ALGUNS APONTAMENTOS
PERANTE UMA TRAGÉDIA
O FOGO, SOBRE O AUTOMÓVEL
Perante o que vejo e leio, não conseguiria manter-me
em silêncio.
Foi num último dia de Julho, em 2003 (creio). Junto de
Arês (Nisa), uma súbita mudança de vento fez passar o fogo sobre o meu carro…
Imparável. Ainda hoje sinto o calor e vejo a flama a passar sobre mim. Não sei
por que escapei. Não sei como escapei – vivo! (Já tive duas vezes a minha terra
quase cercada de fogo, mas nada foi pior do que isto.)
Em Pedrógão, entre Castanheira de Pêra e
Figueiró dos Vinhos, dezenas não conseguiram escapar. Estavam no local errado à
hora errada.
Recordo o que me sucedeu há 14
anos e não posso conter as lágrimas por aqueles que morreram (62? mais?). Há
dias em que nada conseguimos dizer. Nem a Deus nem aos outros, nem a sequer a
nós. O silêncio reverente é talvez o melhor caminho. Que descansem em paz!
Dai-lhes, Senhor, o eterno descanso.
PERMITE QUE
ATÉ TI CHEGUE O MEU PRANTO
“Ao chegar o meio-dia, fez-se trevas por toda a terra, até às três da tarde. E às três da tarde, Jesus exclamou em alta voz: ‘Eloí, Eloí, lemá sabachtáni?’, que quer dizer ‘Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?’ " (Mc 15, 33 - 34).
É
em dias como este que percebemos deveras o que são e para que serviram (e
servem) as cinco chagas do Salvador. É nestas ocasiões que entendemos, no mais
fundo do nosso ser, que o nosso Deus é “um Deus ferido”, como tão bem viu Tomás Halík.
Ficamos então a saber em que consiste a “imitação de Cristo”, ainda que tentemos esquecer tal
proposta, pois parece-nos demasiado pesada.
Rezo com T. S. Eliot:
“O ar que agora é completamente rarefeito e
seco
Menor e mais seco que a vontade
Ensina-nos a curar e a descurar
Ensina-nos a permanecer tranquilos.
[…]
Menor e mais seco que a vontade
Ensina-nos a curar e a descurar
Ensina-nos a permanecer tranquilos.
[…]
Não consintas que nos iludamos com embustes
Ensina-nos a curar e a descurar
Ensina-nos a permanecer tranquilos
[…]
Não consintas que eu me aparte
Ensina-nos a curar e a descurar
Ensina-nos a permanecer tranquilos
[…]
Não consintas que eu me aparte
E permite que até Ti chegue o meu pranto.”
AINDA O LUTO
(MAS TAMBÉM A INDIFERENÇA ALARVE E ARROGANTE)
Na sua sabedoria aldeã, a minha avó dizia: “Agora o
luto é um par de óculos escuros…”. Se vivesse neste tempo, diria: “Agora o luto
é um boneco que se põe no facebook…”
Cada
um tem a liberdade de fazer o que quer, mas há atitudes que me chocam. Como é
possível que alguém, no seu mural, manifeste o seu luto pela tragédia colectiva
que estamos a viver e, ao mesmo tempo, continue a publicar fotos de comezainas,
de pernas ao léu na praia ou noutro lado, de copos
de imperial acompanhados por sorrisos satisfeitos ou alarves, de outras trampas
que nem vale a pena listar?
Um dos grandes dramas do interior português que vai
ardendo todos os verões – e das suas vítimas – é a indiferença com que tudo é
olhado por aqueles cujo único horizonte está no seu próprio umbigo. São como
Basílio Enxertado (personagem de Camilo) que arrotava satisfeito, mesmo perante
os dramas alheios, porque se sentia bem longe deles e, quiçá, acima deles.
Enxertados há muitos, infelizmente e para nossa desgraça. Enxertados com rebentos de indiferença, de egoísmo, de nihilismo, de carreirismo, de sobranceria, de arrogância, de tudo quanto há de mau por aí à mão de semear… E nem todos são políticos, empresários ou gente grada…
Enxertados há muitos, infelizmente e para nossa desgraça. Enxertados com rebentos de indiferença, de egoísmo, de nihilismo, de carreirismo, de sobranceria, de arrogância, de tudo quanto há de mau por aí à mão de semear… E nem todos são políticos, empresários ou gente grada…
Tenho dito (porque tinha de dizer).
*
De luto, porque é impossível sentir de outro
modo neste dia e nos próximos. De luto, porque luto contra o desânimo e a
desesperança (e é preciso lutarmos todos)!