CONTRAMINA
1.
sangra-se a criatura.
introduzida entre os músculos
a faca (ou lança) encontra imagens em dispersão
objectos com bolor ou com ferrugem
mãos cheias de sangue
folhas e livros com nódoas de tinta e de gordura.
para que viva e permaneça
é necessário que o golpe rasgado entre os ossos
lance nos olhos do criador
alguns decilitros de água
salgada, nascida nas vísceras de um corpo
em que algumas manchas na pele
revelam úlceras no estômago ou no duodeno.
apenas água – sal onde todos os sedimentos
(do tempo e do espaço?), todas as secreções
(da existência?) se dissolveram
para produzirem uma luz branca
que, tendo atravessado o prisma
das palavras, se multiplicou num espectro – sem limites.
*
aberta a ferida, o sangue pode alimentar o criador
mas jamais sustentará a criatura.
guardado nos intestinos, permanece –
até à solução nas entranhas
de quem se escreve e modifica.
em parte assimilado, em parte defecado
poucos vestígios deixa para além de uma memória
cujos fragmentos ninguém consegue (ou deseja) registar.
*
nada resulta da análise do sangue ou da água.
colocados sobre lâminas de vidro
não deixam vestígios que permitam ao criador
avaliar a consistência da criatura.
glóbulos e plaquetas depressa apodrecem
na insegurança de um plasma
sem capacidade para resistir à erosão
de algumas células, cujo núcleo se divide
até à explosão do tempo.
numa das lamelas há contudo
pequenos cristais de cloro e de sódio.
regressada ao vapor do início, a água
proveniente do tórax
entra de novo num ciclo feito de fogo e de metamorfose.
mesmo sem espaço, volta a irrigar
quanto transcende a estrutura
de um edifício perfurado pela faca ou pela lança.
*
sangra-se o poema. não sobrevive –
se a água não circula pelas veias.
70 % do poema é apenas água – salgada –
sal da terra. a mina sustenta
todas as formas de vida que povoam
e elevam a existência.
haverá células mortas (o ferro evita a anemia
mas não impede a secura
e o apodrecimento das palavras).
o corpo permanece. com sangue, sem água
não passará no entanto de um cadáver –
múmia conservada como pedra
numa redoma de vidro.
2.
a gordura (das palavras)
altera a circulação do sangue
nas veias que conduzem ao coração (do poema).
a cisão dos átomos difunde sobre o corpo
uma sombra invisível.
cria – na garganta e nas glândulas –
nódulos que vão resistindo à estabilidade da matéria.
a luz (não nego) atravessa a edificação dos ossos.
chega a devorar pedaços de carne
que Saturno não poderia rejeitar.
mas a gordura (das palavras)
vai alterando a circulação (no poema).
há corações que explodem
mãos que enegrecem quando a tarde avança.
cessante, a escrita anula
a escrita e a leitura.
(traduzir aumentaria a instabilidade das células.)
há ouro lançado no aterro.
a amputação dos dedos salvar-se-ia por ali.
3.
a gordura submerge os ossos –
e o poema. a anorexia (a que alguns chamam
“elegância” ou “concisão”) impede os movimentos de um corpo
que precisa de músculos para subir
até à boca – do vento ou do inferno –
lugares sem espaço nem semáforos
na circulação da alma.
é preciso que as glândulas funcionem
apenas o necessário.
o excesso e o defeito
perturbam o equilíbrio do organismo.
o trânsito, nos intestinos, rejeita uma vida sedentária.
fibras, bífidus e muita água, sem aromas, da nascente
auxiliam a digestão de um mundo
com pés mergulhados em óleo de fritura
comendo carne e tubérculos
sem qualquer capacidade de dissolução na corrente
que alimenta os vasos sanguíneos.
submersos os ossos, entupidas as veias –
o colesterol do poema impede a circulação
do sangue nas palavras (água salgada a irrigar as estruturas do cérebro).
pode bater o coração. pode bater.
sem a agilidade e o dinamismo
das estruturas e do pensamento
nada nem ninguém conseguirá contudo
evitar a síncope das válvulas do sentido.
ou, pelo menos, o inchaço dos membros inferiores –
à espera da amputação pela gangrena.
4.
o retrocesso dos músculos e da carne
colou aos ossos uma pele sem água.
o esqueleto surge à superfície.
