido que se diria disfórico, o que poemas como este (parcialmente transcrito) revelam de imediato:

não existe / este lugar. sem água / opõe-se à transformação da pedra / guarda veios de uma madeira sem seiva // a serenidade dos passos procura / uma viagem sem destino / longos dedos folheiam / o fumo e algumas ervas sem préstimo – / ferro escorando, em vão, as células / de um corpo sem movimento.

Neste livro faz-se uma opção por uma escrita que se diria cursiva (“leio e releio. Seguro entre as mãos / o corpo e a esperança, a longa oliveira / deitada sobre a fonte”), presa a uma divagação evocadora (“que nome guardariam nesses silos / que hoje apenas resguardam a memória”) ou ligada a uma percepção imaginosamente transposta que procura, como o poeta diz, a “linguagem das formas a interpretação dos lugares”. Lugares vagos, imprecisos, como se se perseguisse uma visão cujos horizontes se vão afastando sempre.

Calçadinha, Carreiras (Portalegre) - a casa dos meus avós maternos.
Uma das casas da minha infância, demolida em 1991.

(Foto de RV, 1990.)




"Instrumentos do Espírito"
leitura comentada de poemas
na Sociedade da Língua Portuguesa
17/11/2010

Nas imagens e fora delas: RV, Márcio-André, Elsa Rodrigues dos Santos, José do Carmo Francisco, Joaquim Cardoso Dias, Margarida Alves, Filipa Barata... e demais ouvintes participativos e interessados.

(Fotografias de Joaquim Cardoso Dias)
MAIS ALENTEJO

O galardão do prémio "Mais Literatura" foi entregue ao meu conterrâneo Rui Cardoso Martins - embora, na minha opinião, também ficasse bem nas mãos do José Luís Peixoto ou do Mário Zambujal. Satisfez-me bastante ver valorizada a minha cidade romana de Ammaia, a Quinta do Barrieiro (tão perto das Reveladas dos meus bisavós e da minha avó paterna)... embora também gostasse de assistir, por exemplo, à consagração do Festival Terras Sem Sombra e de outras entidades/personalidades. Mas, ao fim e ao cabo, termos sido nomeados constituiu já uma honra numa terra (o Alentejo) que nem sempre prima pelo reconhecimento dos seus. Foi uma surpresa descobrir, entretanto, a voz e a música do Duarte. E tão agradável a conversa à mesa com o presidente da Câmara Municipal de Montemor-o-Novo e com os actores de uma companhia de teatro de Serpa, o reencontro com Luís Pargana, as palavras trocadas com Sara Fonseca e José António Falcão... Balanço positivo. Estive com gosto na gala da Revista Mais Alentejo, mas nunca esquecerei que o meu campeonato, aconteça o que acontecer, será sempre outro.
Márcio-André
http://intradoxos.blogspot.com/2010/11/ruy-ventura.html


Tenho, cada vez mais, me emocionado menos com poesia. Mas eis que ainda me supreendo.




A ÁGUA SOBREVIVE
ao esplendor do mundo.
o assento
desmonta a paisagem.
a primeira dor aproxima-nos,
alimenta a força da corrente
- raiz e crescimento.



os arcos abateram.
a biografia reserva-nos
um pouco de sangue
na confluência
do medo
com a memória.



recorda-nos que o rio
escreveu
a morte e a viagem.



desvia-nos do silêncio.
acompanha o sono
até à nascente.



esta manhã não termina.
o assento faz-se. sem pausas.



teu nome, junto à foz,
resguarda-me



da morte.
[de Stefan Zweig, en mitad del Atlántico]




arde la lengua. quemando
corazón, venas y células.
entre dos árboles, la cuerda
que aprieta la garganta. disuelve el anillo y la saliva —
esa melodía
en el interior del drago.



siempre de negro, se propaga el incendio.
sube la escalera, coloca en los ojos esa espada.
arde la lengua. deja entre las cenizas
vestigios de sombra. nada más encuentro
entre los escombros. antes del derrocamiento
llevo lejos la última gota de sangre.
la saliva repleta la desesperación,
el soplo del océano.



me quedo a este lado, junto al miedo.
intento salvar la última frontera.
en la falda de la montaña dejé este libro.
consigo leer. los símbolos,
con todo, tienen poca nitidez —
incluso cuando los entiendo.



arde la lengua. los acompaña la llama
en este infierno. la llama deshace
los huesos y el cabello, el anillo
y la melodía donde navegar procuro.



¿de qué sirve cruzar el horizonte
si la ceniza guarda frutos y palabras?



se propaga el incendio
de este lado del océano. la sal lava el cuerpo
y el lenguaje. el fuego devora la distancia.
este fuego



encuentra en el corazón

(¿en la tierra?)
esa ave nacida al inicio.


Tradução de Ángel Gómez Espada
Publicada aqui: http://www.elcoloquiodelosperros.net/numero27/esp27ru.html
(revista El Coloquio de los Perros, nº 27: http://tucuman846.blogspot.com/2010/10/el-coloquio-de-los-perros-n-27.html)
Tentativa de Arte Poética






Sendo a Poesia uma contraliteratura, logo um elemento edificador de uma demanda contracultural, a Arte produzida por quem escreve terá sempre uma dimensão de confronto. Antes de mais, um confronto com a linguagem enquanto instrumento comunicativo. Depois, uma luta permanente com a sociedade que usa essa linguagem e expulsa do seu corpo todas as presenças estranhas e estranhantes. Por fim, uma batalha ininterrupta contra a tradição expressiva da comunidade.

Não significa isto que a Poesia seja uma Arte desenraizada. Quem escreve tem as raízes na terra a que pertence, está consciente da presença dessas raízes, sabe usá-las para viver e segurar-se contra os vendavais e os terramotos da existência. Apesar disso, tudo arranca, tudo expõe, tudo subverte – porque conhece a distância entre a Poesia e a versificação, entre o Espanto e a monotonia, entre o Mistério e a previsibilidade, entre a Ruptura e a continuidade.



