SALVAÇÃO PELA LEITURA
(do livro ao Livro do Mundo,
passando pela Ilha dos Amores
e pela esfera armilar)
(do livro ao Livro do Mundo,
passando pela Ilha dos Amores
e pela esfera armilar)
Domingos Fernandes, poeta alentejano falecido em 1972, tinha versos surpreendentes. Vendedor de pratos antigos a José Régio, sem nunca lhe dizer que também escrevia poemas, era capaz de palavras certeiras como estas: "Há muito livro bonito, / Muito bem encadernado; / Mas tudo quanto tem escrito / É reclame de mercado. // Há livros mal capeados, / Não prestam para vender; / Mas são uns livros sagrados / Que todos deviam ler. // Com tais livros apontados / Há homens muito parecidos; / Há talentos mal roupados, / Há imbecis bem vestidos. // Há muito sábio perdido, / É pena não ser achado, / Há muito burro mantido / À manjedoura do Estado". A preservação deste texto deve-se a José Correia Tavares, seu sobrinho por afinidade, que em 1967 os publicou numa revista editada em Angola, sem conseguir todavia impedir o corte da última estrofe pela censura.
Já em 1999, a sua discípula Maria Tavares Transmontano divulgou uma quadra de sua autoria que nos obriga a pensar: "Mais ainda que os outros livros, / Lê bem o livro do mundo, / Que hás-de achar onde te salves / De algum pélago profundo!"
Já em 1999, a sua discípula Maria Tavares Transmontano divulgou uma quadra de sua autoria que nos obriga a pensar: "Mais ainda que os outros livros, / Lê bem o livro do mundo, / Que hás-de achar onde te salves / De algum pélago profundo!"
Se o primeiro poema me agrada pela comparação sarcástica e certeira, o segundo traz-me
ressonâncias longínquas com que o autor, homem culto mas simples das serranias
do Alto Alentejo, nem sequer terá sonhado. O "livro do mundo" faz-me sempre recordar o emblema adoptado por
el-rei Dom Manuel: uma esfera, tendo à volta ou na base a legenda spera mundi.
Sempre me intrigou este letreiro usado pelo herdeiro de D. João II. A leitura literal da esfera armilar deveria obrigar à indicação de uma sphera mundi. Todavia, tal não aconteceu. Entre uma e outra palavra alguém resolveu estabelecer a polissemia, uma leitura dupla ou infinita promovida pelo equívoco significativo. Suprimiu-se a H - e a esfera viu-se transformada em esperança, a que chegamos pela espera, pois só a paciência nos pode levar a alcançá-la. E a paciência liga-se à alegria que, nas palavras inspiradas de São Francisco de Assis, consiste na calma perante as maiores adversidades.
Sempre me intrigou este letreiro usado pelo herdeiro de D. João II. A leitura literal da esfera armilar deveria obrigar à indicação de uma sphera mundi. Todavia, tal não aconteceu. Entre uma e outra palavra alguém resolveu estabelecer a polissemia, uma leitura dupla ou infinita promovida pelo equívoco significativo. Suprimiu-se a H - e a esfera viu-se transformada em esperança, a que chegamos pela espera, pois só a paciência nos pode levar a alcançá-la. E a paciência liga-se à alegria que, nas palavras inspiradas de São Francisco de Assis, consiste na calma perante as maiores adversidades.
Não creio que essa espécie de divisa manuelina se tratasse apenas de um jogo. N' Os
Lusíadas, por exemplo, Camões fala da contemplação da esfera ofuscante como cume da
experiência mística (o que deita por terra todas as leitura chãs do
episódio da Ilha dos Amores, como bem
sabiam Fiama Hasse Pais Brandão e António Telmo). Dalila Pereira da
Costa, por seu turno, explicou que a contemplação do mistério de Deus pode consistir na
contemplação de um globo luminoso, visto no mais alto instante da vivência
inefável. Dá-se a coincidência de a raiz semita SPR significar escriba, mas também livro, escrita, número, arquivo ou registo de
memórias. Tal radical pode ter originado a nossa esfera especiosa,
misteriosa. Assim se indica que o globo é, sobretudo, um livro; que a sua
contemplação corresponde à sua leitura; e que nesse livro (sepher) está a
esperança (spera ou spes), porque contém o mundo (sphera), ou seja, a memória
de todos nós (spr).
Se
seguirmos por aqui, concluiremos que na leitura está uma via de salvação. Não numa
leitura qualquer, mas na contemplação consequente das Escrituras que revelam o
mistério divino. Não concebiam os mestres talmúdicos o Paraíso (Pardèsh) como "lugar da leitura"? Tenhamos
pois Esperança, que é a ponte entre a Fé e o Amor. E meditemos nas palavras avisadas de
Domingos Fernandes: a leitura do "livro
do mundo" pode salvar-nos do abismo.
Ruy Ventura