(sem reboco, a estrutura não resiste
ao embate da chuva e do vento.
pilares e tijolos sujeitam-se a uma erosão
que, em pouco tempo, arrasa o edifício.)
a pele protege os ossos e a cartilagem.
não é contudo suficiente para compensar
a atrofia dos músculos.
o movimento do corpo apresenta
um frágil equilíbrio. quase morta, a criatura
espera sobre a mesa
o avanço do lume e a dispersão das cinzas.
5.
uma longa tábua (de castanho? de vidoeiro?)
apresenta sobre os veios
um corpo em decomposição.
o quadro, composto em Basileia
no ano de 1521, chama-nos
para o seu exercício de síntese.
pintado agora, o apodrecimento das células
seria apenas uma linha sinuosa sobre o espaço.
o grafiti ocuparia paredes e paredes
de betão sem tinta. nada mais seria necessário.
ressuscitar é recompor os átomos
carbonizados pela introdução do ferro e da madeira
entre os músculos e os ossos.
6.
a autópsia confirma o estado do cadáver.
a putrefacção suspende-se entre o quarto
e o sexto dia de enterramento.
aberta a caixa toráxica, verifica-se
uma total ausência de vísceras.
sem coração, sem baço nem pulmões
sem fígado nem estômago nem intestinos
às paredes internas encostam-se no entanto
restos de uma complexa estrutura de circulação
que conduz o sangue e a linfa
do cérebro às diversas partes do corpo.
observado o esqueleto, nota-se a presença
de cristais de salgema entre as vértebras
e também, em menor quantidade,
sobre o externo e noutros ossos do tronco.
a pele, a iniciar o processo de desidratação,
apresenta pequenas manchas, entre o verde e o roxo,
distribuídas de maneira quase uniforme –
mas com maior incidência sobre o polegar
o médio e o indicador da mão direita.
7.
cinza. sobre as cinzas, a raiz do zambujeiro.
sobre as raízes da árvore, o mijo dos canídeos
ou de qualquer bexiga apressada
na incontinência dos cálculos
literários.
*
não espereis azeite desses ramos.
placas de mármore não estimula as raízes.
sem mão na poda ou na enxertia
escórias de chumbo e cinza de papel
nada podem fazer pelo zambujeiro.
*
palavras dessas não servem para estrume
mesmo com esterco de bichos à mistura.
8.
a impureza dos astros compõe o firmamento.
o poeta entra de burro na cidade
deixando pelas ruas o estrume das palavras.
resíduos de palha e de verdura
fermentam na calçada
fazendo romper por entre as casas
línguas de fogo que queimam o rosto e os cabelos.
o odor do estrume incomoda os transeuntes.
com a mão no nariz, abanam a cabeça
não percebendo que o gás libertado
aqueceria o interior da casa onde habitam.
*
batem latas do lado do rio.
afugentam os abutres que tentam debicar
a madeira do poeta. não seria necessário.
ao seu lado, os corvos resguardam a impureza
do corpo, onde brilha ainda a memória dos navegantes
e de outro esperma lançado sobre as sílabas.
o navio reflecte a terra inteira.
os espelhos trazem de dentro todo o sangue
que enobrece a madrugada.
há risos e fumo cortando o horizonte.
as ondas agasalham a montanha.
trazem de longe o asfalto pisado
e as imagens estranhas que povoam a forja
onde fundiram a imperfeição dos sonhos.
*
nada subsiste do corpo do poeta.
ossos, cabelo, tripas, veias, pele
e outras vísceras irão participar da podridão dos mortos.
os átomos dispersar-se-ão. se o outro disse a verdade
reviverão nas árvores, na pedra, noutros pedaços
da madeira de deus (alguns, talvez, abutres como os de agora).
o estrume do poeta reverdecerá de outro modo.
em ervas daninhas que nunca alimentarão
o estômago de um anjo ou de uma besta
mas guiarão os olhos até à justiça da sombra
permitindo a constante e discreta movimentação do vento
que levará – sem pressas – sementes igualmente daninhas
até aos confins da terra.