*



Nos poemas que venho escrevendo tento descrever destruindo a descrição, narrar destruindo a narração. Mais do que poeta, considero-me um investigador do avesso do mundo material e imaterial que me rodeia. Defendo que a Poesia não serve para representar a realidade nem para contar (historiar) a mundividência dos seres humanos, mas apenas – e é bastante – para apresentar as rupturas, as fendas e as fugas abertas na crosta que nos sustenta e nos dá forma corporal animada. Aborde uma matéria tangível/visível ou uma realidade intangível/invisível, tento que a minha poesia seja a concretização do inefável e, simultaneamente, a revelação da “espiritualidade” do mundo concreto. Concretizar o concreto ou espiritualizar o inefável é chover no molhado, empobrecendo e destruindo a Arte. Deturpando as palavras de um poeta espanhol, é preciso aliarmos às coisas existentes, mas mortas, as coisas inexistentes, mas vivas. Nem concreto nem abstracto são propriamente poesia, dizia Vitorino Nemésio. A Poesia será sempre “outra coisa”, um “não sei quê”; pertencerá sempre ao domínio da indeterminação.



*



Como qualquer outro ser escrevente, sou um ser contaminado. Não falo de influências à maneira de Bloom, pois ressumam hierarquia – e, ao fim e ao cabo, todos os autores criam os seus antepassados, como escreveu Jorge Luis Borges. O poeta brasileiro Márcio-André diz bem: “A contaminação não parte de um princípio de troca hierárquica entre um contaminador e um contaminado; na verdade, ambos se contaminam mutuamente. […] só podemos ser contaminados por algo que já esteja dentro de nós, ainda que enquanto possibilidade.” Devo, contudo, muito mais à pintura e à escultura que vi até hoje, aos reinos animal, vegetal e mineral com que me venho deparando – do que à Poesia que venho lendo desde que me lembro. Por mais que admire a poesia tradicional e as obras de Homero, Horácio, Ovídio, Dante, Holderlin, Mallarmé, Rimbaud, Rilke, Eliot, Pessoa, Teixeira de Pascoaes, Nuno Guimarães, Carlos de Oliveira, Maria Gabriela Llansol, C. Ronald ou Fernando Echevarría – quem quiser entender os veios estilísticos por onde corre a água dos meus poemas terá de observar com atenção toda a pintura medieval, os quadros de Giotto, Luis de Morales, Zurbarán, Friedrich, Domingos António Sequeira, Ciurlionis, Kandinsky, Chagall ou Hundertwasser, a arte esquemática pré-romana, a escultura flamenga dos séculos XV e XVI, os retábulos maneiristas e barrocos de origem espanhola e portuguesa, a arte popular saída da mão de barristas e entalhadores provenientes de todos os cantos do mundo. Terá ainda de vislumbrar as serras de Gredos, da Arrábida e de São Mamede (envoltas no nevoeiro, no silêncio e, por vezes, nas chamas dos incêndios), o mar que bate das falésias de Sagres e de Aljezur, a largueza dos carvalhos e dos sobreiros.

Nada existe, tudo coexiste. Bernardo Soares tinha razão.
SOBRE A POESIA
DE JOSÉ MARÍA CUMBREÑO
(revista Triplov de Artes, Religiões e Ciências - nova série, nº 8/9, 2010)


Num interessante e descomprometido ensaio, publicado no México em 2006 [UNICACH, Chiapas], o poeta Luis Arturo Guichard observou em Espanha algumas linhas de força que vêm dando forma e conteúdo à sua poesia recente. Com sábia ironia, chegou à conclusão de que no mar poético da pátria de Cervantes desaguam águas de um “culteranismo temperado” e de uma “confusa experiência”, lado a lado com “assomos de infinito”, indecisas “vanguardas” e o recorrente “peso da tradição”. Navegando por todas estas linhas de água, acaba por concluir que, na actualidade, se vem esbatendo a confrontação sectária entre estas posições estéticas: “os cultos e herméticos novíssimos parecem aproximar-se cada vez mais da experiência quotidiana e de discursos menos espalhafatosos e os experienciais, mais ou menos continuadores da poesia civil e coloquial, chegam-se cada vez mais à pesquisa da linguagem e ao poema pelo poema. Entre uns e outros, os matizes são variados e saudáveis: não falta felizmente o humor, nem tampouco aventuras alicerçadas na mística ou na filosofia. A luta entre as escolas, que nalguns momentos chegou a ser bastante sectária, deu lugar a poetas que escrevem livremente.” (p. 113, tradução nossa). Assim se vem fazendo o caminho Hacia el equilibrio, expressão escolhida aliás pelo autor para nomear a sua abordagem.

José María Cumbreño, entendendo bem o quanto é benéfico este equilíbrio para a Arte nascida das palavras em direcção ao Verbo, vem produzindo desde o fecho do século XX uma poesia que corporiza bem uma linha estética que sabe fermentar todos os frutos de um passado poliédrico (por vezes contraditório e conflitual) para deles destilar o melhor néctar. Tem consciência de cumprir um papel determinante na corrida de estafetas que é a literatura, servindo de correia de transmissão num movimento incessante, não negando a recepção do testemunho, de modo a poder entregá-lo melhorado aos vindouros, como desejava Miguel Torga. Dito doutro modo, o autor de Estrategias y Métodos para la Composición de Rompecabezas, sabe que não pode parar a construção da “Cerca de Pedra”: “O meu avô pôs uma pedra / sobre a pedra / que havia posto seu pai. // O meu pai pôs uma pedra / sobre a pedra / que havia posto meu avô. // Limite. Fronteira. // Eu tenho uma pedra na mão” (pp. 19 e 21). E é com essa “pedra na mão” – pedra angular na construção de um edifício que já conta com vários títulos – que Cumbreño se apresenta numa obra encadeada, coerente, porque “A semente que se planta num poema germina no poema seguinte” (p. 45).

