[de Stefan Zweig, en mitad del Atlántico]




arde la lengua. quemando
corazón, venas y células.
entre dos árboles, la cuerda
que aprieta la garganta. disuelve el anillo y la saliva —
esa melodía
en el interior del drago.



siempre de negro, se propaga el incendio.
sube la escalera, coloca en los ojos esa espada.
arde la lengua. deja entre las cenizas
vestigios de sombra. nada más encuentro
entre los escombros. antes del derrocamiento
llevo lejos la última gota de sangre.
la saliva repleta la desesperación,
el soplo del océano.



me quedo a este lado, junto al miedo.
intento salvar la última frontera.
en la falda de la montaña dejé este libro.
consigo leer. los símbolos,
con todo, tienen poca nitidez —
incluso cuando los entiendo.



arde la lengua. los acompaña la llama
en este infierno. la llama deshace
los huesos y el cabello, el anillo
y la melodía donde navegar procuro.



¿de qué sirve cruzar el horizonte
si la ceniza guarda frutos y palabras?



se propaga el incendio
de este lado del océano. la sal lava el cuerpo
y el lenguaje. el fuego devora la distancia.
este fuego



encuentra en el corazón

(¿en la tierra?)
esa ave nacida al inicio.


Tradução de Ángel Gómez Espada
Publicada aqui: http://www.elcoloquiodelosperros.net/numero27/esp27ru.html
(revista El Coloquio de los Perros, nº 27: http://tucuman846.blogspot.com/2010/10/el-coloquio-de-los-perros-n-27.html)
Tentativa de Arte Poética






Sendo a Poesia uma contraliteratura, logo um elemento edificador de uma demanda contracultural, a Arte produzida por quem escreve terá sempre uma dimensão de confronto. Antes de mais, um confronto com a linguagem enquanto instrumento comunicativo. Depois, uma luta permanente com a sociedade que usa essa linguagem e expulsa do seu corpo todas as presenças estranhas e estranhantes. Por fim, uma batalha ininterrupta contra a tradição expressiva da comunidade.

Não significa isto que a Poesia seja uma Arte desenraizada. Quem escreve tem as raízes na terra a que pertence, está consciente da presença dessas raízes, sabe usá-las para viver e segurar-se contra os vendavais e os terramotos da existência. Apesar disso, tudo arranca, tudo expõe, tudo subverte – porque conhece a distância entre a Poesia e a versificação, entre o Espanto e a monotonia, entre o Mistério e a previsibilidade, entre a Ruptura e a continuidade.



*



Nos poemas que venho escrevendo tento descrever destruindo a descrição, narrar destruindo a narração. Mais do que poeta, considero-me um investigador do avesso do mundo material e imaterial que me rodeia. Defendo que a Poesia não serve para representar a realidade nem para contar (historiar) a mundividência dos seres humanos, mas apenas – e é bastante – para apresentar as rupturas, as fendas e as fugas abertas na crosta que nos sustenta e nos dá forma corporal animada. Aborde uma matéria tangível/visível ou uma realidade intangível/invisível, tento que a minha poesia seja a concretização do inefável e, simultaneamente, a revelação da “espiritualidade” do mundo concreto. Concretizar o concreto ou espiritualizar o inefável é chover no molhado, empobrecendo e destruindo a Arte. Deturpando as palavras de um poeta espanhol, é preciso aliarmos às coisas existentes, mas mortas, as coisas inexistentes, mas vivas. Nem concreto nem abstracto são propriamente poesia, dizia Vitorino Nemésio. A Poesia será sempre “outra coisa”, um “não sei quê”; pertencerá sempre ao domínio da indeterminação.



