O ENCLAVE
Conheço Aljezur desde 1
de Novembro de 2002 – e desde essa altura algo me intriga. Habituado a
conversar com aqueles que nasceram ou desde sempre viveram nessa vila e no seu
concelho, é frequente ouvi-los afirmar que vão “lá abaixo, ao Algarve”. Quando assim falam, referem-se por vezes a
Lagos, mas sobretudo a Portimão, Lagoa, Albufeira, Faro ou a qualquer das
terras circunvizinhas. Há dezasseis anos que ouço a expressão; há dezasseis
anos que a estranho. E tem-me posto a pensar. Bem sei que o (meu) Alentejo
termina na margem norte do rio Seixe. Não há engano. As placas turísticas e os
mapas dizem-me, além disso, que na margem sul desse curso de água que deu nome
à mais bela porta das terras meridionais, Odesseixe, começa o Algarve. Os aljezurenses
(e, ao que parece, as gentes de Monchique) dizem no entanto que não, que assim
não é. O Algarve é lá para baixo… É outra coisa. E a sua terra – a Serra, como gostam de dizer – é algo bem
diferente.
Admito: têm razão. Quem
saia no Verão de qualquer ponto desse território montanhoso que desce do alto
da Fóia até ao Atlântico, dirigindo-se a Lagos pela estrada que sobe aos
cabeços do Espinhaço de Cão e depois serpenteia até encontrar a ribeira de
Bensafrim, decerto notará a diferença. Desde logo, nas cores e, sobretudo, na
frescura que corre até ao ponto mais alto do percurso: até aí, uma temperatura
amena, transportada pela brisa sempre fresca e agradável; aí chegados, se
levarmos a janela do carro aberta, o bafo quente, vindo talvez do Norte de África.
Percebemos então que deixámos uma espécie de enclave climático que, bem vistas
as coisas, revela uma subtil, mas sensível, distinção cultural e identitária.
Basta estarmos atentos e sermos em Aljezur não turistas, mas viajantes humildes,
abertos à grandeza do outro que construiu esse território ocupado há milhares
de anos.
Vale a pena contar uma velha
história. Naquele que é talvez o relato mais antigo da conquista do território
algarvio ao poder islâmico, datável de meados do século XIV, é revelado algo
que mostra a inteligência e a independência dos aljezurenses. Dou a palavra ao
cronista anónimo, adaptando a ortografia: “[…]
o mestre [D. Paio Peres Correia] partiu de Loulé e foi-se lançar sobre Aljezur
e quando os mouros souberam que Faro e Loulé e os outros lugares eram tomados,
deram-se logo ao mestre com a condição que se deu Faro e o Mestre pelo cansaço
que havia recebido ele e suas gentes nos outros lugares aprouve-lhe com isto
[…]”. A sanguinária lenda que hoje corre foi criação posterior, nascida cem
anos depois, quando a dinastia de Avis se empenhava na ocupação cristã das
praças marroquinas e era preciso acalentar a moral das tropas. A verdade
basilar, sem acrescentos espúrios nem falsificações, é no entanto só uma:
argutos, sem qualquer espécie fanatismo religioso, os aljezurenses souberam
escolher com diplomacia o melhor caminho, para não sofrerem as agruras de uma
resistência pouco sábia. Entenderam que a paz e a concórdia valem mais do que
muitas certezas e teimosias.
Aljezur, o seu território
e as suas gentes são de facto um mundo inconfundível. Não é fácil dar por isso.
A atenção descobre no entanto as linhas da diferença, mesmo nestes tempos de
“salada russa” cultural. Não é das terras mais bonitas. Não tem monumentos grandiosos.
A ela não estão ligadas grandes figuras da nossa identidade. Prima pela
discrição. Quem se abeire, todavia, das suas falésias, em que a rocha tão
imponente e tão escura nos obriga ao confronto com as forças mais sublimes da
Natureza, descobre o que significa essa humildade, essa timidez de ser e
afirmar-se.
Os místicos do século XI
souberam entender a grandeza do território. Pode parecer um deserto verdejante,
de súbito interrompido pelo antracite que antecede a imponência do mar oceano.
Mas esse deserto, pontuado pela brisa fresca incessante, permite-nos pressentir
o melhor caminho, essencial nos dias que correm, envenenados pelo petróleo
mental que tudo suja em benefício das mais diversas formas de lucro. A palavra
“enclave” tem na sua origem o vocábulo latino que significa “chave”. Uma das
chaves da cancela que abre essa estrada sobrenatural, sem portagens, parece
estar em Aljezur. Resta abrir os olhos da mente e do espírito e, entendendo-a,
seguir por ela.
RUY VENTURA
(Texto publicado no "Guia para o Visitante [de Aljezur]", 2018.)