Ao denominar Teorias da Ordem a sua antologia publicada em Portugal, José María Cumbreño quis sintetizar a sua poética. Separando a narrativa da poesia, ao afirmar que “Os romances [se] escrevem […] com a mão direita” e os poemas “com a esquerda” (p. 85), aproxima quem escreve da figura de Penélope, que “não tecia e destecia: / tecia para destecer” (p. 107). Neste jogo constante de elevação e fracasso, de construção e demolição, obriga-se a reconhecer que “O destino da poesia é a linguagem matemática, cheia de limites, equidistâncias e incógnitas por resolver” (p. 59). Tal como acontece na pintura, o mundo representado ao longo dos versos (se algo neles se representa) interessa pouco ou nada, uma vez que “A maneira de pintar / é o próprio quadro” (p. 15). O papel do leitor não se pode separar assim da surpresa e da perplexidade; se o poema se confunde com o “quebra-cabeças”, o seu sentido, “em condições normais / de pressão e temperatura, / […] traz[-nos] / não o que pouco a pouco / se vai demonstrando, / mas aquilo que os intervalos não demonstram” (p. 19). E se um texto parece transparente, claro, não nos esqueçamos de que a sua essência não andará longe da de um “copo”, que nunca terá “transparência”, mas apenas imitação da do “líquido que contém” (p. 21). Entre partir e ficar, entre “tecer” e “destecer”, o texto escrito por intermédio do poeta torna-se operativo, “obra” modificadora, ao agir sobre o mundo, mesmo que indirectamente. Se “A luz, à medida que a vidraça / a ia filtrando, / [se] convertia[…] em palavra de Deus” (p. 109), cabe ao escrevente “Reciclar, reutilizar, recuperar” e, sobretudo, “Escorar, restaurar, reforçar” (p. 109). Dois triângulos verbais que – apontando para a escrita incessante praticada por um ser que (não recusando Ulisses e o seu movimento linear) se revê sobretudo em Penélope e no seu movimento de eterno retorno, rumo ao júbilo final – acabam por assumir que são essas “fórmulas matemáticas”, esses “quebra-cabeças”, esses poemas, a “[definirem] as proporções da utopia” (p. 111).

Se “Muito da feitura do mundo […] consiste […] em separar e reunir; por um lado, em dividir totalidades em partes […], traçar distinções; por outro lado, em compor totalidades […] a partir de partes […] e fazer ligações” – como escreve Nelson Goodman em Modos de Fazer Mundos (1978) – (ou seja, em “Reciclar, reutilizar, recuperar” quanto nos rodeia através da palavra), José María Cumbreño tem consciência na sua poética de que os poemas não são a vida, mas substitutos da vida, porque a “ordem” (a estética) que pretende teorizar é “combinatória e fábula, / inventa-se. / É um mecanismo de ficção / que, por sua vez, cria ficções”, urdindo “redes imaginárias / que pescam vidas reais” (p. 71). Para este escritor nascido na Extremadura espanhola, o poema (o verdadeiro, aquele que não é apenas mero empilhamento de versos com maior ou menor devoção epigonal) será sempre “o resultado da multiplicação do silêncio por si mesmo” (p. 91), ou – como defende o poeta americano neo-surrealista Andrew Joron – a viagem do grito ao zero, ao nada, ao intangível e ao impronunciável.

A leitura da produção de José María Cumbreño pode provocar em nós uma sensação de estranheza. Se por vezes nos deparamos com alguns textos aparentemente próximos da produção dalguns radicais do neo-naturalismo, logo ao seu lado surgem outros cuja pseudonarratividade é matizada por imagens heteróclitas, distantes do mundo observável e representável, ombreando com poemas cujo motor parece ser a reflexão filosófica ou metaliterária, dando por vezes origem a sentenças, aforismos e/ou “greguerías”. Num mesmo livro podemos colher ecos remotos e olhares próximos de nós no tempo (inclusivé com conotação política), frases coloquiais e expressões cuja raiz se afasta da comunicação diária entre seres humanos sem literatura. Chegamos a ter a sensação de estar na presença de antologias de vários poetas que, por motivos desconhecidos, assinaram todos com a mesma designação autoral.

São assim os frutos da sua poesia feita de equilíbrios, por isso mesmo funâmbula, que ora se aproxima ora se afasta das várias tendências estéticas correntes entre os seus compatriotas produtores de versos. E isso mesmo a torna tão interessante, na sua falsa incoerência, produtora de uma diversidade que pode desorientar os leitores mais habituados à monotonia, mas satisfaz quantos não viajam apenas pelas auto-estradas, mas se aventuram por caminhos pouco frequentados, procurando autores heréticos em relação aos dogmas estabelecidos pelos Romas que tudo nivelam por baixo (como bem retratou Eça de Queirós no seu romance A Capital).

Nascido em 1972 na cidade de Cáceres, onde ainda hoje reside, com textos espalhados por várias revistas e poesia (em verso ou em prosa) publicada em livros como Las ciudades de la llanura (Editora Regional de Extremadura, 2000), Árboles sin sombra (Algaida, 2003), De los espacios cerrados (Fundación José Manuel Lara, 2006), Estrategias y métodos para la composición de rompecabezas (El Bardo, 2008) e Diccionario de dudas (Calambur, 2009) ou na antologia Teorias da Ordem (Edições Sempre-em-Pé, 2009), José María Cumbreño é uma das vozes que mais me interessam na poesia espanhola dos nossos dias. Feita de fragmentos de seres, de espaços e de memórias, que se combinam de forma por vezes inusitada, sem esconder o seu carácter de estilhaços e de escombros provenientes de uma catástrofe verbal, logo existencial, a sua poesia interpela-nos e inquieta-nos com uma ironia discreta, matizada pela nostalgia de quem vê o mundo por um espelho retrovisor. Porque, num mundo como o nosso, é preciso ter a coragem de “Beber de um copo partido. / Acalmar a sede, mesmo com o risco de conhecer a ferida” (p. 73). Porque, mais tarde ou mais cedo, os estilhaços provocados pela catástrofe chegarão ao coração.


NOTA: Todas as citações transcritas foram retiradas da antologia Teorias da Ordem, publicada em Junho de 2008 pelas Edições Sempre-em-Pé (Águas Santas), com tradução nossa a partir do espanhol. Os poemas de José María Cumbreño aqui publicados são traduções inéditas a partir do poemário Diccionario de Dudas (Calambur, 2009).







POEMAS DE
JOSÉ MARÍA CUMBREÑO







DICIONÁRIO DE DÚVIDAS

O transcurso e a ordem,
a sua continuidade,
são matéria simbólica.

JENARO TALENS



Unindo com um lápis
linha de pontos
conseguia ver-se uma figura
(quase sempre um globo,
um palhaço ou uma flor).
De seguida, devíamos pintá-la.