*



Como qualquer outro ser escrevente, sou um ser contaminado. Não falo de influências à maneira de Bloom, pois ressumam hierarquia – e, ao fim e ao cabo, todos os autores criam os seus antepassados, como escreveu Jorge Luis Borges. O poeta brasileiro Márcio-André diz bem: “A contaminação não parte de um princípio de troca hierárquica entre um contaminador e um contaminado; na verdade, ambos se contaminam mutuamente. […] só podemos ser contaminados por algo que já esteja dentro de nós, ainda que enquanto possibilidade.” Devo, contudo, muito mais à pintura e à escultura que vi até hoje, aos reinos animal, vegetal e mineral com que me venho deparando – do que à Poesia que venho lendo desde que me lembro. Por mais que admire a poesia tradicional e as obras de Homero, Horácio, Ovídio, Dante, Holderlin, Mallarmé, Rimbaud, Rilke, Eliot, Pessoa, Teixeira de Pascoaes, Nuno Guimarães, Carlos de Oliveira, Maria Gabriela Llansol, C. Ronald ou Fernando Echevarría – quem quiser entender os veios estilísticos por onde corre a água dos meus poemas terá de observar com atenção toda a pintura medieval, os quadros de Giotto, Luis de Morales, Zurbarán, Friedrich, Domingos António Sequeira, Ciurlionis, Kandinsky, Chagall ou Hundertwasser, a arte esquemática pré-romana, a escultura flamenga dos séculos XV e XVI, os retábulos maneiristas e barrocos de origem espanhola e portuguesa, a arte popular saída da mão de barristas e entalhadores provenientes de todos os cantos do mundo. Terá ainda de vislumbrar as serras de Gredos, da Arrábida e de São Mamede (envoltas no nevoeiro, no silêncio e, por vezes, nas chamas dos incêndios), o mar que bate das falésias de Sagres e de Aljezur, a largueza dos carvalhos e dos sobreiros.

Nada existe, tudo coexiste. Bernardo Soares tinha razão.
SOBRE A POESIA
DE JOSÉ MARÍA CUMBREÑO
(revista Triplov de Artes, Religiões e Ciências - nova série, nº 8/9, 2010)


Num interessante e descomprometido ensaio, publicado no México em 2006 [UNICACH, Chiapas], o poeta Luis Arturo Guichard observou em Espanha algumas linhas de força que vêm dando forma e conteúdo à sua poesia recente. Com sábia ironia, chegou à conclusão de que no mar poético da pátria de Cervantes desaguam águas de um “culteranismo temperado” e de uma “confusa experiência”, lado a lado com “assomos de infinito”, indecisas “vanguardas” e o recorrente “peso da tradição”. Navegando por todas estas linhas de água, acaba por concluir que, na actualidade, se vem esbatendo a confrontação sectária entre estas posições estéticas: “os cultos e herméticos novíssimos parecem aproximar-se cada vez mais da experiência quotidiana e de discursos menos espalhafatosos e os experienciais, mais ou menos continuadores da poesia civil e coloquial, chegam-se cada vez mais à pesquisa da linguagem e ao poema pelo poema. Entre uns e outros, os matizes são variados e saudáveis: não falta felizmente o humor, nem tampouco aventuras alicerçadas na mística ou na filosofia. A luta entre as escolas, que nalguns momentos chegou a ser bastante sectária, deu lugar a poetas que escrevem livremente.” (p. 113, tradução nossa). Assim se vem fazendo o caminho Hacia el equilibrio, expressão escolhida aliás pelo autor para nomear a sua abordagem.

José María Cumbreño, entendendo bem o quanto é benéfico este equilíbrio para a Arte nascida das palavras em direcção ao Verbo, vem produzindo desde o fecho do século XX uma poesia que corporiza bem uma linha estética que sabe fermentar todos os frutos de um passado poliédrico (por vezes contraditório e conflitual) para deles destilar o melhor néctar. Tem consciência de cumprir um papel determinante na corrida de estafetas que é a literatura, servindo de correia de transmissão num movimento incessante, não negando a recepção do testemunho, de modo a poder entregá-lo melhorado aos vindouros, como desejava Miguel Torga. Dito doutro modo, o autor de Estrategias y Métodos para la Composición de Rompecabezas, sabe que não pode parar a construção da “Cerca de Pedra”: “O meu avô pôs uma pedra / sobre a pedra / que havia posto seu pai. // O meu pai pôs uma pedra / sobre a pedra / que havia posto meu avô. // Limite. Fronteira. // Eu tenho uma pedra na mão” (pp. 19 e 21). E é com essa “pedra na mão” – pedra angular na construção de um edifício que já conta com vários títulos – que Cumbreño se apresenta numa obra encadeada, coerente, porque “A semente que se planta num poema germina no poema seguinte” (p. 45).

