Catarina Nunes de Almeida

Imagens da cidade na novíssima poesia portuguesa
Jovens Ensaístas Lêem Jovens Poetas. (Coordenação de Pedro Eiras), Porto, Deriva Editores, 2008: 58 – 59.


[…]
Quando cultiva a matéria ficcional que a metrópole lhe oferece, o poeta propõe quase sempre cidades dentro da cidade. O resultado é a aparição de cenários híbridos, talhados às luz de um certo realismo mítico. Interessante será explorar o facto de que na nova poesia portuguesa, ocasionalmente, a natureza ainda invada a c idade. O tema não é frequentado de modo significativo, ao ponto de podermos considerar o típico binómio cidade/campo tantas vezes estudado – não encontraremos por certo a giga de frutos, à cabeça de uma pobre vendedeira, que cruza o bairro moderno – porém, existem outros pequenos sinais, que graciosamente anunciam o natural, e que aliam uma vez mais o campo a uma dimensão libertadora. Essa ponte é projectada, com grande tenacidade, em alguns momentos de Arquitectura do Silêncio, de Ruy Ventura:

3.
lá dentro depois do portão fechado
tudo lembra a imprevista pontuação dos astros
cada
minuto
vale apenas como instrumento
secreta passagem para outros nomes
uma maçã comida pela madrugada
o ponteiro do relógio esperando encontrar nas cores
o fumo e as formas da natureza

4.
entre os ramos apenas a paisagem se prolonga
como se ninguém visse
tudo ou quase tudo vai guardando a identidade das coisas
geometria que sob as lâmpadas e o passar dos autocarros
vai desenhando a luminosidade
dos horizontes

[…]

No pequeno quintal, depois do portão fechado, um microcosmo edénico principia. Salvo por uma paz verde, o que existia no mundo, para o sujeito, acabou ali, como se murmurasse “santuário”, e a cidade se fechasse atrás de si. […]
Eberhard Geisler

Excerto do prefácio da antologia
Die Landschaft füllt sich mit Zeichen
Bamberg, Universitäts-Verlag Bamberg, 2007: 16 – 17.



[…]
Der letzte hier vorzustellende Dichter ist Ruy Ventura. Er wird 1973 in Portalegre geboren und verbringt seine Jugend in einem Dorf der Serra de São Mamede. Er studiert zeitgenössische portugiesische Literatur in Lissabon, unterrichtet an der Escola Superior de Educação in Portalegre und ist gegenwärtig Lehrer an einem Gymnasium in Sesimbra. Bislang liegen drei Gedichtbände vor: Arquitectura do Silêncio (2000), sete capítulos do mundo (2003) und Assim se deixa uma casa (2003). Für erstgenannten Band erhielt Ventura den Lyrikpreis der Associação Portuguesa de Escritores. Unsere Anthologie berücksichtigt nur diesen Band. Ventura ist, vielleicht ähnlich wie Luis Quintais, als Philosoph mit dichterischen Mitteln zu bezeichnen. So bedenkt er zunächst grundlegend das Seiende im Raum und in der Zeit. Er benennt Baum, Erde und Stein, aber auch die “tragezeit der sonne” und den Lauf des Baumes durch den Tag. Sodann bedenkt er das Eingelassensein des Seienden in die Offenheit de Welt. Heideggers Satz aus seinem Kunstwerkaufsatz, nach dem das Kunstwerk das Offene der Welt offen halt, ist hier nicht weit. Die Tür verschließt das Haus, ist aber zugleich über ihre pragmatische Funktion hinaus ein Öffnendes: “es berührt die hand das holz (sol lich tür sagen?) / als berührte sie die ganze substanz des hauses / seinen wind seine stimmen seine gerüche / seine gegenstände die gesamtheit des raums den man / jenseits der fenster und wände errät”. Man erinnert sich an die Sätze, die Heidegger im genannten Text über ein Paar in einem Gemälde von van Gogh abgebildete Bauernschuhe schrieb, um sich von Kunst als bloßer Abbildung abzugrenzen: “Aus der dunklen Öffnung des ausgetretenen Inwendigen des Schuhzeuges start die Mühsal des Arbeitsschritte. (…) Auf dem Leder liegt das Feuchte und Satte des Bodens. Unter den Sohlen schiebt sich hin die Einsamkeit des Feldweges durch den sinkenden Abend. In dem Schuhzeug schwingt der verschwiegene Zuruf der Erde, ihr stilles Versenken des reifenden Korns und ihr unerklärtes Sichversagen in der öden Brache des winterlichen Feldes”. Ein anderes Gedicht widmet sich dem Phänomen des Horizonts, um hieran ebenso das Wechselspiel von Begrenzung und Entgrenzung aufzuzeigen. Schließlich ist die durch die Neuzeit eingeleitete Epoche an, in der – nochmals Heidegger zufolge – die Offenheit des Seins von einem totalen technischen Zugriff auf Welt verstellt wird. Ein weiteres Charakteristikum der Lyrik Venturas sei noch genannt: die geheime Kommunikation unter den Dingen, von denen diese lyrische Welt bestimmt ist. Das lyrische Ich findet einmal “im geschmack der kastanien / alle farben und // alle planeten”. Eins liegt in der Nachbarschaft des anderen, eins geht aus dem anderen hervor. Man kann hier von einer gewissen Nähe zum Surrealismus sprechen. Sie gehört zu jenen Phänomen des Wohnens, das Ventura in dem hier vorgestellten Gedichtband beschreibt.
JOÃO MIGUEL HENRIQUES