O sujeito faz.
Ao objecto fazem-no fazer.

As correspondências marcam
duas distâncias.
E as duas imaginárias.
A partitura explica-se
por oposição ao silêncio.

Ordem e desordens.
Princípio e desenlaces.

As listas, os inventários
e as classificações
usam-se no fundo
para não termos tanto medo.

Enquanto se traça um círculo
conhece-se a calma.

O termo definido
não deve ser incluído na definição,
o que significa pedir
que a água limpe sem molhar
ou que o amor dê sem tirar.

Ordem e desordens.
Singular e plural
não assinalam quantidades diferentes.

Conforme o lado
de que se lê o símbolo,
uma palavra
origina a que a segue
ou deriva da seguinte.

Muitas explicações juntas
têm demasiada aparência de mentira.

Que a forma mais perfeita
seja a do zero
talvez não signifique nada
a não ser que a minha imperfeição
lhe outorgou um significado.

O olho não vê:
produz o que observa.

Apontar as dúvidas num caderno,
colocar uma atrás da outra,
ajuda-me a dormir,
sabendo que me tranquilizo
com um engano,
porque, quando se esteve certo tempo
inventando limites
para a incerteza,
acaba por não se distinguir
a verdade da retórica.

Há também quem caminhe
com a preocupação de não pisar
a junção dos ladrilhos
ou quem não atravesse a rua
até que passe um carro vermelho.

Os pontos cardeais não existem
a não ser que o vento
se misture com o cata-vento.

As frases, supõe-se,
possuem um sentido completo.
E no entanto algumas frases
ninguém chega a entendê-las por inteiro.

O cata-vento e o vento.
O lápis e a mentira.

Pontos que compõem uma linha.
Linhas que compõem uma figura.

Um princípio. Vários desenlaces.

Quem pousa nas fotografias
não olha para nós:
olha algo que nós não vemos.








NOCTURNOS



I
Não tenho a certeza de que as estradas, à noite, conduzam aos mesmos lugares a que levam de dia.

II
Negro sobre negro: a redundância de apagar a luz e, depois, fechar os olhos.

III
Ensimesmados, olhando o fogo.

IV
Negro sobre negro: atrever-se a dizer (de novo) alguns nomes em voz alta.

V
Dependendo do tempo que se mantenha na boca, a água ou mata a sede ou afoga.

VI
Qualquer modo de combinar o remorso e a culpa.

VII
Se a escuridão se identifica com o mal, por que haverá flores que apenas abrem quando anoitece?






PARÁBOLAS

1. O semeador decidiu atirar todas as sementes à água.
2. O pastor descobriu que dava muito maior rendimento guardar um rebanho de lobos.
3. O compassivo samaritano deu golpe de misericórdia ao moribundo seguinte.
4. O fariseu vendeu a sua mulher ao publicano.
5. O filho pródigo esqueceu para sempre o caminho que o reconduziria a casa.





LER E ESCREVER

O verdadeiro escritor prefere ler a escrever.






CORRESPONDÊNCIAS

Qualquer correspondência,
esquecida a sua origem,
acaba por criar um símbolo.

E os símbolos não existem: representam,
simulam uma ordem imaginária.

Fora do tabuleiro,
o peão nega-se a cumprir
as ordens do rei.






AUTOMÓVEL

Veículo conduzido por pessoas com má memória.
Cinco mudanças para avançar e uma apenas para retroceder.






METAMORFOSE

Os ditadores convertem-se em ex-ditadores.
Os ex-ditadores em senadores vitalícios.
Os senadores vitalícios em velhos inofensivos.
E os velhos inofensivos, finalmente, acabam por perder a memória.






MÚSICA PARA CASTRATI

Antes castravam-se as pessoas para que a sua voz
soasse melhor; agora, para que não soe.


ÁNGEL CRESPO



Se escrevesse que leio
na direcção contrária àquela em que escrevo,
ou não seria certo que leio
ou não seria certo que escrevo
ou ambas as coisas estariam certas
ou nenhuma.

Em qualquer caso,
a verosimilhança do argumento
tem muito mais a ver
com as contradições
do que com as evidências.

Do mesmo modo que o caminho ascendente
deve mais às curvas
do que às rectas.

Os livros haveria que começá-los
pelo final.

Entre o zero e o nove
ocorrem todas as variantes
do limite e do infinito.

Contar e perder a conta.
Melhor ainda,
contar até perder a conta.

Porque a escala não ordena notas,
mas apenas cifras e silêncios.

Um número dividido por si mesmo.

A melancolia
é uma incógnita sem solução.
E é precisamente a melancolia
a matéria dúctil e estranha
de que se faz a música.

Houve soldados que,
enquanto agonizavam,
começaram logo
a sussurrar, delirando,
a letra das canções de embalar
que as suas mães lhes cantavam.

De noite as portas
fecham-se por dentro.

Aos indecisos repetia-se-lhe
(o poder consegue-se
com figuras de retórica)
uma fábula de renúncia e pureza:
a poda sacrifica alguns ramos
para que o resto da árvore
conheça a altura.

A diferença entre nós e eles
enraíza-se em nós termos
uma faca.
E eles não.

O flautista continua a tocar
para receber algumas moedas.

Os actores, é certo, mentem de memória.
Mas o público, que pagou
o bilhete, sabe que são actores.

No entanto, ainda que a função
não nos agrade e nem sequer
tenhamos ido ao teatro,
nunca deixaremos
de pagar ao flautista.

De novo outra fábula.

Os instrumentos de sopro
deformam a boca.

O mal menor não existe.

Posso dizer que leio
na direcção contrária àquela em que escrevo
ou posso de verdade ler ao contrário
o que já está escrito
e ter assim a audácia
de dar a volta ao argumento
desta narrativa de vencedores
que (enquanto o hino soa
reforçando a identidade do grupo)
castram os seus prisioneiros.






http://novaserie.revista.triplov.com/numero_08/ruy_ventura/index.html
Luis Arturo Guichard

SOBRE INSTRUMENTOS DE SOPRO

"[...] Instrumentos de sopro es un libro de una poderosa materialidad, un libro en el que el escenario físico, sobre todo los objetos inanimados más humildes y en principio poco significativos (las piedras, una y otra vez) dejan de ser paisaje y se vuelven el centro del poema. Ese carácter "objetual" transmite un estado de ánimo y una lectura del mundo: es una geografía interior. Me parece, además, un libro ambicioso en su estructura, bien balanceado y con mucho, mucho, oficio. Un libro de madurez, pues, más a ras de suelo. El título me recuerda aquello de Séneca (no recuerdo dónde) de que los seres humanos somos instrumentos de viento mal afinados. Pero Instrumentos de sopro está bien afinado: suena bien y nos deja un grato recuerdo en el oído."

