CARTA
ABERTA A JOÃO MIGUEL TAVARES
Caro João Miguel,
Tomo a liberdade de tratar-te por tu. Somos afinal conterrâneos,
apesar de não nos conhecermos. A nossa idade é muito próxima. Imagino que, como
eu, tenhas nascido no velho Hospital da Misericórdia, em pleno Rossio
portalegrense; tu, em Setembro, eu dois meses depois. Escrevo-te depois de ter
escutado pela televisão, comovido, a tua intervenção como responsável pelas
comemorações do Dia de Portugal. Não poderia deixar de fazê-lo ao ouvir-te
evocar o teu avô que, ao fundo da Rua de Elvas, dava sopa àqueles que dela
precisavam, ao sentir o significado daquela casa ao cimo da Avenida Frei Amador
Arrais que foi e é a tua e, sobretudo, ao ter contido com alguma dificuldade as
lágrimas quando te ouvi mencionar o destino de tantos portalegrenses que, para
cumprirem o seu destino, se viram obrigados a deixar o seu concelho.
Poderia ficar por aqui e agradecer-te, com a maior profundidade.
Mas cortaria metade da verdade. Poderia dizer que o meu destino foi igual ao
teu e ao de tantos da nossa terra. Mas não contaria a história toda, porque é
mentira.
Se bem conheces o nosso concelho, e acredito que sim, sabes que
o destino daqueles que nasceram e cresceram com a democracia não foi igual para
todos. Os filhos do funcionalismo público e das elites locais, seja lá isso o
que for, nascidos e criados na cidade, nunca tiveram o mesmo tratamento que os
filhos dos operários, das costureiras e dos pequenos agricultores que tiveram
como destino crescer nas aldeias da serra e dos arredores. Os sacrifícios,
acredito, seriam semelhantes em cada família; mas enquanto os sacrifícios da
classe média citadina podiam oferecer aos seus a universidade, fora de
Portalegre, quem vinha de outros meios era obrigado a contentar-se com os
cursos ministrados pelas escolas do Instituto Politécnico de Portalegre, mesmo
que tivesse notas e capacidades para marchar até outras paragens. Como dizia
uma grada senhora, era uma espécie de prémio de consolação.
Estou grato à democracia por ter criado instituições de ensino
superior em pequenas cidades de província; se assim não fosse, ter-me-ia ficado
pelo ensino secundário e ver-me-ia transformado num apagado empregado bancário
ou de secretaria, talvez num contabilista, mesmo que tivesse asas para outros
voos. Assim sendo, filho de um operário da Robinson e de uma costureira, vindo
das serranias das Carreiras, não tirei (é certo) o curso de História que sempre
ambicionei ou o de Geografia e Planeamento Regional para o qual tinha altas
classificações, apesar de ter sido um dos agraciados com o Prémio Francisco
Fino para os melhores alunos do secundário do nosso município, mas
desenrasquei-me com uma licenciatura em ensino de Português e Francês, tirada
na nossa cidade, porque para ela ainda ia havendo dinheiro, sabe Deus com que
esforço e privações, embora para mais fosse impossível. Sem cunhas e sem
parentes que me abrissem a porta fora de Portalegre, tive de me contentar com o
que havia e dar o meu melhor, sabendo bem demais, mas tentando esquecer, que
partia para a meta da vida numa posição diferente da de outros meus
conterrâneos...
Foi no final dessa licenciatura que comecei a tomar consciência
de outra realidade. Aluno no último ano do nosso saudoso Carlos Garcia de
Castro, poeta grande cujo mérito, refugiado na interioridade, nunca foi
reconhecido como deveria ter sido pelo "meio literário", foi ele quem
me abriu os olhos para o que Portalegre era há 25 anos e, infelizmente,
continua a ser. Nunca esquecerei a sua frase: "Concorra para sair daqui.
Nesta terra nunca lhe perdoarão ser filho de um operário e de uma
costureira." Concorri, mas passados anos caí na tentação de aceitar um
convite para regressar. Durante três anos, fui professor na instituição de
Ensino Superior onde recebera a minha formação inicial. Seduzido para a
política por estratégias ardilosas, estive quase a entrar para o partido que
agora nos governa. Acontece que, no momento decisivo, me deu para ser
independente e recusei atravessar para esse lado. Paguei caro. Não tardou muito
que deixasse de haver lugar para mim e, apesar de ter o meu mestrado concluído
e iniciado o doutoramento, fui preterido. Eu tive de regressar ao exílio e quem
ficou, apenas com a licenciatura (!), teve o lugar garantido durante vários
anos, talvez por ser filha de um ex-autarca do Partido da mão fechada. Só então
percebi tudo quanto Carlos Garcia de Castro me dissera. Em Portalegre, cópia em
miniatura do Portugal que abomina o mérito e tu hoje denunciaste com a firmeza
que te conhecemos, não se perdoa a falta de currículo familiar e muito menos
pensarmos pela nossa cabeça, sobretudo se isso fizer sombra a alguém bem
instalado ou puser em causa o seu pequeno poder ou a sua mediocridade.
Sou hoje um portalegrense exilado que bem gostaria de curar-se
dessa doença que se chama Portalegre. Teria uma vida muito mais tranquila. Não
nego: o exílio tem-me trazido muitos momentos felizes, algumas alegrias que
nunca atingiria se tivesse ficado pelo Corro lagóia. Mas, confesso-te, são
alegrias amargas que, a cada momento, me recordam essa condição de migrante por
vontade alheia. A minha árvore tem raízes e custa-me saber que os seus frutos
são colhidos por outros porque da minha terra existe uma incessante e nefasta
ventania que lhe vergou o tronco e fez crescer a copa noutra direcção.
Sabes, João, ao ouvir o teu discurso de hoje - que só não me fez
verter lágrimas porque, caramba!, um homem não chora - vi pela televisão os
meus pais aplaudindo-te. Também devem ter sentido fundamente as tuas palavras,
lembrando o seu filho único que a várias centenas de quilómetros as ouvia. Portugal
ainda é uma Portalegre ampliada, porque, como dizia Raul Brandão a propósito de
Gomes Freire de Andrade, aqui não ganham os inteligentes, mas (para nossa
desgraça colectiva) os mais espertos.
Bem hajas pelas palavras que tiveste a coragem de dizer. Espero
que a voragem deste país não as apague tão depressa. Um abraço firme e comovido
do teu conterrâneo