UMA VASSOURADA NA EDUCAÇÃO

            Repugna-me a retenção dos meus alunos. Repugna-me aliás a retenção de qualquer criança. Dito de outro modo menos eduquês, não me agrada nada chumbar ou ver chumbar um miúdo. Ou, sequer, atribuir-lhe uma classificação negativa. O que eu digo dirão quase todos os professores deste país, que deveras se preocupam com os seus alunos. Qualquer discussão séria sobre o assunto deve partir desta premissa, pois há quem ache que os docentes são uma espécie de carrascos, “esquecendo” que a maior parte deles acumula a docência com a maternidade, a paternidade ou a qualidade de avô ou avó.
            Apesar deste veneno, injectado há muito nas veias da plebe por gente interesseira, a propaganda mais recente tem repetido até à exaustão que “os professores e os pais concordam com a eliminação dos chumbos até ao 9.º ano”. Não mentem, mas como é costume não dizem a verdade toda, nem sequer a maior parte dela. Não lhes interessa fazê-lo. Concordar não significa que os pais ou os professores aceitem a estratégia do governo e de quem o sustenta, como dão a entender. Acumulo os dois estatutos e assim penso, tendo a certeza de que muitos milhares me acompanham. Além do mais, tal afirmação não merece qualquer credibilidade, dado que nem os docentes nem os encarregados de educação foram consultados amplamente sobre o assunto. Convenhamos, além disso, que as confederações de associações de pais ouvidas representam pouca gente (sendo sobretudo instrumentos subtis na mão de alguns poderes políticos), o mesmo se podendo dizer da uma boa parte dos representantes sindicais dos professores.
            Ninguém é sádico ao ponto de querer vergastar gratuitamente as crianças com uma desnecessária retenção. Tal só sucede quando, comprovadamente, evidenciaram não ter aprendido aquilo que a tutela, no seu alto conceito, determinou ser o mínimo dos mínimos. A reprovação dos alunos decorre de leis aprovadas pela Assembleia da República e de currículos escolares emanados do ministério, que os professores se limitam a aplicar escrupulosamente ao longo do ano. A retenção nasce do insucesso simultâneo em várias disciplinas ou do abandono da escola.
            Estes dois problemas têm várias e complexas causas que muita gente, por várias razões, não quer encarar e resolver. À gerência do país interessa sobretudo poupar dinheiro à custa da educação das crianças, espezinhar os docentes que ainda pensam pela sua cabeça (apontando que a culpa da falta de aprendizagem é em grande parte sua e das escolas), mostrar mapas estatísticos que possam enganar os incautos e dar satisfação aos poderes ilegítimos, mas bem instalados, que vão subindo na vaidade, na carreira e nas benesses à custa das escolas e de quem lá vive. Tudo o resto, por mais atraente e “generoso” que pareça, é um canto de sereia que visa afogar-nos no mar do alheamento e do conformismo. Há muito tempo, pelo menos desde o consulado da ministra Lurdes Rodrigues, que a campanha de manipulação pública está instalada nos domínios da educação, com hábeis técnicas de ilusionismo que visam atirar o lixo para debaixo das alcatifas rotas do país, envenenar metade dos portugueses contra a outra metade e reinar, olimpicamente, sobre um monte de escombros onde, na realidade, nenhuma das luminárias das “ciências da educação” quer pôr os pés. Não me consta que algum dos “especialistas” na matéria tenha querido enfrentar turmas ululantes numa escola pública portuguesa das periferias, nem que fosse apenas durante um ano lectivo. Mas gostam de opinar, de mandar, de impor teorias serôdias. Disso gostam eles… Gostam eles, alguns dirigentes escolares e uma mancheia de docentes ainda no activo, mas por pouco tempo, cuja razão de viver é ser como esses “cientistas” ou como os bem instalados burocratas da 24 de Julho.