(De um email enviado ao autor em 14/09/2010.)

Ruy Ventura, Marta López-Vilar e José do Carmo Francisco
Lisboa, Largo de São Carlos
tarde de 8 de Setembro de 2010
POEMAS DE "CHAVE DE IGNIÇÃO"
traduzidos para inglês por Brian Strang



Olá amigos! The second installment in this blog is work by Ruy Ventura (b. 1973), a poet from the Alto Alentejo region of Portugal. He has published several books in Portugal, including Architecture of Silence, Seven Capitals of The World, How To Leave A House and Breath Instruments. The following work is a selection from Ignition Key (2009). He has published poetry books in Spanish, organized anthologies, done translations, written many essays and has an interesting poetry blog called Estrada do Alicerce.






Here’s what Ruy has to say about his poetry:



Poetry being a counterliterature, an edifying element of a countercultural demand, the art produced by one who writes will always have an element of confrontation. First, a confrontation with language and, at the same time, an instrument of communication. Later, a permanent struggle with the society that uses this language and expels from its body all the strange and estranging presences. And in the end, an uninterrupted battle against the expressive tradition of a community.
This does not mean that poetry should be an uprooted art. A writer has roots in the land to which s/he belongs, is conscious of the presence of these roots, knows how to use them to live and braces one’s self against the storms and earthquakes of existence. Despite this, everything tears away, exposes itself, subverts—because the writer knows the distance between poetry and versification, between the marvelous and monotony, between mystery and previsibility, between rupture and continuity.
In the poems I have been writing I try to describe destroying description, to narrate destroying narration. More than a poet, I consider myself an investigator of the inversion of the material and immaterial world that surrounds me. In my opinion, poetry is not good for representing reality nor for relating (historicizing) the world-view of human beings, but just—and this is enough—to present the ruptures, gaps and the open retreats in the crust that sustains us and gives form to our animated corporeal form. Aboard a tangible/visible material or an intangible/invisible reality, I try to make my poetry a concretization of the ineffable and, simultaneously, the revelation of “spirituality” of the concrete world. To concretize the concrete or spiritualize the ineffable is to piss into the ocean, making poor and destroying art. Butchering the words of a Spanish poet, we must ally ourselves with the existent, but dead, the inexistent, but alive. Neither concrete nor abstract are properly poetry, said Vitorino Nemésio. Poetry will always be “an other “ an “I-don’t-know-what;” it will always belong to the domain of the indeterminate.
Like any other that writes, I am one who has been contaminated. I don’t speak of influences the way Bloom does, which oozes hierarchy—and, in the end, all writers create their own ancestors, as Jorge Luis Borges writes. The Brazilian poet Márcio-André says it well: “Contamination does not begin by exchanging hierarchies between a contaminator and a contaminated; in truth, both are mutually contaminated. … we can only be contaminated by something that is already in us, insofar as that is a possibility.”
Nothing exists, everything coexists. Bernardo Soares was right.









from Ignition Key / Chave de ignição







“…when one is born, there isn’t yet a traveler. Heavy tears are the first drops of Spirit. … Dispersed lights wait for the only pauses permitted, and the living kingdom, lowering to crematorium fire of the bellies, breathes into a new form.”

Maria Gabriela Llansol
from A Falcon in The Fist






trip / viagem










queimo tudo dentro deste quarto—

no lugar onde o teu corpo

parte.

o campanário permanece.

a alma renasce

com a poeira.

faz parte da serra

— a que chega, a que fica, a que

abala com o abrigo

escavado na rocha—.

a pedra recebe o teu corpo.

desaparece. apenas um rasgo

entre dois líquenes

recorda a fundura

das células.



queimo tudo—nesta casa.

os sinos pontuam o sono.

— a melodia cresce.











I burn everything in this room—

in the place where your body

splits.

the bell tower remains.

the soul is reborn

with dust.

becomes part of the mountains

—that arrives, stays,

shakes with a shelter

dug in the cliff—.

the rock receives your body.

disappears. just a tear

between two lichens

records the depth

of the cells.



I burn everything—in this house.

bells punctuate sleep.

—melody rises.










abro a porta. entro sem ver

nessa dança que divide o coração.

a terra protege-nos do frio.

desvia dos olhos essa fome

com que fomos edificando

o sangue, a alma.



cozinhamos sombras e segredos.

colocamos a cinza sobre o corpo

para acendermos o fogo e a memória.



a cinza lava essa imagem, a nossa

imagem sem cor, sem nome—

ardendo sobre as águas.



guardo neste braço a luz do dia.

sobre a pele, a noite dissolve

o mundo inteiro—sedimentos

(acumulados sobre a morte)

que dividem a voz e a tristeza.



alimento-me dessa escuridão.

tento trazer para dentro da caverna

fragmentos de pão e de paisagem.



a sombra invade-nos

quando menos esperamos.

a luz vai gravando sobre a porta

a legenda da voz que alcançámos.



que dança divide o coração?

a água atravessa a fome e o movimento.

a cinza devolve à terra

este corpo (sem cor, sem nome).



o fogo enegrece as paredes do templo.

só assim conseguimos escutar a derradeira canção—

ecoando noite e dia

nos alicerces do medo.











I open the door. enter without seeing

in that dance that divides the heart.

the land protects us from the cold.

diverts from our eyes that hunger

with which we are edified

the blood, the soul.



we cook shadows and secrets.

we place ash on the body

to light fire and memory.



embers wash the image, our

image without color, without name—

burning over the waters.



I hold in this arm the light of day.

over the skin, night dissolves

the interior world—sediments

(accumulated over death)

that divide voice and sadness.