CHAVE DE IGNIÇÃO

Já aqui falei do poeta Ruy Ventura. Por duas ocasiões, creio. A propósito da tradução para o inglês do seu terceiro livro Assim Se Deixa Uma Casa (2003), e anunciando o lançamento do seu último título, Chave de Ignição (Labirinto, 2009). Foi este livro de matéria e sublimação que andei a ler, a espaços desiguais, nos últimos tempos. Incursões íntimas pelo comportamento físico do mundo próximo (paisagem, habitação), invariavelmente processadas no plano emocional e espiritual de um sujeito que caminha sempre muito para além dos limites do estrito, ainda que belíssimo, mapa sensorial. Um livro denso, de cuja pluralidade de sentidos e de virtudes formais não me cabe dar conta nestas breves palavras. Elas servem sobretudo para introduzir o poema que retirei do livro e que aqui se dá a conhecer.

[...]

Texto de João Miguel Henriques, publicado em 09/10/2009 no blogue Quartos Escuros:
http://quartosescuros.blogspot.com/2009/10/chave-de-ignicao.html
GONÇALO M. TAVARES

[prefácio de Chave de ignição, Labirinto, 2009]


“prefiro (…) a ligação do aço ao combustível”


Palavras que apontam para matérias e objectos – combustível, aço, dicionário, motor, chave – são de entre todas as que mais lembram essa energia que o choque físico entre o corpo e as coisas deixa sair. Porque entre o percurso de um ser vivo, o seu itinerário concreto, e os obstáculos do mundo, há, por vezes, avarias: o corpo falha e os obstáculos acertam; tropeçamos, somos derrubados. Porém, entre o choque e a queda, uma energia abandona – por convite do corpo – os objectos. E dos objectos transita para a atmosfera baixa. Daí, essa energia regressa de novo aos objectos – a sua origem – mas regressa já diferente.
O que Ruy Ventura procura é então esse encontro súbito e agressivo entre quem escreve e uma palavra; quebrar, pois, “o vidro que nos separa / do terramoto.

Maria Augusta Silva


Chave de ignição”.
Notícias Sábado, nº. 195 (revista do jornal Diário de Notícias, nº. 51315), de 3 de Outubro de 2009: 60 – 61.

