SOBRE CONTRAMINA
Filipa Barata
No panorama de certa poesia portuguesa mais actual,
e em especial no da sua geração, a voz de Ruy Ventura
quase se assemelha a um oásis no meio do deserto poético
de composições sobrecarregadas de imagens urbanas
vazias, onde, em muitos casos, as referências culturais ou
mesmo literárias são vagas.
Não será esta uma tendência exclusiva da poesia
portuguesa, mas a crescente vulgarização da linguagem,
onde o banal e o rotineiro tomam ares poéticos, apontando
para um vazio pontuado por sensações imprecisas, onde
se sente a ausência de um pensamento consentâneo que,
porventura, não deve estar ausente desta ou de outras
formas de escrita.
É neste contexto que Ruy Ventura nos dá a conhecer o
seu último título,
Contramina, depois de
Arquitectura do
Silêncio (2000),
Chave de Ignição (2009) e
Instrumentos
de Sopro (2010), entre outros.
Um livro algo original este
Contramina, que se não
encontra essa originalidade em cada um dos elementos de
per si, que o compõem, encontra-a certamente no modo
como combina aquilo que parece ser a sua principal
substância (metafísica, espiritual) com a estrutura que
o enforma. Trata-se de um texto cuja filiação a um
determinado género é difícil, porque, se o teor da sua
mensagem é aparentemente poético, a verdade é que a
sua forma o aproxima muito mais do género dramático
– ou, pelo menos, do que convencionalmente se entende
por cada um desses géneros.
Talvez não seja despiciendo que nos demoremos
sobre a questão do género textual, em
Contramina,
já que isto levanta problemas teóricos, que apesar de
não serem absolutamente novos, suscitam perguntas
que nos permitem reflectir sobre o modo como lemos
e classificamos certos textos. Assim, comecemos por
colocar algumas perguntas: porque é que podemos
considerar
Contramina um livro de poesia? O que existe
aí de poético? Será que se trata efectivamente de um
texto poético ou é o modo como o lemos que é poético?
Haverá um modo poético de ler certos textos que os pode
transfigurar em poéticos mesmo que a sua mensagem não
pretenda, porventura, ser poética?
Esperando poder responder a estas e outras
questões em espaço mais oportuno, importa, no entanto,
referir que apesar de
Contramina aparecer classificado
como um livro de poesia, esse é talvez apenas um modo
de tornar a sua classificação mais fácil, uma vez que a
sua mensagem parece aproximar-se mais do campo da
filosofia mística ou de algumas das principais questões
que rodeiam o pensamento cristão. Convém notar,
aliás, que é talvez na reflexão sobre a palavra, e por
extensão a divina, que encontramos um dos núcleos
mais profícuos desta escrita. Na interrogação sobre a
palavra de Deus e de como ela devém fogo ora purificador,
ora transformador alicerça-se a força da linguagem, na
qual inevitavelmente entroncam os mistérios sobre a
existência humana e, por acréscimo, as questões de índole
metafísica e espiritual que
Contramina põe em cena.
Atentemos, assim, para uma das falas que pertence ao
nome de João:
sabemos distinguir a matéria do lugar? que voz se
ouve? o pacto ecoa na palavra – e num brilho que a
existência resguarda no fogo ou no fingimento. ter
colhões, olhar olímpico – dizem – para descobrir (entre
a execução e o roubo, entre excrementos e ruídos), sem
nome, a gruta, a praia, a serra, o bosque, o prado, a
rua, a casa, o largo – e, neles, o reino de Deus. (p. 12)
Cumpre dizer, ainda, que certas marcas do Antigo
Testamento, mas também do Novo, estão patentes nesta
obra sobretudo ao nível de uma linguagem que procura
ser simbólica e, nesse sentido, desfazer-se um pouco de
alguns elementos estilísticos. Vejamos, por isso, uma das
falas que compete ao nome de Agostinho:
a voz conta o temor da passagem, a audição de um
segredo que o confronto regista e multiplica. há pontes
e açudes, mas ninguém conhece a largura das águas, a
extensão das margens e a humidade da terra que o lodo
acolhe e estrutura. verbo ecoando pelo mapa, este grito
no parto. pomba voando da mão ao encontro do tiro ou
da serpente. (p. 11)
Não estamos, portanto, no campo da literatura e
sua retórica, no sentido mais ortodoxo do termo, porque
Contramina nos atrai para essa linguagem depurada, que
busca libertar-se de conotações demarcadas para ganhar
uma natureza de símbolo, na qual a palavra transponha os limites do humano. Daí que uma análise puramente
literária do seu conteúdo se torne difícil. Neste sentido,
não devemos estranhar que, enquanto objecto literário, o
texto de
Contramina possa ser menos interessante, pese
embora o facto de aparecer classificado, pelo próprio
autor, no seu blogue pessoal, como um livro de poesia.
No fundo, como vimos anteriormente, estamos perante
um texto arredio a categorizações, mas é, provavelmente,
nessa pertença a um género que temos de questioná-lo e
interpretá-lo e, sobretudo, tentar perceber porque joga tão
habilmente com as formas literárias que usa.
Se tivermos em conta o diálogo que se trava
entre as várias vozes que, através do índice de figuras,
atribuímos a referentes concretos – uma vez que muitos
deles dizem respeito a nomes de personagens de ficção,
poetas, pintores, filósofos, santos, etc. –, facilmente nos
recordamos daquele outro diálogo que mantêm entre si as
veladoras n’
O Marinheiro, de Fernando Pessoa. Estamos
assim dentro da
Contramina como num drama extático,
sem movimento, onde a única coisa que pode ser digna
dessa designação é a própria voz ou, no caso da obra
em apreço, as vozes que se cruzam e que todas juntas
procuram, quem sabe, as razões metafísicas e espirituais
da sua própria existência. Cada uma dessas vozes,
provenientes de áreas de conhecimento diversas, tende a
usar um conjunto de vocábulos comuns como se se tratasse
de um idioma que se modifica com a intervenção de cada
uma dessas vozes. Posto isto, talvez não seja descabido
referir que, em
Contramina – termo equivalente a mina
usado por empréstimo do castelhano na raia alentejana de
Portalegre, concelho natal de Ruy Ventura – assistimos à
invenção de um idioma, do espírito, das coisas naturais,
se quisermos, de onde, porém, não se ausenta o grande
espírito criador que modula ao mesmo tempo cada um
desses elementos, e dessas palavras, fazendo-as nascer da
junção dos sons tal como os minérios que se extraem da
mina são resultado químico de vários fenómenos:
sangra-se o poema. não sobrevive se a água não circula
pelas veias. setenta por cento do poema é apenas
água (salgada), sal da terra. a mina sustenta todas as
formas de vida que povoam e elevam a existência.
haverá células mortas (o ferro evita a anemia, mas não
impede a secura e o apodrecimento das palavras). o
corpo permanece. com sangue, sem água, não passará
no entanto de um cadáver – múmia conservada como
pedra numa redoma de vidro. (p. 55-56).
Vale a pena destacar, ainda, que se
Contramina é
sinónimo de idioma tem a ligá-lo à imagem de onde
provém uma espécie de silêncio inicial no qual tudo o
que é visível e invisível conhece a sua origem e o seu fim,
fazendo lembrar nisto muito da filosofia trágica patente na
obra de Raul Brandão, sobretudo em títulos como
Húmus
ou
El-Rei Junot.
(in
Navegações, Porto Alegre, v. 7, n. 1, p. 105-106, jan.-jun. 2014: 105 - 106).
Disponível
aqui.