I feed on this blackness.

try to bring into the cavern

fragments of bread and countryside.



shadow invades us

when we least expect it.

light is etching over the door

an inscription of the voice we reach.



what dance divides the heart?

water crosses hunger and movement.

ash returns to land

this body (without color, without name).



fire blackens the walls of the temple.

the only way we can hear the final song—

echoing night and day

in the foundations of fear.














a serenidade acolhe-nos.

solene, a serenidade acolhe-nos—

como uma tempestade.

o mar devolve esse clamor que nos atravessa.

a noite satisfaz a cidade e o alimento.

faz-nos desaparecer em qualquer encosta virada a poente.



habitamos o espaço

reunido e multiplicando

a linguagem que preside ao desespero.



solene, apenas a ventura—

interior à luz, como a catedral

depois de uma tarde de trovoada

(ressurreição ou deslumbramento):

a mesma carne, o mesmo sopro

na respiração do inverno.



a serenidade recolhe-nos

dentro da tempestade.

reúne palavras e objectos

que ninguém lê

mas todos compreendem.



dissolve assim o arquipélago.

o mar dissolve o clamor que nos entende.

o vento abre a janela

para que possamos respirar.











serenity welcomes us.

solemn, serenity welcomes us—

like a storm.

the sea returns this clamor that crosses us.

night satisfies the city and the food.

it makes us disappear in any shelter against the dust.



we inhabit the space

reunited and multiplying

the language that presides over despair.



solemn, just the venture—

lighted interior, like a cathedral

after an afternoon of thunder

(resurrection or hallucination)

same flesh, same breath

in winter’s breathing.



serenity gathers us

inside the storm.

rejoins words and objects

that no one reads

but everyone understands.



this is how the archipelago dissolves.

clamor that understands us dissolved by the sea.

wind opens the window

so we can breathe.












a dor conhece a paisagem

nesse lugar onde uma lágrima

(esta alegria)

desce com o sangue—



procura o melhor lugar

para os objectos na inundação da alma.



não será preciso transformar em árvore

o corpo que construímos.

a raiz cresce na viagem que satisfaz o medo

na temperatura deste mapa

onde somos legenda e deserto.



a dor conhece esta paisagem.

uma nuvem desce para sul.



altera a casa—e o mundo.











pain knows the countryside

in that place where a tear

(this happiness)

drips with blood—



it looks for the best place

for the objects in the inundation of soul.



it will not need to turn into a tree

the body we’ve constructed.

the root grows in the trip that satisfies fear

in the temperature of this map

where we are inscription and desert.



pain knows the countryside.

a cloud descends southward.



it changes home—and the world.














projectamos este filme na memória.

como num vitral, a noite transfigura-nos.

acolhe-nos sem ser preciso desvendar

esta alegria (beleza ou deslumbramento).



a serra ilumina este rosto

entre o alicerce e a transcendência da fala.

alumiamos a terra

para chegarmos a essa fonte.

multiplicamos a imagem.

ao longe, as cores desaparecem.

as formas descem nos objectos

como mistério ou ansiedade.



projectaremos este filme.

entre terra e céu. o corpo cresce



como um pinhal

plantado há sete dias.











we project this film onto memory.

like stained glass, night transfigures us.

receives us without removing the blindfold

from this happiness (beauty or hallucination).



the mountains light this face

between the foundation and transcendence of speech.

we illuminate the land

to arrive at this source.

we multiply the image.

far away, colors disappear.

forms descend on objects

as mystery or anxiety.



we project this film.

between earth and sky. the body grows



like a pine forest

planted seven days ago.



Fonte:
http://sunintosea.blogspot.com/2010/07/ola-amigos-second-installment-in-this.html
15/7/2010
r u y  v e n t u r a

translation: b r i a n  s t r a n g
(in Alice Blue Revue, nº. 6
I S S N 1 5 5 9 - 6 5 6 7)





How to Leave a House








house—earth



a) the arch chooses whomever seeks
the house
descends until it is very close
to the earth



b) two sacks of coal dust the carpenter’s shop
on the corner
no one seems to live here
there is plenty of time



c) god or child? I encounter
in the stone
above all the hand and the heat
of whomever breathes



d) two or three tiles lightly broken
the instant
a wall encircling
the garden



e) the rain transports what is left
of the city
the bus climbing until it reaches
the door



f) suddenly two children cry
it is definitely
on the other side
of the reeds







door—place



tonight
it opens
over the road



the door swings to the north and to the south



too far
the room
where a city
inside a river
(in a vase?)
rises to the middle of the mirror
ignoring the books



dividing itself as if a street



the only worthwhile way to save space
—an acacia spreading
in



its radiance










books—apartment



the books
shield the living room from
the wind
that at mid–afternoon
blows over the whole valley



the eyes close with persistence
and only the voice—at sixteen kilometers—
can wake up
everything
in the apartment



over the bed
the night air
overtakes the blinds—almost shut



an automobile
starts on
the road
after hitting the door
(there was no parking)



two or three presences
might come from the pine trees
cut recently
for another field



an airplane tries
to fly over these hours
in the direction of the valley



everything unites around the music from the garden
from the pianos
—from the left side of the veranda
somewhere between the beach
and the tiny



garden









building—birth



right before
the best place to cross to the other side
of the building was not certain—
a water tank, maybe an acacia
two or three balconies
on the last mornings of december



someone reduces the foundation of the house
—I remember the garden olive tree by olive tree
the cement stairs the arm
holding on to
melancholy



I decided to save the envelope in the last dresser drawer:
I put our names among the objects whose significance absorbs us
it is difficult to determine the resonances
when at ten in the morning we abandon
a city that grows



I never really had a garden—
too close or too far
at which we could arrive,
the image grows every fifteen days
though the trips would be just
the beginning of a birth



the door opens as a line on the horizon
between two rainy nights
everything is in everything we
belong to everything







ache—equilibrium

(co-translated with Elisa Brasil)



this is how one leaves a house
(the house)
the forks the cups the plates the bed
the fire—firewood in the corner with the fireplace—
the pitcher protecting the distance between the fountain
and happiness,
the pocketknife hidden for more than thirty years,
the stove in the center of the kitchen
right in front of the door window



two photographs hanging on the wall
remembered the ache and the equilibrium,
the strangeness of having saved
various gusts of wind and of mystery



this was not the place of birth



just a pause



a window
shut so long ago





RUY VENTURA (b. 1973, Portalegre, Portugal) is a teacher near Lisbon. He has published in poetry, Architecture of Silence (Lisbon, 2000—Revelation Prize of the Association of Portuguese Writers), seven capitals of the world (Lisbon, 2003), How to Leave a House (Coimbra, 2003—Portuguese and Castilian edition), A Little More On the City (Villanueva de la Serena, Spain 2004—Portuguese and Castilian edition) and The Place, The Image (also a bilingual edition). He has translated various Spanish, French and Flemish poets into Portuguese, has written essays on contemporary Portuguese poetry, traditional poetry and toponymy and has contributed to various Portuguese, Spanish and Brazilian magazines. His blog can be visited at alicerces1.blogspot.com.