Em Chave de Ignição, de Ruy Ventura, há uma viagem poética de “fogo imenso” e de frios ou do “vento e sombra de vento”, circulando “entre duas agonias” porque “(…) a chuva não afasta / a poeira dos olhos / os ramos reverdecem, mas não existe água / que possa vencer / a sonolência da tarde.” O escritor Gonçalo M. Tavares assina a breve nota de abertura, sendo a capa de Nuno de Matos Duarte.
Cada instante dos poemas revela uma invulgar imagética, questionando-nos sobre a transmutação dos elementos da vida e da própria morte. A energia do dizer poético de Ruy Ventura encontramo-la igualmente em obras anteriores, de que destacamos Arquitectura do Silêncio, distinguida com o Prémio Revelação de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores (2000), e Assim se Deixa Uma Casa (2003). O “amplo sentido inventivo” da sua escrita foi já sublinhado por ensaístas como Fernando Guimarães.
A casa, o corpo, a terra, o sangue, a água, a árvore, o tempo, a memória, o fogo e a cinza são matérias essenciais na poetização de um autor que pergunta: “Que noite vivo?” e “deixa nas árvores o último grito”. E sente a “pele queimada nas raízes”, porém confiante em que a seiva não se perderá mesmo permanecendo a dor de muitas feridas.
Ruy Ventura chama também para as páginas deste seu trabalho vultos da literatura como José Régio, C. Ronald, Maria Gabriela Llansol e Fiama. No final, visita a palavra de Jesus de Nazaré segundo S. Lucas: “Quem tem ouvidos para ouvir, oiça!” Neste “epílogo”, o poeta é imenso na elaboração da metáfora, no choque das imagens (ao mesmo tempo cruento e sublime), avançando com a grande sabedoria: “(…) nada existe. tudo coexiste (…)”.
EDMAR GUIMARÃES

Sobre Chave de ignição


"[...] Além da riqueza sutil das imagens, chamou-me a atenção a densidade dos poemas, neles não sobra espaço para expressões fáceis. Pretendo reler os seus livros anteriores, pois, ao que me parece, há uma amplitude de temas através de analogias, imagens misteriosamente recombinadas na descrição de uma viagem tensa, insólita, e ao mesmo tempo muito chão, retomadas nesta obra recente de forma admirável. O leitor experimenta as temperaturas do organismo do motor e do ser que o move, no embate com a paisagem e circunstâncias misteriosamente elaboradas. Imagens geradoras de energia, de transformação da matéria, através da queima propriamente orgânica de elementos se coadunam a sentimentos que tangem alturas existenciais. Não sei ainda o que me dói nessas palavras tão vivas, estou atento. Desconfio que essa chave abrirá o que procuro menos pelo contato que pela fusão de elementos. [...]"

(De um email enviado ao autor, a 23 de Setembro de 2009.)
NO ARQUIVO DE SUTTANA

O texto lido por João Candeias no lançamento do meu novo livro, Chave de ignição, passou a estar disponível no Arquivo de Renato Suttana. Agradeço mais uma vez a sua leitura e divulgação.






Esta é, em português, a primeira edição de um livro do escritor espanhol José María Cumbreño. A antologia poética intitula-se Teorias da Ordem e é traduzida do castelhano por Ruy Ventura. A obra é publicada pelas Edições Sempre-em-Pé, na sua colecção UniVersos.
(Quem carregar na imagem da contracapa poderá ler um dos poemas do livro; brevemente serão divulgados outros no blogue http://www.alicerces1.blogspot.com/).

