José Carlos Seabra
Pereira (2015)
“Novos tempos de ‘a
interminável preparação’ – Apontamentos sobre a poesia portuguesa no primeiro
decénio do século XXI”
Cultura XXI – Ensaios, [Lisboa], Labirinto das Letras: 117 – 188.
["RUY VENTURA
E A SUA POESIA PNEUMÁTICA E COSMOGÓNICA"]
E A SUA POESIA PNEUMÁTICA E COSMOGÓNICA"]
“Tal como o último
quartel do século XX, o decénio inaugural do novo milénio apresenta-se-nos como
tempo de basta produção no domínio da poesia lírica e como espaço de
coexistência e cruzamento de tendências várias. Daí que impressione e atraia
como campo de enorme pujança, mas também nos dificulte a visão panorâmica como
labirinto de difícil cartografia. […]” (p. 117)
“Quer pela diluição dos
grupos programáticos e pelos vectores temático-formais que nesse contexto
prevalecem na estruturação das obras mais representativas dos nossos dias, quer
pela orientação que se nos depara nos poucos casos que mais se aproximam dos
contornos de corrente estético-literária, o estado dominante parece não só
pós-pessoano, mas também pós-anos 60 – no sentido de, sobre heranças de Sena e
de algum Nemésio, de Herberto Helder e de Cesariny, adoptar por horizonte
matricial o legado de Ruy Belo, do grupo do Cartucho (1976) e de uma prática
poética já pós-moderna na desenvoltura descomplexada, no gosto do lúdico e do
provocatório, nas conexões anglo-americanas e refracções da cena Pop.
Mas esta perspectiva […]
é apenas uma das hipóteses plausíveis para a leitura da nova poesia portuguesa
na viragem do século.
Com efeito, ela não
parece dar conta cabalmente das motivações e dos efeitos das insofismáveis linhas
entrecruzadas de persistência da PO-EX […] e da metamorfose da revolução
surrealista […].
Por outro lado, menos
parece atender às fundas origens e às potencialidades de uma proposta
programática alternativa ao imanentismo perceptivo e textual defluente do
modelo propugnado nos anos 70/80 por Joaquim Manuel Magalhães. Referimo-nos a
uma tentativa de integração superadora das linhagens surrealista e experimental
numa poesia outra de conhecimento e de simbolização. Trata-se de uma poética
que, pela imaginação analógica, pretende promover e figurar a convergência do
subliminar com o suprarreal em energias espirituais e formas arquetípicas, se
não sobrenaturais, de real supra-sensível. É uma poética propugnada em ensaio e
ilustrada em cenas de teatro […] por António Cândido Franco […].
Seja qual for o alcance
que este combate espiritual e estético vier a conquistar, importa assinalar
que, em diálogo intertextual com Herberto Helder e sua cifra Do Mundo, mais do que sobre o estamento
neo-romântico de entre Nobre e Pascoaes, […] a correspondente antropologia
literária vem sendo gradativamente cifrada no gnosticismo cristão de Ruy
Ventura e sua poesia pneumática e cosmogónica de ‘súmula do mundo’ e ‘breviário
pessoal de vozes’. Nessa poesia, a ‘contramina’, metáfora do inefável, emerge
nas falas anónimas de Chave de Ignição
(2009) e de Instrumentos de Sopro
(2010), a caminho da tensão dramática de personagens e vozes, ancestrais e
actuais (Contramina, 2012). Vozes,
essas, inconfundíveis mas relacionáveis com iluminações oníricas e
fantasmagóricas de vocações poéticas como a de José Rui Teixeira, que aliás
como elas questionam, com subjacente espiritualidade cristã, a transitoriedade
da vida.” (pp. 124 – 127)
“[…] subscreveriam a
demarcação do escapismo nostálgico e da evasão idealizante que algum dia tenta
impor-se na obra de Fernando Pinto do Amaral […]. Cortando vazas à tentação da
nostalgia, Manuel de Freitas interpela(-se) […]. Permanece o homo viator com um indefinido horizonte
primordial: ‘recebendo e transportando a marca de cada passagem. / entregando
em nossa morada / o verbo e a saudade do início’, como tão bem cifra Ruy
Ventura num livro de 2003 com o título de sugestionadora simbologia
numerológica, sete capítulos do mundo.”
(pp. 160 – 161)
“Propala-se uma
perspectiva de continuidade bio-gráfica entre o poeta e o sujeito da
enunciação, mas com fronteira incerta e fluida entre a estratégia de sugestão
de referência autobiográficas (‘deícticas’, ‘logísticas’) e efeitos de
auto-ficção, tão desenvoltamente gerados como desenvoltamente se exibem os
mecanismos de engendramento do poema.
[…]
Não faltam, pois, marcas
frequentes e por vezes extensas de afirmação do ‘eu’, com processos vários e
variamente confinantes de sugestão autobiográfica e de construção
auto-ficcional. Mas […] também não faltam processos de autodistanciamento, de
autodesdobramento e mesmo de alterização, com o regime discursivo a adoptar
diferentes modalidades de dialogismo, ou a deslocar-se para fronteiras com a
composição dramática – vg. hoje Contramina
de Ruy Ventura –, ou a optar por figurações e elocuções alteronímicas.” (pp.
162 – 163)
“[Nalguns] poetas, chega
a hora de dizer precoce experiência de entrada no ‘Equinócio de Outono’ da vida
e de ‘uma inclinação musical para a queda’ […]. Em idêntico sentido, a lírica
diferente de um Manuel de Freitas ou de um Ruy Ventura tipifica a poesia
daqueles – ‘portadores’ como Nemésio queria – a quem, numa Arquitectura do Silêncio, ‘não lhes falta / o olhar – basta-lhes /
o horizonte’, mas que suspeitam que jamais chegarão ‘a ler, para além do sol, /
o sol que o ilumina’. […]” (p. 168)
“Recolhida, mas
constitutiva e intersticialmente catalisadora em Ruy Ventura, a economia
universal da Salvação com teleonomia de espiritualidade cristã comparece, mas
mais velada que diferida, noutros poetas de assegurada representatividade
epocal. […]” (p. 186)