Ao denominar Teorias da Ordem a sua antologia publicada em Portugal, José María Cumbreño quis sintetizar a sua poética. Separando a narrativa da poesia, ao afirmar que “Os romances [se] escrevem […] com a mão direita” e os poemas “com a esquerda” (p. 85), aproxima quem escreve da figura de Penélope, que “não tecia e destecia: / tecia para destecer” (p. 107). Neste jogo constante de elevação e fracasso, de construção e demolição, obriga-se a reconhecer que “O destino da poesia é a linguagem matemática, cheia de limites, equidistâncias e incógnitas por resolver” (p. 59). Tal como acontece na pintura, o mundo representado ao longo dos versos (se algo neles se representa) interessa pouco ou nada, uma vez que “A maneira de pintar / é o próprio quadro” (p. 15). O papel do leitor não se pode separar assim da surpresa e da perplexidade; se o poema se confunde com o “quebra-cabeças”, o seu sentido, “em condições normais / de pressão e temperatura, / […] traz[-nos] / não o que pouco a pouco / se vai demonstrando, / mas aquilo que os intervalos não demonstram” (p. 19). E se um texto parece transparente, claro, não nos esqueçamos de que a sua essência não andará longe da de um “copo”, que nunca terá “transparência”, mas apenas imitação da do “líquido que contém” (p. 21). Entre partir e ficar, entre “tecer” e “destecer”, o texto escrito por intermédio do poeta torna-se operativo, “obra” modificadora, ao agir sobre o mundo, mesmo que indirectamente. Se “A luz, à medida que a vidraça / a ia filtrando, / [se] convertia[…] em palavra de Deus” (p. 109), cabe ao escrevente “Reciclar, reutilizar, recuperar” e, sobretudo, “Escorar, restaurar, reforçar” (p. 109). Dois triângulos verbais que – apontando para a escrita incessante praticada por um ser que (não recusando Ulisses e o seu movimento linear) se revê sobretudo em Penélope e no seu movimento de eterno retorno, rumo ao júbilo final – acabam por assumir que são essas “fórmulas matemáticas”, esses “quebra-cabeças”, esses poemas, a “[definirem] as proporções da utopia” (p. 111).

Se “Muito da feitura do mundo […] consiste […] em separar e reunir; por um lado, em dividir totalidades em partes […], traçar distinções; por outro lado, em compor totalidades […] a partir de partes […] e fazer ligações” – como escreve Nelson Goodman em Modos de Fazer Mundos (1978) – (ou seja, em “Reciclar, reutilizar, recuperar” quanto nos rodeia através da palavra), José María Cumbreño tem consciência na sua poética de que os poemas não são a vida, mas substitutos da vida, porque a “ordem” (a estética) que pretende teorizar é “combinatória e fábula, / inventa-se. / É um mecanismo de ficção / que, por sua vez, cria ficções”, urdindo “redes imaginárias / que pescam vidas reais” (p. 71). Para este escritor nascido na Extremadura espanhola, o poema (o verdadeiro, aquele que não é apenas mero empilhamento de versos com maior ou menor devoção epigonal) será sempre “o resultado da multiplicação do silêncio por si mesmo” (p. 91), ou – como defende o poeta americano neo-surrealista Andrew Joron – a viagem do grito ao zero, ao nada, ao intangível e ao impronunciável.

A leitura da produção de José María Cumbreño pode provocar em nós uma sensação de estranheza. Se por vezes nos deparamos com alguns textos aparentemente próximos da produção dalguns radicais do neo-naturalismo, logo ao seu lado surgem outros cuja pseudonarratividade é matizada por imagens heteróclitas, distantes do mundo observável e representável, ombreando com poemas cujo motor parece ser a reflexão filosófica ou metaliterária, dando por vezes origem a sentenças, aforismos e/ou “greguerías”. Num mesmo livro podemos colher ecos remotos e olhares próximos de nós no tempo (inclusivé com conotação política), frases coloquiais e expressões cuja raiz se afasta da comunicação diária entre seres humanos sem literatura. Chegamos a ter a sensação de estar na presença de antologias de vários poetas que, por motivos desconhecidos, assinaram todos com a mesma designação autoral.