IGREJA NOVA DE NOSSA SENHORA D’ ALVA, TEMPLO DA MEMÓRIA


Quando – no dia 10 de Setembro de 1809 – D. Francisco Gomes do Avelar entrou na nova igreja de Nossa Senhora d’ Alva em Aljezur não penetrou num templo sem história. Embora se tratasse, de facto, de uma construção elevada de raiz, esse edifício contava com pelo menos 14 anos de memória. Tal como um ser humano – que não começa a existir apenas na hora do seu nascimento – também uma casa (seja de Deus e/o
u dos Homens) tem sempre um passado, por mais recente que seja. Herdeira directa da velha matriz de Santa Maria d’ Alva, definitivamente arruinada no dia 1 de Novembro de 1755, depois de um violento terramoto que destruiu Lisboa e muitas povoações e edifícios do nosso país, a igreja que por estes dias faz 200 anos de sagração nasceu, de facto, no momento em que as autoridades locais de Aljezur decidiram construir um novo local de culto para a sua padroeira.
Embora não conheçamos a data exacta das primeiras diligências nesse sentido, sabemos que 12 anos após o cataclismo, em 1767, Rodrigo José d’ Andrada Homem (prior de Santa Maria de Tavira e visitador da Ordem de Sant’ Iago) se deslocou à vila em visitação e que, entre as normais incumbências que lhe cabiam, trazia a de escolher o melhor sítio para edificar uma nova igreja matriz, por ordem do rei D. José I. Logo nessa data, considerou incapaz de reconstrução o velho templo – pela sua localização e pelo seu isolamento –, tendo decidido que o local mais adequado seria o das casas arruinadas de D. Bruno de Sousa (um fidalgo espanhol radicado nesta localidade do Barlavento Algarvio), situadas no início da rua do Gabão, não muito longe da igreja da Misericórdia. Não foi essa, contudo, a vontade dos homens – por motivos que desconhecemos. E, apesar de precariamente instalada em pequenas ermidas (primeiro na de Santo António, depois na do Espírito Santo e, por fim, na Misericórdia), com graves incómodos para as celebrações religiosas – relatados em vários documentos –, seria preciso esperar pelo início da década de 90 do século XVIII para registarmos movimentos efectivos no sentido da construção de uma casa digna de Santa Maria d’ Alva e capaz de acolher os cristãos da maior parte do concelho de Aljezur (que, então, contava apenas com mais uma paróquia, a de Odesseixe, uma vez que nem a Bordeira nem a Carrapateira lhe estavam adstritas). É nesse momento também que surge a alavanca, o motor e o eixo da iniciativa, aquela figura que soube congregar vontades e alertar consciências: o bispo do Algarve, D. Francisco Gomes do Avelar.
Começando por verificar a precariedade do culto na sua primeira visitação, em 1790 ou 91, logo numa segunda deslocação a Aljezur toma posição inequívoca, ao afirmar que mais vale investir na construção de uma igreja matriz nova do que gastar fundos na reparação das várias ermidas afectadas pelo terramoto. (Pouco tempo antes – segundo afirma Francisco Xavier Ataíde de Oliveira – havia decidido reconstruir a igreja de Santa Maria da Graça, em Lagos. Não tendo recebido, contudo, o apoio da população e dos responsáveis locais para essa obra, apesar de prometido, “enojado de tanta avareza, largou os trabalhos do templo e partiu para Aljezur em auxilio dos proprietarios desta vila”). De acordo com um documento assinado pelo prior Bernardo Joaquim de Faria, é ele quem convence os aljezurenses e seus responsáveis a construírem a igreja no sítio da Barrada ou noutro com igual comodidade, nomeadamente aqueles que – como afirma o “Auto de sagração” – tinham “natural amor ao Lugar do seu nascimento” e antes o “querião ver augmentado; do que dezerto”. A discussão deve ter sido acesa, mas finalmente consideraram “a cituação da Villa […] como […] doentia, e sem capacidade para nella se edificar a nova Igreja, por ser escabroza sem terreno plano”. Por detrás dessa escolha, estruturada pelo bispo, estava no entanto um projecto mais vasto de carácter urbanístico (só concretizado a partir do último quartel do século XIX), plenamente integrado no Iluminismo racionalista que levou à construção da Baixa Pombalina lisboeta, de Vila Real de Santo António ou do núcleo central de Porto Covo: “a maior parte das Cazas ainda ezistentes [na vila velha], encravadas nos Cerros, se deveria[m] com efeito mudar para onde houvesse melhores comodidades publicas, e particulares a beneficio publico, e interesse dos moradores da Villa, e mais freguezia”. Foi então escolhida a Barrada (também chamada “Sílio”, como refere um documento de 1794), defronte das ruínas do castelo, onde existia um moinho desactivado e, soube-se mais tarde, um conjunto importante de vestígios arqueológicos, nomeadamente um complexo tumular com cerca de 5000 anos cuja importância maior foi registada por Estácio da Veiga. Terá D. Francisco Gomes querido cristianizar esse monumento, tendo tido conhecimento da sua existência? Terão os aljezurenses desejado consagrar o local de enterramento dos seus antepassados remotos? Infelizmente não sabemos.