            Gostaria muito que os chumbos fossem abolidos nas escolas. Com convicção o escrevo. Com a mesma convicção defenderia a abolição das penas de prisão ou de multa, a extinção dos impostos, bem como a revogação das leis que nos impõem proibições ou determinam sanções quando prevaricamos. Que bom seria! Que bom seria termos um mundo em que tal fosse possível, uma espécie de utopia, anarquia ou acracia, em que cada um fosse sempre diligente, educado, estudioso, responsável, solidário e livre, podendo os cidadãos prescindir até de governos e de regras. Infelizmente, bem sabemos que tal paraíso na Terra não se vislumbra. Nem há sinais de que o Éden volte a surgir nos próximos séculos. Tem por isso de haver uma justiça retributiva, contributiva e distributiva, baseada em medidas que nos façam crescer no conhecimento, na moral e na ética. Imperfeitos como somos, precisamos de algo que nos faça assumir a responsabilidade de sermos membros conscientes e solidários de uma sociedade organizada. Se isto é válido para os adultos, mais válido se torna para as crianças e para os adolescentes, se não os quisermos manter até ao fim da vida nesse estado imperfeito e irresponsável.
            Há insucesso nas escolas portuguesas? Sim. Continuará a haver. Fazendo-se passar por agente “facilitador”, ao querer impor medidas legislativas que impeçam a retenção dos alunos nos anos intermédios do Ensino Básico, a gerência do país não se preocupa, todavia, com as crianças nem com o mundo desigual em que vivem. Mostra aliás uma chocante indiferença pela sua aprendizagem e pela qualidade da sua educação e instrução. Vemo-nos confrontados apenas com medidas sem substância, sem base de sustentação devidamente estudada, que não pretendem resolver seja o que for de importante, mas tão só camuflar problemas que boa parte da classe política e académica não quer, não pode ou não sabe resolver. No fundo, as desigualdades, deste modo eternizadas, interessar-lhes-ão como meios de criação de um ambiente propício à manipulação de consciências e à manutenção de uma sociedade de castas.
            Qualquer pessoa consciente sabe quais são as causas do insucesso: um deficiente uso da língua materna; enorme falta de vocabulário; erosão dos hábitos de leitura (que nenhum Plano Nacional, concebido com está, poderá resolver); deficiente uso do raciocínio lógico-matemático; incapacidade de abstracção; gravíssimos problemas de concentração; uma fraquíssima cultura geral; uma preocupante dificuldade na concepção e na emissão de juízos críticos; um atroz desconhecimento da História, do mundo natural, político e social. Nunca até hoje vi medidas consistentes que pretendessem deveras minorar estes problemas que, cá entre nós, afectam não pequeno número de adultos também. Em vez disso, vemos pelas escolas a promoção de medidas de fachada, de espectáculos ocos e, mais recentemente, de uma vazia panaceia chamada “autonomia e flexibilidade curricular” que é, na prática, apenas a promoção de experimentalismos sem substância e, pior do que isso, um instrumento perigosíssimo colocado na mão de alguns dirigentes escolares cuja única preocupação consiste em perpetuar o seu poder discricionário e autocrático, distribuindo benesses aos seus fiéis seguidores e rasteirando quem não entra no jogo.
            Qualquer estratégia de promoção do sucesso que passe pela pressão ilegítima sobre as escolas e os professores não mais será do que uma farsa que apagará estatísticas negativas, produzindo graves consequências ao nível da indisciplina e do rebaixamento da exigência a níveis inimagináveis. Se tal acontecer, como creio, teremos uma avaliação que, silenciosamente, não mais será do que um simulacro. Os alunos com poucas ou nenhumas dificuldades, normalmente oriundos de famílias estruturadas, com razoáveis recursos económicos, continuarão o seu caminho sem problemas, partindo alguns deles para os colégios privados. As crianças que, pelo contrário, venham de meios desfavorecidos ou tenham verdadeiras dificuldades, viverão iludidas, enganadas com as suas famílias, pensando ter sucesso na aprendizagem, na realidade inexistente. Sem nada lhes exigir de concreto, tudo lhes permitindo, esses alunos serão transformados numa tralha sem utilidade de que o sistema educativo se quer livrar o mais depressa possível. Tenho a certeza de que tal não é digno de um país como Portugal.


Ruy Ventura