BRIAN STRANG, co-editor of 26: A Journal of Poetry and Poetics, lives in Oakland and teaches English composition at San Francisco State University and Merritt College. He is the author of Incretion (Sputyen Duyvil) and machinations (a free Duration ebook) among others. i n v i s i b i l i t y, a special edition with drawings by Basil King, is forthcoming from Spuyten Duyvil. Recent poem/paintings can be seen at his site, Sorry Nature. His poem/paintings will be opening at Canessa Park Gallery in San Francisco on June 3rd.



Fonte: http://www.alicebluereview.org/six/six.html
Consulta: 29/6/2010
Ruy Ventura
(translated by Brian Strang)


[ Word for / word, a journal of new writing, issue #12: summer 2007 ]



from
How To Leave a House







stone—world
(for Palácios da Silva)



the stone accompanies
the shape of the world

the image grows, accompanies
all the city
and, some time later,
a stone is born
—a face,
a voice lost for so many years

the night keeps:
everything dies
above all the secret book
(the skin opens its pores)
a vein
the breathing, in the interior
of the stone
a pillar holds up the building

it disappears

the house remains on its feet—
a statue of sand
in a winter garden
the street is, at this moment, another
the world is woven
in the collision of another city

that grows






plan—photograph



I design a plan,
encounter spaces that no hand enlarged
or demolished
they divided the building at the top
so it would be easier to arrive
at the firmament
—an opening in the foliage
the design of a window
some voices singing

should I photograph everything?
the light is not at the desired intensity

for the first time
the stone is born again.
I hide your body in the vestiges of
the man
whose name disappears

I descend to the place where the earth
separates

the water corrects everything







road—forgetting



a single loquat tree stood
where you are now sitting—
this is the end of cities,
we change rooms but are not able to
change the house

the key placed on top of the table
the bread placed on the kitchen bench, the shirt on the shoulders of
the chair—the breathing
small number or perplexity

this afternoon—a ship
glass door which we dim little by little
a right handed thumb
like
a road descending to the river

special equilibrium
or storm—framed profile or

forgetting






face—image



the door disappeared—with the night
the image remained in the middle of the house
and the light
rises
so we can all see
its face

we sit
on the wall
resting the morning
or the shadow
in search of a photograph

on the return road
the sidewalk became
a labrynth
a painted tile

and inside of its design
a face

our own
image




Fonte: http://www.wordforword.info/vol12/Ventura.htm
Consulta: 29/6/2010
TRADUZIR UM POEMA
É ESCREVER UM POEMA NOVO?


Posiciono-me perante a tradução de poesia na qualidade de leitor e nunca como tradutor profissional que viaja permanentemente entre duas línguas. Interessam-me sobretudo as emoções e as experiências que recebo de uma construção poética. Há alguns anos que venho vivendo a comoção de um viajante que vai chegando a uma infinidade de mundos novos sempre que abre um bom livro de poemas. Hoje como ontem, vou seguindo por um caminho de amor em direcção às palavras – fazendo, quando é necessário, o transporte material para levar ao outro lado da fronteira linguística um pouco de maravilha, de pensamento, de angústia ou de reflexão.

Quando observamos o mundo interior e exterior que rodeia o nosso corpo, quando escrevemos o calor e o encanto, o horror e o desespero que esse mundo cria em nós, quando tentamos transpor para outra língua um poema que nos comoveu, nada mais fazemos do que uma leitura múltipla e irrepetível. Decompomos e recompomos o universo peculiar que nos rodeia, para criar neste mundo onde temos que habitar um pouco de beleza, ainda que estranha, dionisíaca e nocturna, difícil de compreender e de integrar nos alicerces da casa que habitamos.

Traduzir um poema é escrever um poema novo? Não sei responder a esta pergunta. Ninguém saberá talvez responder. É difícil raciocinar quando o objecto sobre o qual nos debruçamos foge de nós como areia entre as mãos.

Vladimir Nabokov, escritor bilingue que, como Fernando Pessoa, conheceu na vida o trabalho cimeiro da leitura – a tradução permanente –, indica num texto seu que somente a tradução literal é genuína, uma vez que apenas ela transmite rigorosamente o significado contextual do original. Desta forma, o leitor que traduz um poema apenas consegue fazê-lo quando procura uma fidelidade crescente que deseja completa. Caminha ao encontro de outra entidade: uma entidade dupla, corporal e verbal, que recebe no seu coração e tenta transmitir ao mundo com a máxima integridade. O tradutor despersonaliza-se. O tradutor sofre uma lenta mutação das suas células, a metamorfose do seu corpo total – ao realizar uma viagem total para que chegue sem mancha ao outro o objecto que guarda nas suas mãos. Para procurar comover o leitor do texto traduzido, como supõe que o poema original terá comovido os seus leitores ou os contemporâneos de sua criação, ou como emocionou o leitor que traduz.

Será isto possível? As dúvidas permanecem no pensamento. Tenho sempre na memória a certeza de que todas as palavras têm cinco sentidos e algumas contêm mesmo o infinito, como refere o Zohar. Quem poderá garantir que uma tradução é fiel ao original? É tão difícil quanto dizer com segurança que a leitura literária de um poema é fiel ao pensamento de quem o escreveu. O verbo poético engana, mente para criar uma verdade em cada leitor, uma verdade provisória e mutável. Noutra língua, o poema original é apenas um simulacro. O corpo pode ter a mesma estrutura, uma pele semelhante, mas os olhos e o cabelo têm já uma cor e um odor diferentes, os órgãos vitais trabalham de forma distinta, a melodia que produz modificou-se de forma inexorável.