São assim os frutos da sua poesia feita de equilíbrios, por isso mesmo funâmbula, que ora se aproxima ora se afasta das várias tendências estéticas correntes entre os seus compatriotas produtores de versos. E isso mesmo a torna tão interessante, na sua falsa incoerência, produtora de uma diversidade que pode desorientar os leitores mais habituados à monotonia, mas satisfaz quantos não viajam apenas pelas auto-estradas, mas se aventuram por caminhos pouco frequentados, procurando autores heréticos em relação aos dogmas estabelecidos pelos Romas que tudo nivelam por baixo (como bem retratou Eça de Queirós no seu romance A Capital).

Nascido em 1972 na cidade de Cáceres, onde ainda hoje reside, com textos espalhados por várias revistas e poesia (em verso ou em prosa) publicada em livros como Las ciudades de la llanura (Editora Regional de Extremadura, 2000), Árboles sin sombra (Algaida, 2003), De los espacios cerrados (Fundación José Manuel Lara, 2006), Estrategias y métodos para la composición de rompecabezas (El Bardo, 2008) e Diccionario de dudas (Calambur, 2009) ou na antologia Teorias da Ordem (Edições Sempre-em-Pé, 2009), José María Cumbreño é uma das vozes que mais me interessam na poesia espanhola dos nossos dias. Feita de fragmentos de seres, de espaços e de memórias, que se combinam de forma por vezes inusitada, sem esconder o seu carácter de estilhaços e de escombros provenientes de uma catástrofe verbal, logo existencial, a sua poesia interpela-nos e inquieta-nos com uma ironia discreta, matizada pela nostalgia de quem vê o mundo por um espelho retrovisor. Porque, num mundo como o nosso, é preciso ter a coragem de “Beber de um copo partido. / Acalmar a sede, mesmo com o risco de conhecer a ferida” (p. 73). Porque, mais tarde ou mais cedo, os estilhaços provocados pela catástrofe chegarão ao coração.


NOTA: Todas as citações transcritas foram retiradas da antologia Teorias da Ordem, publicada em Junho de 2008 pelas Edições Sempre-em-Pé (Águas Santas), com tradução nossa a partir do espanhol. Os poemas de José María Cumbreño aqui publicados são traduções inéditas a partir do poemário Diccionario de Dudas (Calambur, 2009).







POEMAS DE
JOSÉ MARÍA CUMBREÑO







DICIONÁRIO DE DÚVIDAS

O transcurso e a ordem,
a sua continuidade,
são matéria simbólica.

JENARO TALENS



Unindo com um lápis
linha de pontos
conseguia ver-se uma figura
(quase sempre um globo,
um palhaço ou uma flor).
De seguida, devíamos pintá-la.

O sujeito faz.
Ao objecto fazem-no fazer.

As correspondências marcam
duas distâncias.
E as duas imaginárias.
A partitura explica-se
por oposição ao silêncio.

Ordem e desordens.
Princípio e desenlaces.

As listas, os inventários
e as classificações
usam-se no fundo
para não termos tanto medo.

Enquanto se traça um círculo
conhece-se a calma.

O termo definido
não deve ser incluído na definição,
o que significa pedir
que a água limpe sem molhar
ou que o amor dê sem tirar.

Ordem e desordens.
Singular e plural
não assinalam quantidades diferentes.

Conforme o lado
de que se lê o símbolo,
uma palavra
origina a que a segue
ou deriva da seguinte.

Muitas explicações juntas
têm demasiada aparência de mentira.

Que a forma mais perfeita
seja a do zero
talvez não signifique nada
a não ser que a minha imperfeição
lhe outorgou um significado.

O olho não vê:
produz o que observa.

Apontar as dúvidas num caderno,
colocar uma atrás da outra,
ajuda-me a dormir,
sabendo que me tranquilizo
com um engano,
porque, quando se esteve certo tempo
inventando limites
para a incerteza,
acaba por não se distinguir
a verdade da retórica.

Há também quem caminhe
com a preocupação de não pisar
a junção dos ladrilhos
ou quem não atravesse a rua
até que passe um carro vermelho.

Os pontos cardeais não existem
a não ser que o vento
se misture com o cata-vento.

As frases, supõe-se,
possuem um sentido completo.
E no entanto algumas frases
ninguém chega a entendê-las por inteiro.

O cata-vento e o vento.
O lápis e a mentira.

Pontos que compõem uma linha.
Linhas que compõem uma figura.