9.
as flores, nesse prado, são de plástico.
brilham. parecem lançar sobre nós um odor intenso.
são na verdade plantas de cemitério
dispostas sobre o campo –
nos seus caules de arame revestido.
gotas de chuva deslizam nas pétalas de uma rosa.
toco-a com os dedos. não encontro água
mas imitação de água.
acrílico ou silicone colado sobre o plástico
em que a cor – iluminando embora o olhar
(e a sepultura) – nada oferece aos sentidos.
enterradas, essas flores permanecerão –
mas nunca serão flores.
para viverem, precisariam de morrer
de apodrecer – como escreveu Saúl
das rosas (verdadeiras)
com raízes, espinhos e perfume.
10.
a memória-descritiva assegura-nos
de que a estátua (ou medalhão)
é de bronze, de pedra ou cera d’ abelhas –
mas no fundo temos a certeza
de que o miolo da efígie
não passa de sabão ou detergente.
em segredo, a imagem do poeta
foi talhada nos litros de gordura
que a reciclagem juntou com devoção
em latas ferrugentas ou bacias –
e que a diligência misturou em casa
com certo químico, para esfregar a roupa.
há um ar de barrela na escultura
sujeita à erosão dos elementos
(para que a face não se reconheça).
se a cinza branqueava o pano-cru
e o sol corava, sobre a erva, a roupa branca –
do esperma, da urina ou da catinga –
porque não lavrar no sabonete
(no omo, no clarim, noutro produto –
bom prà lavagem do corpo ou da farpela)
busto ou memória que pareça bronze
pedra-mármore ou placa de cantaria?
lavam mais branco estes rituais
quando não têm espinha ou criação.
assim se evitam sobre as faces cândidas
as nódoas e as manchas do passado:
de um lado a graxa, o unto, o beija-mão;
do outro o escarro, o pontapé, a morte.
(Tirando o nº. 7, estes poemas foram publicados no número 1 da revista Suroeste, editada em Badajoz por Antonio Sáez Delgado. Surgem agora numa versão versificada.)
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Cartaz do evento |
Lendo poemas publicados no nº. 1 da revista SUROESTE (foto de Fernando Aguiar) |
Lendo poemas (foto de Fernando Aguiar) |
Lendo poemas (foto de Fernando Aguiar) |
Outra fotografia do jantar. |
A CIDADE ATRAVESSA
18 de Maio de 2011. Participação em Lisboa no Festival Internacional de Poesia "A Cidade Atravessa", organizado por Márcio-André com o apoio da Embaixada do Brasil, o qual teve lugar na Casa Fernando Pessoa.
LEVI CONDINHO
"Ruy Ventura - Instrumentos de Sopro"
in Colóquio / Letras, nº 176, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, Janeiro / Abril de 2011: 227 - 229.
Vencedor, em 2000, do Prémio Revelação de Poesia, da Associação Portuguesa de Escritores, Ruy Ventura, nascido em 1973 na Serra de São Mamede, publicou, depois do seu primeiro livro de poesia, Arquitectura do Silêncio, mais cinco livros de poemas, alguns traduzidos em Espanha e um nos Estados Unidos. E menciono apenas a sua produção poética; por outros géneros e actividades literárias se espraiou Ruy Ventura.
Senhor de uma cada vez mais apurada ciência da linguagem, onde detectamos a laboriosa reflexão sobre a mesma, enformada por uma vasta e ecléctica cultura, proponho-me extrair da leitura da sua obra, e, sobretudo, de Instrumentos de Sopro, dois tópicos (entre outros possíveis) fundadores da sua poética: a) o elementarismo; b) a religião/religação.
Refiro o elementarismo, desde logo, pela atenção devota às coisas do mundo, da natureza (dos elementos) do tempo, da(s) memória(s), dos ritos do trabalho / da lavoura (e da arte), da história, do microcosmos do pequeno – mas nobilitante – quotidiano, ao macrocosmos em que ousamos, através do “sopro”, emitido a partir dos “instrumentos” de um corpo indissociado do espírito, pesarmo-nos na “balança transcendente das coisas” (Antero de Quental): “nesta noite em que vigiamos / o forno do alto da mais alta torre” (poema 39, “síntese”).