Tudo se passa, suponho, como na literatura oral e tradicional, onde um texto original vai criando múltiplas versões, árvores diferentes que crescem da mesma raiz. Não creio que um poema bem traduzido seja um poema novo, separado do original. Tenho a convicção de que é um simulacro, uma representação desejada mas nunca concluída do objecto original.



(Apresentado, em espanhol, no encontro de poesia de Yuste.)

Fonte: http://www.arquivors.com/ruyvent5.htm
Consulta: 29/6/2010
ANOTAÇÕES




O ser humano não consegue suportar a abstracção, porque ela é ou se aproxima do vazio. Do mesmo modo, um hiper-realismo é perigoso, porque se torna na outra face da abstracção total, reduzindo a capacidade de multiplicação de sentidos, inerente a qualquer verdadeira produção artística. Concreto e abstracto, real e irreal são conceitos impossíveis de contornar, difíceis de delimitar e de definir. Seja como for, rejeito qualquer forma artística que limite o enriquecimento do mundo, só edificável na multiplicação infinita de sentidos através da Arte.



*



Tal como defendiam os cubistas, na poesia o importante não é narrar ou descrever o que vemos ou vivemos (a percepção, mesmo ficcionada, é sempre enganadora), mas introduzir, pelas palavras, uma quarta dimensão na realidade – a do pensamento –, seja ela transcendente ou de outra índole. Ao mundo (social, animal, objectual, humano) acrescenta-se outro mundo – que nasce do nosso conhecimento, empírico ou intuitivo, dessa realidade material ou imaterial, do nosso pensamento sobre o universo, da recepção irracional (?) da adesão de outros universos a esse mundo. A expressão – sem a qual nada existe ou se constrói – não se limita a imitar, a representar; exerce uma prospecção infinita sobre o sujeito escrevente, sobre o ambiente que o rodeia, quer exista quer não.



*



Na Arte – logo, na Poesia – a realidade não deve ser representada, mas investigada e apresentada, seja uma realidade tangível/visível/material ou uma realidade intangível/invisível/espiritual. Sobretudo, concretizar o inefável e procurar a “espiritualidade” do mundo concreto. Concretizar o concreto ou espiritualizar o inefável é chover no molhado, empobrecendo a Arte.



*



Uma realidade transcendente pode (e deve) concretizar-se em actos e símbolos mediadores, para favorecer a comunicação, isto é, a comunhão vertical e, de seguida, a horizontal. Não pode (nem deve) submeter-se à imanência, à matéria, à utilidade, ao poder autoritário: desaparece, passando antes pela explosão e/ou pela erosão. Religião, Arte, Poesia, Filosofia podem correr este risco – e correm-no todos os dias. Vale-lhes a heterodoxia dos vencidos...



*



É preciso descalçar os poemas, mesmo que os pés sejam feios. Evite-se no entanto tirar as botas quando a falta de limpeza lançará para o leitor somente um intenso mau cheiro.



*



A poesia é para comer (dizia, tanto quanto me lembro, Natália Correia). Logo, a poesia é um alimento. Nesta refeição espiritual, teremos contudo de comer obrigatoriamente apenas sopa (realismo, naturalismo, imanentismo...), por melhor que seja? E os pratos de peixe e de carne? Quem proclama que só a sopa é comestível e aceitável, quer reduzir os leitores à condição de utentes da “Sopa do Sidónio”, ou seja, da “Sopa dos Pobres”...



*



Cada vez me repugna mais a cedência à erosão no entendimento poético. Já que as pessoas (quem?) não entendem a metáfora nem os símbolos, então temos de dar-lhes coisas “simples”, que de tão “simples” se tornam simplórias... Está a acontecer à poesia o mesmo que já sucedeu ao romance? Banalização?
Um novo paradigma? Duvido. Se for, caminha no mau sentido.



*



Atracção-repulsa sempre que vou a uma livraria e me aproximo das estantes com livros de poesia. Medo do encontro e das suas limitações? Não. Percepção da periferia.



*



Por que me sentirei cada vez mais enojado quando ouço ou leio as palavras “poesia” e “poeta”? Talvez por vê-las emporcalhadas, metidas no balde da grande confusão onde tanta gente (por ingenuidadade, por miopia, por relativismo ou por maldade) não consegue distinguir a merda do estrume. Que fazer? Não sei.



*



Imaginar a partir da realidade e da sua leitura ou construir imagens apenas numa elaboração mental abstracta, desligada? Alguns querem obrigar-nos a escolher... Mas será preciso?



*



Pratico uma arqueologia que me faz enquanto ser no espaço a que pertenço. Nomes, vestígios materiais, sabores, sentimentos – encontro de tudo enquanto escavo o mundo que me rodeia e o microcosmos que sou. Nada me pertence, mas tudo me pertence a partir do momento em que decido desvelar ou exumar o que antes estava escondido, adormecido, esquecido ou, mesmo, morto. Somos nós os agentes da descoberta e/ou da ressurreição possível – porque, como um dia escreveu Fernando Batalha, “a grande aventura é no interior que se desenrola”.



*



Destilaria de milhares de leituras (muitas sem nada a ver com a poesia, outras bem longe dos livros ou da palavra escrita), a aguardente que deito do alambique, frouxa ou forte, é o resultado da fermentação e cozedura de sedimentos acumulados sobre a voz e sobre o pensamento.
Dívidas, tenho muitas – tantas sem saber a quem. Fora e dentro dos livros, sei que nunca conseguirei pagar os empréstimos contraídos voluntária ou involuntariamente.
Nem xamã nem periodista, aborrece-me sempre a monotonia das vias-rápidas e das auto-estradas. Tento caminhar por percursos variados e compósitos. E se gosto de deambular por praças e avenidas, sinto-me melhor quando percorro ruas e travessas, quando atravesso com vagar quelhas e veredas pouco frequentadas.


Fonte:
http://www.triplov.com/poesia/ruy_ventura/2007/anotacoes.htm
(consulta: 28/6/2010)