Um princípio. Vários desenlaces.

Quem pousa nas fotografias
não olha para nós:
olha algo que nós não vemos.








NOCTURNOS



I
Não tenho a certeza de que as estradas, à noite, conduzam aos mesmos lugares a que levam de dia.

II
Negro sobre negro: a redundância de apagar a luz e, depois, fechar os olhos.

III
Ensimesmados, olhando o fogo.

IV
Negro sobre negro: atrever-se a dizer (de novo) alguns nomes em voz alta.

V
Dependendo do tempo que se mantenha na boca, a água ou mata a sede ou afoga.

VI
Qualquer modo de combinar o remorso e a culpa.

VII
Se a escuridão se identifica com o mal, por que haverá flores que apenas abrem quando anoitece?






PARÁBOLAS

1. O semeador decidiu atirar todas as sementes à água.
2. O pastor descobriu que dava muito maior rendimento guardar um rebanho de lobos.
3. O compassivo samaritano deu golpe de misericórdia ao moribundo seguinte.
4. O fariseu vendeu a sua mulher ao publicano.
5. O filho pródigo esqueceu para sempre o caminho que o reconduziria a casa.





LER E ESCREVER

O verdadeiro escritor prefere ler a escrever.






CORRESPONDÊNCIAS

Qualquer correspondência,
esquecida a sua origem,
acaba por criar um símbolo.

E os símbolos não existem: representam,
simulam uma ordem imaginária.

Fora do tabuleiro,
o peão nega-se a cumprir
as ordens do rei.






AUTOMÓVEL

Veículo conduzido por pessoas com má memória.
Cinco mudanças para avançar e uma apenas para retroceder.






METAMORFOSE

Os ditadores convertem-se em ex-ditadores.
Os ex-ditadores em senadores vitalícios.
Os senadores vitalícios em velhos inofensivos.
E os velhos inofensivos, finalmente, acabam por perder a memória.






MÚSICA PARA CASTRATI

Antes castravam-se as pessoas para que a sua voz
soasse melhor; agora, para que não soe.


ÁNGEL CRESPO



Se escrevesse que leio
na direcção contrária àquela em que escrevo,
ou não seria certo que leio
ou não seria certo que escrevo
ou ambas as coisas estariam certas
ou nenhuma.

Em qualquer caso,
a verosimilhança do argumento
tem muito mais a ver
com as contradições
do que com as evidências.

Do mesmo modo que o caminho ascendente
deve mais às curvas
do que às rectas.

Os livros haveria que começá-los
pelo final.

Entre o zero e o nove
ocorrem todas as variantes
do limite e do infinito.

Contar e perder a conta.
Melhor ainda,
contar até perder a conta.

Porque a escala não ordena notas,
mas apenas cifras e silêncios.

Um número dividido por si mesmo.

A melancolia
é uma incógnita sem solução.
E é precisamente a melancolia
a matéria dúctil e estranha
de que se faz a música.

Houve soldados que,
enquanto agonizavam,
começaram logo
a sussurrar, delirando,
a letra das canções de embalar
que as suas mães lhes cantavam.

De noite as portas
fecham-se por dentro.

Aos indecisos repetia-se-lhe
(o poder consegue-se
com figuras de retórica)
uma fábula de renúncia e pureza:
a poda sacrifica alguns ramos
para que o resto da árvore
conheça a altura.

A diferença entre nós e eles
enraíza-se em nós termos
uma faca.
E eles não.

O flautista continua a tocar
para receber algumas moedas.

Os actores, é certo, mentem de memória.
Mas o público, que pagou
o bilhete, sabe que são actores.

No entanto, ainda que a função
não nos agrade e nem sequer
tenhamos ido ao teatro,
nunca deixaremos
de pagar ao flautista.

De novo outra fábula.

Os instrumentos de sopro
deformam a boca.

O mal menor não existe.

Posso dizer que leio
na direcção contrária àquela em que escrevo
ou posso de verdade ler ao contrário
o que já está escrito
e ter assim a audácia
de dar a volta ao argumento
desta narrativa de vencedores
que (enquanto o hino soa
reforçando a identidade do grupo)
castram os seus prisioneiros.






http://novaserie.revista.triplov.com/numero_08/ruy_ventura/index.html