Determinante do elementarismo em questão é a própria matéria da linguagem, plena de contenção, de palavras sopesadas e oferecidas, uma a uma, diríamos, ao “sabor / paladar”, ao “táctil” do leitor, numa coesão orgânica que nos envia, remotamente, para as poéticas, por exemplo, de um certo Carlos de Oliveira, de um Nuno Guimarães. Palavras substanciais, em que signo e referente se casam indissociados, assentes, sobretudo, em substantivos (pedra, árvore, água, vinho, pão, casa, corpo, etc.) que raramente necessitam do abrilhantamento do adjectivo para projectarem o fulgor do seu brilho. Palavras associadas, por via de sábias “técnicas de engate” em que o óbvio é recusado, amiúde, para dar lugar ao efeito de estranhamento, à inesperada substituição de signos (“a janela guarda no poço uma língua estranha”), palavras que escavam, que raspam, que procuram o vestígio, o achado arqueológico, o arcano, “palavras que ninguém entende mas todos queremos escutar” (8, “evocação”), pelas quais o “caçador afasta o nevoeiro para melhor entender o nevoeiro” (2, “aparição”), nas quais coabitam “os ossos e a estrutura mineral das horas” (11, “registo”).
Referindo agora o outro tópico, aqui me surge o maior embaraço da escolha, já que toda a obra (e a vida, sei-o eu) de RV é, mais do que atravessada, pan-estruturada pela religião/religação. Não por acaso, RV (num poema do epílogo) escreve “ora. e labora. ora e labora” em alusão à recomendação de São Bento “ora et labora et noli contristari”, aqui se podendo acrescentar, para maior abrangência contra um possível reducionismo da sentença beneditina, o conselho de Agostinho da Silva: “Tudo o que fizermos, o façamos bem feito […] com disposição e intensidade litúrgicas.”
Se a religião surge, permanentemente, em RV, nos seus aspectos visíveis, rituais, litúrgicos (catedral, torre, sino, paramento…) com fortes reminiscências dos textos sagrados do cristianismo e do judaísmo (“a árvore / nascida no início.” – 25, “escritura”), numa denúncia clara da saudável prática cristã e católica (mas ecuménica) por parte do poeta, pobre seria a leitura da sua poesia se não ultrapassássemos essa prática/mundo no sentido de uma demanda/outra que é a do espiritual (por exemplo, no sentido estético kandinskyano), da luta pelo “achamento” do coração do invisível, em que “dois anjos abraçam o cume da montanha” (25, “escrituras”), enquanto se escutam “os sinos embalando o nevoeiro” (9, “regresso”).
E posso salientar, ainda nesse contexto de religião/religação, a denúncia, o protesto, a lamentação, contra a profanação do mundo (42, “cadáver” – sobre a transformação da igreja de São Julião, na Baixa lisboeta, em garagem de automóveis), contra o desrespeito e os atentados (incêndio da serra de Castelo de Vide, as questões em torno da serra da Malcata, etc.) contra a natureza (sagrada natureza), contra o património artístico e religioso. E afirmo a minha admiração por um poema que, só por si, vale todo um livro (5, “purificação”), texto admirável em que se rememora toda a existência da igreja de São Domingos, em Lisboa, palco de fogo, de fogos (o fogo conclamando o fogo), queima de homens e queima (“o incêndio purificou a pedra e a memória”) do edifício no seu (belo, recordo) interior.
Ruy Ventura recorre neste seu livro a umas “notas de autor” em que nos fornece um “mapa/guião” como visita guiada aos seus poemas que, “não sendo tópicos ou ecfrásticos”, assentam sobre “elementos materiais (povoações, lugares, casas, igrejas, castelos, sítios e achados arqueológicos, esculturas e pinturas) que convulsionaram as palavras”. Reconhece-se aí uma mais-valia para a leitura, mas julgo que, mesmo que, como outros poetas fazem, se deixassem os poemas na obscuridade, sem tais pistas de leitura, a autonomia, só por si, de cada poema, já nos bastaria. Na “travessia” (poema 15) entre Amieira e as Portas do Ródão, leiamos, em aberto, qualquer outra travessia (a vida…): “trasladaram o trigo e o fermento / com que fui diminuindo / a minha sede. / só não quiseram levar o calor / do vinho eterno. a barca era demasiado estreita.”
Ruy Ventura é já um poeta maior da nossa contemporaneidade. Mas ele também sabe que “a linha desconhece esta presença. / o padrão (se existiu) foi engolido / pela velocidade com que passaram” (15, “travessia”).
"Ruy Ventura - Instrumentos de Sopro"
in Colóquio / Letras, nº 176, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, Janeiro / Abril de 2011: 227 - 229.