Obtida a necessária licença da parte da rainha D. Maria I, em 20 de Maio de 1794 o bispo é nomeado inspector da obra, cabendo a construção da capela-mor, da sacristia e da torre ao comendador da Ordem de Sant’ Iago, o Marquês de Angeja, e o restante edifício aos paroquianos. Com autorização da monarca, as sobras do rendimento das confrarias e da fábrica contribuiriam para a despesa. Em Setembro desse ano, D. Francisco – “com a Camera, Nobreza, e Povo de Aljezur”, e também com o prior Bernardo Pereira e o anterior pároco Manuel Guerreiro Aires – pôde então subir ao lugar da futura igreja e aí aprovou a localização, traçando com as mãos na enxada “o alinhamento do novo Edificio que esperava ver concluido em sua vida como fruto das suas fadigas Apostolicas”. A 19 de Setembro de 1795 foi colocada a cruz no lugar do futuro altar-mor, assentando-se a primeira pedra no dia seguinte, em cerimónia muito concorrida. A construção iniciara-se no entanto meses antes, a 13 de Abril, com a cozedura da cal e, decerto, com a preparação do terreno. Em Outubro/Novembro desmontou-se o arco da capela-mor da igreja velha para se aproveitarem algumas pedras no templo novo, cumprindo a ordem de total demolição expedida pelo bispo. (A medieval Santa Maria d’ Alva servia já nessa altura como cemitério, “com pouco resguardo e decencia”). A construção da ousia da nova igreja iniciou-se entre 7 e 24 de Dezembro. Ao longo dos 14 anos que duraria a obra, continuaram abertas ao culto as igrejas de Santo António e do Espírito Santo – embora muito danificadas –, estando a matriz sediada na igreja da Misericórdia. As duas primeiras seriam profanadas por D. Francisco Gomes no dia 7 de Setembro de 1809, poucos dias antes da sagração da nova matriz, continuando a última em funções até aos nossos dias.
Ao longo de quase década e meia, foram vários os avanços e paragens sofridos pela obra de um edifício que ainda hoje se destaca na paisagem pela sua volumetria e pela sua situação no terreno. E se hoje é difícil avaliar com pormenor como se processou a elevação do corpo da igreja – devido ao desaparecimento de alguma documentação importantíssima existente até há poucas décadas no Arquivo da Diocese do Algarve, nomeadamente um livro de contas que ainda recebeu comentário (muito insuficiente e precário, diga-se) de Pinheiro e Rosa em 1993 –, temos a possibilidade de conhecer com algum detalhe como ocorreu a edificação da capela-mor e da sacristia, através de um livro também de contas localizado há poucos meses em Faro no referido Arquivo. Se não é este o lugar apropriado para delongas, convém registar que os 14 anos de demora se deveram em parte a suspensões frequentes que não vale a pena enumerar aqui, as quais chegavam a demorar vários meses. Mas, se a obra da capela-mor e da sacristia (cuja despesa chegou a 1.642.150 réis, paga quase totalmente pelo Marquês de Angeja) viu a sua construção terminada em finais de 1803, só seis anos mais tarde o corpo e a torre teriam a mesma sorte. E nessa parte, foi decisiva a acção de D. Francisco Gomes do Avelar que, de facto – para utilizar a expressão do seu biógrafo, Ataíde de Oliveira – “punha as toalhas”, isto é, contribuía com avultados montantes para a edificação de um templo de que a sua honrosa memória não pode separar-se. Basta referirmos que, dos 5.359.715 réis em que se importou a construção do corpo da igreja, mais de um quinto foi coberto pelo dinheiro entregue pelo prelado – não contando com o que terá gasto no pagamento do projecto, do retábulo principal e da escultura de Nossa Senhora d’ Alva, que se deveram certamente à sua iniciativa directa. A igreja nova não se teria concluído porém sem a contribuição de muitas outras pessoas de Aljezur: as que faziam parte das confrarias e da fábrica (cujos rendimentos iam para a obra), as que davam a sua contribuição monetária ou em géneros (como o antigo pároco da vila, Manuel Guerreiro Aires, que ofereceu 35.000 réis em trigo), as que deixavam a sua esmola numa caixa destinada às obras, etc..






