No passado dia 12 de Outubro o Reitor do Santuário de Fátima anunciou (na conferência de imprensa que normalmente enquadra as peregrinações aniversárias) a publicação do meu novo livro, intitulado "Sob os braços da Azinheira (Leituras de Fátima)". Trata-se de uma colectânea de ensaios e de aproximações ao "poliedro de Fátima", cruzando modos de ver e de entender esta realidade que continua a inquietar-nos e a co-mover-nos com o seu mistério e com a sua actualidade.
O livro está já disponível na livraria do Santuário: https://www.store.fatima.pt/sob-os-bracos-da-azinheira Encontra-se ainda à venda nalgumas livrarias especializadas, como a Verdade e Vida, dos Dominicanos. 
Desde já agradeço a sua aproximação a este livro meu que é fruto, sobretudo, de uma peregrinação interior onde se associaram a Fé e a Razão. Grato ficarei também por qualquer género de divulgação que possa dar-lhe. Caso precise de algum esclarecimento da minha parte, estarei à disposição.

RECORDAÇÃO E LOUVOR
DE CARLOS GARCIA DE CASTRO


            Repasso os livros que tenho de Carlos Garcia de Castro. Poderia reler as muitas cartas que dele guardo; a distância não é todavia ainda suficiente para delas me reaproximar. Não mudou de habitação assim há tanto tempo; soube que já não mora na praceta d' "Os Lusíadas"; continua em Portalegre, mas disseram-me que desde 2016 repousa noutro bairro, lá para os lados da Boavista. Não conheço ainda a nova habitação do seu corpo; imagino-a virada, contudo, para a casa de José Régio – esse escritor grande que, como ele e mais alguns, soube topar os furúnculos da cidade, não tendo medo de espremê-los com arte e frontalidade. 
            Repasso os livros de Castro. Fitando as dedicatórias, descubro a melhor palavra para designar os laços que criámos. Durante muitos anos, foi para mim apenas um vulto, investido da cortante grandeza poética que transcendia a pequenez bolorenta de muitos versos que então tentava ler. Aproximámo-nos, quase sem querer, com o meu ingresso na Escola Superior de Educação portalegrense, onde era professor. Quase no fim do curso, fui seu aluno nas lições de Cultura Portuguesa. Gostava de dissertar a partir dos bons livros do padre João Mendes, cuja valia nunca se cansava de enaltecer, mesmo sabendo que não era um autor da moda e perante a estupefacção dos ouvintes, com preocupações situadas a anos-luz das suas. Com gargalhadas súbitas, ironias surpreendentes e certeiras e uma rara profundidade nos raciocínios, partindo sempre de uma atenção cirúrgica, as suas aulas tornavam mais real a etimologia do termo francês élève (aquele que é elevado espiritualmente pelo seu mestre, o qual admira sem lhe lamber as botas). Alguns alunos interrompiam-no, picando-o (eu era um deles). Nunca nos mandava calar, embora o merecêssemos. Assumia com bonomia as provocações e respondia-lhes com a melhor doutrina, sem afastar a humildade. Mais tarde, sendo eu já docente na Grande Lisboa, confessou-me o que pensava nessas ocasiões. É para mim matéria reservada, de proveito e exemplo. Foi nessa altura que, estando eu a terminar a minha licenciatura, me ofereceu o conselho que modelaria o meu futuro. Tirando à pílula toda a folha de ouro, retratou-me com a maior dureza a sociedade da nossa terra natal, antevendo o que me sucederia caso aí permanecesse. Sabendo-me aldeão afastado dos ambientes da burguesia local, incitou-me à migração. (Quando um convite, passados anos, me levou a um breve regresso, não o aceitei sem antes lhe telefonar. Repetiu-me os avisos, sem me tirar a esperança. Optei, à sua revelia. Dois anos passados, vi-me obrigado a dar-lhe razão.)
            Do primeiro ao último livro que me dedicou, designou-me sempre do mesmo modo: "companheiro", "compagnon de route"... Só agora me apercebi disso. Nesse companheirismo, aprendi a manter sempre a minha independência fosse perante quem fosse, a caminhar sem vergar nem perder a coluna, a ser católico sem hipocrisias nem beatices, a não me misturar demasiado com o chamado meio literário, a sobreviver no ambiente escolar e docente com ardilosa distância e empático humor. Não me deixou pequena herança.

