INSTRUMENTOS DE SOPRO
Acaba de ser publicado nas edições Sempre-em-Pé, sediadas em Águas Santas (Maia) e responsáveis pela revista de poesia DiVersos, o novo livro de Ruy Ventura, intitulado Instrumentos de Sopro. Esta colectânea de poesia do autor de Chave de Ignição está integrada na colecção UniVersos, contando com um prefácio do poeta brasileiro C. Ronald e com uma capa criada a partir de um óleo do pintor Nuno de Matos Duarte.
O livro agora publicado nasce da colectânea intitulada El lugar, la imagen, editada em Espanha pela Editora Regional da Extremadura no ano 2006, com tradução para castelhano de Antonio Sáez Delgado. Os poemas aí incluídos fazem agora parte da segunda secção do livro, que surge ladeada por mais dois volantes, um prólogo e um epílogo.
*
Antes do texto, existe por vezes um pretexto. No texto nada existe, contudo, para além do verbo, do sentido que ele multiplica infinitamente, em autonomia ou total independência. Mas, se um objecto artístico rapidamente se separa da alavanca que lhe deu origem, dificilmente pode esquecê-la. Não sendo tópicos ou ecfrásticos os textos publicados neste livro, Ruy Ventura não esconde os elementos materiais (povoações, lugares, casas, igrejas, castelos, sítios e achados arqueológicos, esculturas e pinturas) que convulsionaram as palavras, obrigando-as a organizarem-se numa estrutura rítmica, semântica e simbólica tornada poema.
Segunda afirma na nota final do livro, os poemas da primeira parte não existiriam sem Portalegre, Nazaré, Carriagem, Dargilan, Montpellier-le-Vieux, Baságueda, a serra da Gardunha, a serra da Malcata, Carrazedo de Montenegro, Meimoa, Britiande, Lisboa (estação de Sete Rios), a serra de Castelo de Vide depois de um incêndio, uma barragem perto de Penamacor e o vale do rio Tejo, entre Amieira e as Portas do Ródão.
Instrumentos de sopro do painel central deste livro foram, de algum modo, várias esculturas marianas existentes em Portalegre, Bordeira, Guadalupe e Carrapateira, bem como uma moeda romana encontrada em Carreiras (Portalegre), a estela de Lutatia Lupata (Museu de Arte Romana, Mérida), a escultura “D. Sebastião” de João Cutileiro (Lagos), uma casa em Arronches, os alabastros de Nothingham (Museu de Arte Antiga, Lisboa), a catedral de Santiago de Compostela, a fortificação de La Couvertoirade, o “Poço d’ El-Rei” (Penamacor), o castelo e capela românica de Monsanto da Beira (Idanha), um presépio efémero (Carreiras), o castelo e judiaria de Valencia de Alcántara, a casa de José Régio (antiga igreja de S. Brás, Portalegre), uma “Santíssima Trindade” (Bemposta, Penamacor), o forte de Santa Maria (Portinho da Arrábida, Azeitão), o lugar onde terá existido o castelo de Carreiras, a torre-mirante das Jerónimas (Trujillo), o castelo de Sesimbra, o “Mártir Santo” velho da igreja de Carreiras, a anta do Patalim (entre Montemor-o-Novo e Évora), a igreja de Notre-Dame de l’ Espinasse (Millau), o “ribat” da Arrifana (Aljezur), uma escultura mutilada da igreja de São Pedro de Pomares (Beja), a igreja profanada de São Julião (Lisboa), a igreja incendiada de São Domingos (Lisboa), a torre de Saint-Jacques (Paris), uma pia baptismal hoje transformada em bebedouro (Carreiras) e as esculturas de José Aurélio intituladas “Pás de Vento, Ventos de Paz”, vistas em Almada.
Na terceira parte, são – segundo afirma – fragmentos de um retábulo interminável e infinito um óleo carreirense de Maria Lucília Moita, um “São Miguel salvando as almas do Purgatório” existente na igreja de São Sebastião de Carreiras, um carvão de João Salvador Martins, duas pinturas de Nicolau Saião, o “Ecce Homo” de um anónimo flamengo (Museu de Arte Antiga, Lisboa), “O Parlamento, trespassado pelo sol no nevoeiro” de Claude Monet, as pinturas de Francisco de Zurbarán que envolvem a sacristia do mosteiro de Guadalupe, uma fotografia de Diogo Pimentão, “WTC” de Jorge Martins e algumas aguarelas de Julio.
O subtítulo de Instrumentos de Sopro, “[inscapes]”, é uma homenagem ao poeta britânico Gerard Manley Hopkins. O livro é dedicado a Fernando Guerreiro e aos poetas espanhóis Álvaro Valverde, Antonio Reseco e José María Cumbreño.