Ao entrar na nova igreja de Nossa Senhora d’ Alva no dia 10 de Setembro de 1809, D. Francisco Gomes do Avelar sagrava um templo que era bem o reflexo do seu tempo e das suas ideias, interpretadas talvez por Francisco Xavier Fabri, a quem se costuma atribuir – com fundamentos sólidos – o risco do projecto. Se todo o edifício manifesta no interior e no exterior a aversão do arquitecto italiano a “huma Arquitectura intrincada”, com excesso decorativo, e o seu apreço pelo rigor e pela contenção, mais adequados ao carácter sério dos edifícios – não deixa de espelhar também o iluminismo católico do prelado algarvio, que não dispensava o respeito pela história das edificações e pela integridade de cada estilo, “imbuído” – no dizer de Carla Varela Fernandes – “já de um espírito pré-romântico, que olha para o passado longínquo com entusiasmo e admiração”.
A sua sensação não terá sido diferente da que ainda hoje sentimos quando visitamos o templo, agora duplamente centenário. Estamos perante um edifício neoclássico, cuja fachada – apesar da ausência de uma das torres sineiras, que não deveria faltar no projecto inicial – relembra a de alguns santuários de altitude, sobretudo a do Bom Jesus do Monte (em Braga), seu contemporâneo, erigido entre 1785 e 1811 a partir de um projecto de Carlos Amarante. O embrião de escadório que precede o adro parece apontar precisamente para essa ligação. O interior – com três naves, transepto, capela-mor profunda ladeada por duas capelas colaterais e capelas laterais com planta absidal – é no entanto um discreto arquivo de citações arquitectónicas, fazendo lembrar uma catedral em miniatura, a que não faltava – como ainda documentam algumas fotografias dos anos 60 do século XX – um cadeiral, hoje desaparecido. A nave central, mais elevada e mais larga do que as laterais, faz lembrar a estrutura das igrejas góticas mendicantes. A secção semicircular do fundo da capela-mor e das capelas laterais recorda a arquitectura renascentista, recuperando os modelos da antiguidade. A planta do retábulo-mor (atribuído com fundamento ao farense José da Costa, a partir de um risco de Fabri) – apresentando a racionalidade das altas colunas e do frontão triangular (repetido na frontaria e no coroamento do pano murário das traseiras da ousia), plenos de novo classicismo – não dispensa a lembrança dos tronos barrocos.