Vencedor, em 2000, do Prémio Revelação de Poesia, da Associação Portuguesa de Escritores, Ruy Ventura, nascido em 1973 na Serra de São Mamede, publicou, depois do seu primeiro livro de poesia, Arquitectura do Silêncio, mais cinco livros de poemas, alguns traduzidos em Espanha e um nos Estados Unidos. E menciono apenas a sua produção poética; por outros géneros e actividades literárias se espraiou Ruy Ventura.
Senhor de uma cada vez mais apurada ciência da linguagem, onde detectamos a laboriosa reflexão sobre a mesma, enformada por uma vasta e ecléctica cultura, proponho-me extrair da leitura da sua obra, e, sobretudo, de Instrumentos de Sopro, dois tópicos (entre outros possíveis) fundadores da sua poética: a) o elementarismo; b) a religião/religação.
Refiro o elementarismo, desde logo, pela atenção devota às coisas do mundo, da natureza (dos elementos) do tempo, da(s) memória(s), dos ritos do trabalho / da lavoura (e da arte), da história, do microcosmos do pequeno – mas nobilitante – quotidiano, ao macrocosmos em que ousamos, através do “sopro”, emitido a partir dos “instrumentos” de um corpo indissociado do espírito, pesarmo-nos na “balança transcendente das coisas” (Antero de Quental): “nesta noite em que vigiamos / o forno do alto da mais alta torre” (poema 39, “síntese”).
Determinante do elementarismo em questão é a própria matéria da linguagem, plena de contenção, de palavras sopesadas e oferecidas, uma a uma, diríamos, ao “sabor / paladar”, ao “táctil” do leitor, numa coesão orgânica que nos envia, remotamente, para as poéticas, por exemplo, de um certo Carlos de Oliveira, de um Nuno Guimarães. Palavras substanciais, em que signo e referente se casam indissociados, assentes, sobretudo, em substantivos (pedra, árvore, água, vinho, pão, casa, corpo, etc.) que raramente necessitam do abrilhantamento do adjectivo para projectarem o fulgor do seu brilho. Palavras associadas, por via de sábias “técnicas de engate” em que o óbvio é recusado, amiúde, para dar lugar ao efeito de estranhamento, à inesperada substituição de signos (“a janela guarda no poço uma língua estranha”), palavras que escavam, que raspam, que procuram o vestígio, o achado arqueológico, o arcano, “palavras que ninguém entende mas todos queremos escutar” (8, “evocação”), pelas quais o “caçador afasta o nevoeiro para melhor entender o nevoeiro” (2, “aparição”), nas quais coabitam “os ossos e a estrutura mineral das horas” (11, “registo”).
Referindo agora o outro tópico, aqui me surge o maior embaraço da escolha, já que toda a obra (e a vida, sei-o eu) de RV é, mais do que atravessada, pan-estruturada pela religião/religação. Não por acaso, RV (num poema do epílogo) escreve “ora. e labora. ora e labora” em alusão à recomendação de São Bento “ora et labora et noli contristari”, aqui se podendo acrescentar, para maior abrangência contra um possível reducionismo da sentença beneditina, o conselho de Agostinho da Silva: “Tudo o que fizermos, o façamos bem feito […] com disposição e intensidade litúrgicas.”
Se a religião surge, permanentemente, em RV, nos seus aspectos visíveis, rituais, litúrgicos (catedral, torre, sino, paramento…) com fortes reminiscências dos textos sagrados do cristianismo e do judaísmo (“a árvore / nascida no início.” – 25, “escritura”), numa denúncia clara da saudável prática cristã e católica (mas ecuménica) por parte do poeta, pobre seria a leitura da sua poesia se não ultrapassássemos essa prática/mundo no sentido de uma demanda/outra que é a do espiritual (por exemplo, no sentido estético kandinskyano), da luta pelo “achamento” do coração do invisível, em que “dois anjos abraçam o cume da montanha” (25, “escrituras”), enquanto se escutam “os sinos embalando o nevoeiro” (9, “regresso”).