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            Fosse Portugal outro país e a classe literária lusa de outro quilate e há muito teria já reconhecido Carlos Garcia de Castro como o poeta maior que é, sublinhando nomeadamente a sua aproximação ao quotidiano, numa linguagem certeira e tersa que nunca abandonou o apuro formal e estilístico, surpreendente nas suas imagens. Por ali surge, como trama oculta ou discreta, a transcendência do mundo e das relações humanas, que não dispensa as três dimensões do Amor: a amizade, a conjugalidade/sexualidade e a divindade. Quando outros ainda nem balbuciavam, já Castro tomava e transmitia muito melhorado o testemunho imagético e estético de Cesário Verde e Pessoa-Caeiro, aproximando a poesia de um real multiforme. Nunca foi, todavia, um criador de micro-narrativas em versos empilhados. Num impressionismo arguto, soube casar alguns pontos luminosos da tradição surrealista com um olhar lúcido sobre o seu entorno, sem deixar que a coloquialidade de uma parte substancial da sua linguagem fosse obstáculo à presença do sobrenatural, pobremente vestido, quase franciscano. Quanto recorre à memória, fá-la recordação e não apenas lembrança; combatendo toda a espécie de derrames sentimentais, trá-la ao coração para que seja fonte luminosa de atenção, de rigor e de esperança.
            Como “escravo […] das coisas naturais, / amante do concreto entre poetas / para quem não é enigma o arco-íris”, a poesia e a figura de Carlos Garcia de Castro merecem ser enaltecidas. Cidadão vertical, soube dissecar a sociedade, o estatuto que aí mantêm os seres humanos e os papéis nela desempenhados (entre a fidelidade, a subversão e a hipocrisia). Usando uma métrica regular, em versos brancos, não apagou dos seus poemas a metafísica, mas tornando-a subjacente, quase subterrânea, focalizou de preferência a physis e os jogos de poder, de dependência, de alienação, de simulação, de liberdade e de autonomia que dirigem e governam o devir do nosso mundo. O contraponto está numa subtil evocação da doutrina em que a criatura, sempre imperfeita, é reflexo do Criador.
            A ironia – “ingrata” e “traiçoeira”, como dizia, mas geradora dos “melhores efeitos em Literatura” – fez parte da sua estratégia de sobrevivência. Ao contrário de tantos outros, o autor de Rato do Campo escreveu “não-poemas”, ou seja, textos cuja finalidade sem fim foi, em grande parte, não encantar, efabular ou idealizar o meio social, doméstico e objectual, mas antes desencantar, esquadrinhar e virar do avesso, zurzir as redes que nos envolvem, modelam e, tantas vezes, aprisionam. Usando um raciocínio de cariz filosófico – ou mesmo histórico e sociológico –, quantas vezes meditativo, o sujeito poético pensa-se, pensa o seu meio e pensa-se nesse meio. E daí nascem poemas – ou “anti-poemas” (Nicanor Parra) – como quem entrança canastras: colhendo a matéria da natureza, entrelaçando com um braço artístico forte os ramos de castinceira e formando um recipiente duradouro, capaz dos mais pesados transportes – exactamente o contrário dos contentores de plástico, incapazes de deixar passar o sopro da leitura, de uma leitura infinita (aquela que nos conduz ao Paraíso).
            Na matéria, “utilitária e banal”, se mostra “enredada / – a Natureza”. Aí se revela, surpreendente, “o mistério das madeiras limpas”, o mesmo é dizer das matérias depuradas que todo o verdadeiro poeta procura alcançar.

RV

(Artigo publicado no jornal "Alto Alentejo", a 14/11/2018).