FERNANDO GUIMARÃES
“O leitor encantado da casa” in Jornal de Letras, nº. 1029, de 10 a 23 de Março de 2010: 25-25.
[Recensão sobre livros de Fernando Hilário, Ana Luísa Amaral, Maria Vitalina Leal de Matos e RV.]
[…]
Chave de Ignição é o quarto livro de Ruy Ventura – acrescente-se: editado em Portugal, porque também saíram duas obras suas em Espanha – o qual vem acompanhado por um breve texto introdutório de Gonçalo M. Tavares.
Justamente, Ruy Ventura considera que o seu livro deve ser lido “como uma estrutura fechada”, embora, também de acordo com o seu ponto de vista, apresente uma continuidade com os livros publicados anteriormente. Talvez na presente obra se faça sentir menos a contenção que tanto marcava os poemas de um livro bilingue editado em Espanha e intitulado El lugar, la imagen, para o qual chamei a atenção há tempos nestas crónicas.
Agora, no presente livro, há uma maior expansão verbal, a qual, no entanto, pode tender para imagens que dão ao poema uma grande densidade ou, em contracorrente, para aqueles lugares claustrofóbicos onde “o silêncio revela o silêncio”. Veja-se, por exemplo, esta passagem de um longo poema:
deposito esta cinza nessas mãos.
queimo talvez as linhas, os músculos, a pele.
comungo deste pão e deste vinho.
traslado espinhos rasgando
fronteiras, paredes, sílabas –
a circulação do corpo
nesta alma, neste sopro –
e o infinito voo
nas entranhas
dessa ave
desenhada pelo mar.
“O leitor encantado da casa” in Jornal de Letras, nº. 1029, de 10 a 23 de Março de 2010: 25-25.
[Recensão sobre livros de Fernando Hilário, Ana Luísa Amaral, Maria Vitalina Leal de Matos e RV.]
[…]
Chave de Ignição é o quarto livro de Ruy Ventura – acrescente-se: editado em Portugal, porque também saíram duas obras suas em Espanha – o qual vem acompanhado por um breve texto introdutório de Gonçalo M. Tavares.
Justamente, Ruy Ventura considera que o seu livro deve ser lido “como uma estrutura fechada”, embora, também de acordo com o seu ponto de vista, apresente uma continuidade com os livros publicados anteriormente. Talvez na presente obra se faça sentir menos a contenção que tanto marcava os poemas de um livro bilingue editado em Espanha e intitulado El lugar, la imagen, para o qual chamei a atenção há tempos nestas crónicas.
Agora, no presente livro, há uma maior expansão verbal, a qual, no entanto, pode tender para imagens que dão ao poema uma grande densidade ou, em contracorrente, para aqueles lugares claustrofóbicos onde “o silêncio revela o silêncio”. Veja-se, por exemplo, esta passagem de um longo poema:
deposito esta cinza nessas mãos.
queimo talvez as linhas, os músculos, a pele.
comungo deste pão e deste vinho.
traslado espinhos rasgando
fronteiras, paredes, sílabas –
a circulação do corpo
nesta alma, neste sopro –
e o infinito voo
nas entranhas
dessa ave
desenhada pelo mar.
Eduardo Pitta
“Livros do Trimestre” [sobre a antologia Anos 90 e Agora, 3ª edição, Quasi Edições] in Ler, nº 64, Outono de 2004: 103.
"Anos 90 e Depois, em 2004", in Aula de Poesia, Lisboa, Quetzal, 2010: 159-163.
[...]
Em matéria de revelações, quero sublinhar os nomes de Ruy Ventura e Tiago Araújo, nascidos ambos em 1973. Ventura esquiva-se à ladainha contemporânea: “primeiro a casa [...] primeiro a casa, depois a serra [...] a voz traçando do outro lado linhas / e degraus curvas e desníveis / ao encontro de um corpo inteiramente / desfeito nas linhas de uma tela – / mas todos os corpos se desfazem para novamente / construírem a sua própria circunferência [...] ao mesmo tempo / luz e interpretação da luz” (pp. 410-411).
[...]
“Livros do Trimestre” [sobre a antologia Anos 90 e Agora, 3ª edição, Quasi Edições] in Ler, nº 64, Outono de 2004: 103.
"Anos 90 e Depois, em 2004", in Aula de Poesia, Lisboa, Quetzal, 2010: 159-163.
[...]