O carácter eclético do templo, propositadamente eclético, é reforçado pela disseminação na igreja de peças mais antigas, vindas de outros locais, aí colocadas mais tarde por necessidade ou desejo expresso: o retábulo do Santíssimo, onde se encaixou um sacrário barroco vindo da igreja de Santa Maria d’ Alva; o retábulo do Senhor dos Passos, rococó, vindo do convento do Desterro, em Monchique; as colunas maneiristas vindas do mesmo cenóbio, existentes nas capelas das Almas e de São Sebastião; a imaginária quinhentista, seiscentista e setecentista; a pia baptismal manuelina, proveniente da antiga matriz e aí colocada em 1813; o conjunto de pinturas maneiristas e barrocas, de proveniência desconhecida, oferecidas à igreja na década de 1920.
Seduz-nos este templo – tal como terá seduzido D. Francisco Gomes do Avelar. As alterações sofridas nestes 200 anos foram reduzidas e não modificaram a percepção geral da identidade do edifício – embora algumas intervenções de actualização e restauro não tenham sido felizes, como não foram felizes aqueles que suprimiram algumas peças que hoje muito enriqueceriam a igreja nova da Senhora d’ Alva (penso no púlpito e no cadeiral, mas também nas grades que resguardavam a capela-mor, a capela do Santíssimo e o baptistério).
Templo da memória, exige de todos os aljezurenses (depositários do seu património) uma atenção dedicada e zeladora que o conserve sem o alterar e, sobretudo, sem deturpar a simplicidade que presidiu ao espírito do seu fundador e do seu arquitecto. O trabalho será permanente, mas compensador. Porque nenhum ser humano passa da Existência à Vida sem entender e integrar todos os momentos que o antecederam.

Lido em Aljezur, a 13 de Setembro de 2009, na sessão comemorativa
do Bicentenário da sagração da Igreja Nova de Nossa Senhora d’ Alva
PARABÉNS, SARRABAL! (RUY VENTURA)

Ao abrir este presente, esta caixinha com laçarote de cetim, dei com o poema que publico abaixo. O seu autor é Ruy Ventura, outro dos meus «convidados» para o aniversário do Sarrabal.

O poema consta do último livro do Ruy, intitulado, sugestivamente, «Chave de Ignição». O lançamento da obra, com a chancela da Editorial Labirinto, efectuou-se no dia 16 do passado mês de Julho, na Sala Polivalente da Biblioteca Municipal de Sesimbra.

Tive conhecimento, por quem lá esteve (o Ruy sabe a razão da minha não comparência), que o lançamento foi um êxito: sala cheia, bom convívio, boa participação do poeta João Candeias (que não vejo há imenso tempo), a quem coube a apresentação da obra.

Conheci Ruy Ventura no lançamento de um livro de Rita Ferro. Poucos anos antes havia ganho o Prémio Revelação de Poesia/2000, atribuido pela Associação Portuguesa de Escritores (contava, apenas, 27 anos de idade).

Muitos são já os livros que publicou, dividindo-se o seu trabalho pela poesia, ensaio, crónica e tradução.

Mas o Ruy é também um bloguista. São dele os blogs Estrada do Alicerce (um pouco abandonado) e Arquivo do Norte Alentejano. Aqui, com o blog actualizado, podemos admirar, principalmente, boas fotografias do nosso património arqueológico. Ruy Ventura dá-nos a conhecer monumentos e belíssimas fachadas e riquíssimos interiores de muitas das capelas e igrejas espalhadas (pois, com certeza!) por várias localidades alentejanas: Portalegre (terra natal do Ruy), Castelo de Vide, Marvão, Alpalhão, Nisa e outras. Sem dúvida, um blog a visitar.

Muito mais havia a dizer, mas é tempo de voltar a pegar na passadeira vermelha e a estendê-la, aqui, no Sarrabal. Ruy Ventura, hoje é a sua vez. Faça o obséquio de passar!

Soledade Martinho Costa in http://sarrabal.blogs.sapo.pt/85934.html a 13/8/2009



A ÁGUA SOBREVIVE


a água sobrevive
ao esplendor do mundo.
o assento
desmonta a paisagem.
a primeira dor aproxima-nos,
alimenta a força da corrente
- raiz e crescimento.

os arcos abateram.
a biografia reserva-nos
um pouco de sangue
na confluência
do medo
com a memória.

recorda-nos que o rio
escreveu
a morte e a viagem.

desvia-nos do silêncio.
acompanha o sono
até à nascente.

esta manhã não termina.
o assento faz-se. sem pausas.

teu nome, junto à foz,
resguarda-me

da morte.

Ruy Ventura