COM UMA FISGA NA MÃO
Como eterno buscador da esperança contra toda a esperança - aquela esperança que não nasce se a vileza não for morta -, tenho recordado bastante nos últimos tempos a figura de um puto chamado David. Ninguém dava grande coisa por ele. Parecia frágil, ao ponto de nem ser lembrado por Jessé, seu pai, quando o profeta Samuel lhe perguntou pelos filhos. Não obstante, foi ele o escolhido. Foi ele quem teve a capacidade de matar Golias, dispensando pesadas e incómodas armaduras e usando uma funda ou fisga como arma de propulsão de uma pedrada certeira. Tendo apenas coragem e poucos meios bélicos, soube derrotar a sua arrogância, a sua soberba e os insultos que dirigia a todos quantos se pusessem no seu caminho. Perante o cadáver do inimigo, nem espada teve para dar o golpe final. Usou por isso a melhor lâmina, a espada do adversário; e assim o decapitou, pondo os inimigos em debandada.
Não faltam filisteus neste mundo em que vivemos. Com maior ou menor descaramento, insultam a nossa inteligência, tentam espezinhar ou espezinham a dignidade alheia, apresentam como desejável o que é moral ou eticamente reprovável ou abjecto, arrotam soberba sobre o rosto de quem se atravesse no seu caminho e tente confrontá-los na sua violenta demanda do poder social, político ou financeiro. Alguns são bem visíveis, como Golias era há três mil anos. Outros escondem-se por entre multidões ululantes, não dando a cara, mas manobrando contra os seus semelhantes, usando tantas vezes a mais sórdidas seduções para enganarem os incautos. Quantas vezes sorrindo... bajulando... assumindo atitudes paternalistas...
Está na nossa mão encontrarmos em nós a fortaleza e, transformando-a em coragem, sermos capazes de afugentar estes exércitos, cortando o mal pela raiz. Não é tarefa fácil, tantos são os enganos de que nos vemos rodeados, tão grande o alheamento para que fomos atirados, tão ardilosas as estratégias de terrorismo psicológico a quem estamos a ser submetidos neste tempo de chumbo, tão sedutoras as tentações com que tentam ludibriar-nos. É preciso sermos simples como as pombas e astutos como serpentes, sobretudo perante aqueles que, ao nosso lado, fingem ser amigos ou cúmplices ou "bons samaritanos".
Se tomarmos a narrativa de David como história de proveito e exemplo, talvez aprendamos algo. Não são precisas grandes armas para travarmos o bom combate, nem sequer armaduras topo de gama. Basta apenas a simplicidade desarmante, a humildade e a confiança. Contra o medo, basta a coragem - esse coração que ao alto não tem medo de agir. Basta uma fisga, a pedra apropriada e alguma pontaria. Se um rapazola insignificante conseguiu, não havemos nós de conseguir? Ouço alguém que me diz: "Bem-aventurados os que usam funda porque hão-de tombar a arrogância dos gigantes..." Que ninguém se negue à batalha, nem que seja resistindo pacificamente às investidas e à arrogância do inimigo. Não podemos estar distraídos. A atenção e o discernimento são absolutamente necessários. Somos diariamente espicaçados para assumirmos esta luta que é, antes de mais, uma luta dentro de nós. Escutemos os apelos - e façamos o que é preciso fazer. Conscientes, prudentes, mas sem medo.
RUY VENTURA
(in "O Sesimbrense")
(in "O Sesimbrense")