Em matéria de revelações, quero sublinhar os nomes de Ruy Ventura e Tiago Araújo, nascidos ambos em 1973. Ventura esquiva-se à ladainha contemporânea: “primeiro a casa [...] primeiro a casa, depois a serra [...] a voz traçando do outro lado linhas / e degraus curvas e desníveis / ao encontro de um corpo inteiramente / desfeito nas linhas de uma tela – / mas todos os corpos se desfazem para novamente / construírem a sua própria circunferência [...] ao mesmo tempo / luz e interpretação da luz” (pp. 410-411).
[...]
LLAVE DE IGNICIÓN
comulgo un fuego inmenso esta noche.
sin voz. sin tiempo.
devoro esta salada carne
por el soplo que arrulla el mar
y las montañas.
abro estas alas. bebo sin cesar
el néctar y el corazón. ninguna sombra
nos protege. el sol y el agua queman
la superficie de este cuerpo
en que la negra flor
traslada de raíz el aroma de esta luz
que pocos ven.
dibujo en el poema los rincones
de esa casa que habitamos.
abro la puerta cuando menos espero.
entro con la sed de quien vio esa noche
el fuego devorando el sol y el alma.
muero y resucito.
como quien visita un santuario.
el árbol establece el eje y el camino.
pero todo el itinerario te pertenece
en ese cuerpo sin vida
porque otra vida recupera:
madera eterna que nunca encontraré.
cuerpo y sangre
transcriben otra imagen.
viento y sombra de viento. la modulación del
vientre entre los dedos, sobre la lengua.
gloria y desesperación.
la saudade cava esa sepultura
donde encontraremos, más tarde,
el eréctil vaso que un día allí depositamos.
discreta, va cavando a nuestro alrededor
una fosa donde vamos protegiendo
la vida entera.
sobre el bosque elevaron durante la noche
esa roca que
un día vino a nuestro encuentro.
recibes en tu pecho esa luz.
dibujas conmigo el espíritu
que despierta otras voces
que nunca sabremos descifrar.
elevas ese grito como ala.
comulgas esta noche un fuego inmenso.
sin voz. sin sangre. sin cuerpo.
resguardas conmigo
la sombra, la saliva, la serpiente.
escribe el frío, una nube
alcanzando la colina.
ninguna sombra nos protege.
dibujo los rincones de ese cuerpo
engullido por el mar.
los cimientos guardan fragmentos
de otro viaje. fragmentos de tiempo:
sangre seca que el tiempo no quiso borrar.
la carne conserva esa voz. esa sangre.
un cuerpo nace. un cuerpo nace
para que yo pueda morir.
Chave de ignição. Editora Labirinto, 2009.
Tradução de Marta López Vilar publicada em http://laberintodepapel.blogspot.com/2010/03/llave-de-ignicion.html
comulgo un fuego inmenso esta noche.
sin voz. sin tiempo.
devoro esta salada carne
por el soplo que arrulla el mar
y las montañas.
abro estas alas. bebo sin cesar
el néctar y el corazón. ninguna sombra
nos protege. el sol y el agua queman
la superficie de este cuerpo
en que la negra flor
traslada de raíz el aroma de esta luz
que pocos ven.
dibujo en el poema los rincones
de esa casa que habitamos.
abro la puerta cuando menos espero.
entro con la sed de quien vio esa noche
el fuego devorando el sol y el alma.
muero y resucito.
como quien visita un santuario.
el árbol establece el eje y el camino.
pero todo el itinerario te pertenece
en ese cuerpo sin vida
porque otra vida recupera:
madera eterna que nunca encontraré.
cuerpo y sangre
transcriben otra imagen.
viento y sombra de viento. la modulación del
vientre entre los dedos, sobre la lengua.
gloria y desesperación.
la saudade cava esa sepultura
donde encontraremos, más tarde,
el eréctil vaso que un día allí depositamos.
discreta, va cavando a nuestro alrededor
una fosa donde vamos protegiendo
la vida entera.
sobre el bosque elevaron durante la noche
esa roca que
un día vino a nuestro encuentro.
recibes en tu pecho esa luz.
dibujas conmigo el espíritu
que despierta otras voces
que nunca sabremos descifrar.
elevas ese grito como ala.
comulgas esta noche un fuego inmenso.
sin voz. sin sangre. sin cuerpo.
resguardas conmigo
la sombra, la saliva, la serpiente.
escribe el frío, una nube
alcanzando la colina.
ninguna sombra nos protege.
dibujo los rincones de ese cuerpo
engullido por el mar.
los cimientos guardan fragmentos
de otro viaje. fragmentos de tiempo:
sangre seca que el tiempo no quiso borrar.
la carne conserva esa voz. esa sangre.
un cuerpo nace. un cuerpo nace
para que yo pueda morir.
Chave de ignição. Editora Labirinto, 2009.
Tradução de Marta López Vilar publicada em http://laberintodepapel.blogspot.com/2010/03/llave-de-ignicion.html
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