E posso salientar, ainda nesse contexto de religião/religação, a denúncia, o protesto, a lamentação, contra a profanação do mundo (42, “cadáver” – sobre a transformação da igreja de São Julião, na Baixa lisboeta, em garagem de automóveis), contra o desrespeito e os atentados (incêndio da serra de Castelo de Vide, as questões em torno da serra da Malcata, etc.) contra a natureza (sagrada natureza), contra o património artístico e religioso. E afirmo a minha admiração por um poema que, só por si, vale todo um livro (5, “purificação”), texto admirável em que se rememora toda a existência da igreja de São Domingos, em Lisboa, palco de fogo, de fogos (o fogo conclamando o fogo), queima de homens e queima (“o incêndio purificou a pedra e a memória”) do edifício no seu (belo, recordo) interior.
Ruy Ventura recorre neste seu livro a umas “notas de autor” em que nos fornece um “mapa/guião” como visita guiada aos seus poemas que, “não sendo tópicos ou ecfrásticos”, assentam sobre “elementos materiais (povoações, lugares, casas, igrejas, castelos, sítios e achados arqueológicos, esculturas e pinturas) que convulsionaram as palavras”. Reconhece-se aí uma mais-valia para a leitura, mas julgo que, mesmo que, como outros poetas fazem, se deixassem os poemas na obscuridade, sem tais pistas de leitura, a autonomia, só por si, de cada poema, já nos bastaria. Na “travessia” (poema 15) entre Amieira e as Portas do Ródão, leiamos, em aberto, qualquer outra travessia (a vida…): “trasladaram o trigo e o fermento / com que fui diminuindo / a minha sede. / só não quiseram levar o calor / do vinho eterno. a barca era demasiado estreita.”
Ruy Ventura é já um poeta maior da nossa contemporaneidade. Mas ele também sabe que “a linha desconhece esta presença. / o padrão (se existiu) foi engolido / pela velocidade com que passaram” (15, “travessia”).
LIVROS DE 2010
Considero inútil a listagem dos melhores livros publicados num ano que fecha. Serve apenas interesses comerciais - uma vez que é impossível tê-los lido todos. Como se sabe, ninguém pode servir ao mesmo tempo o Espírito e o Dinheiro... Pelo contrário, parece-me útil a revelação dos livros que mais marcaram um ser humano durante uma parcela do tempo. Há anos que o venho fazendo e este ano não é excepção. Aqui fica a lista:
ETTY HILLESUM - "Cartas" e "Diário 1943 - 1945"
ROBERT MUSIL - "L' Homme sans Qualités" (edição francesa)
PEDRO MACIEL - "Como deixei de ser deus" (2009)
ALBERTO VELHO NOGUEIRA - "Baldes - Restos" (2001)
AMADEU BAPTISTA - "Doze Cantos do Mundo" (2009)
PEDRO TAMEN - "O Livro do Sapateiro" (2010)
HALLDÓR LAXNESS - "Gente Independente" (1934/35)
YVES NAMUR - "Figures du très obscur" (2000)
MARIA TERESA DUARTE MARTINHO - "Visões e Demonstrações" (2006)
TEIXEIRA DE PASCOAES - "Ensaios de Exegese Literária e Vária Escrita" (2004)
JULIO CORTÁZAR - "Rayuela" (1963)
GEORGE ORWELL - "Livros & Cigarros"
CASÉ LONTRA MARQUES - "A densidade do céu sobre a demolição" e "Saber o sol do esquecimento" (2010)
JOSEPH RATZINGER - "Fé e Futuro" (1970) e "A Europa de Bento na crise de culturas" (2005)
MÁRCIO-ANDRÉ - "Ensaios Radioativos" (2008)
FERNANDO ECHEVARRÍA - "Lugar de Estudo" (2009)
FIALHO D' ALMEIDA - "Barbear, pentear"
MARC CHAGALL - "Ma Vie" (1922)
LUIZ PACHECO - "Textos Sadinos"
FREY IOANNES GARABATUS - "As Quybyrycas" (1972)
ROBERTO BOLAÑO - "2666" (2004)
ADALBERTO ALVES - "As Sandálias do Mestre" (2009)
LUÍS DE CAMÕES - "Rimas"
FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO - "Obra Breve"
J. P. OLIVEIRA MARTINS - "Correspondência"
NUNO RAMOS - "Ó" (2008)
CRISTOVAM PAVIA - "Poesia" (ed. 2010)
MARIA GABRIELA LLANSOL - "Livro de Horas II"
ALBERTO MANGUEL - "The Library at Night" (2006) e "Reading Pictures [...]" (2000)
EÇA DE QUEIRÓS - "A Correspondência de Fradique Mendes" (1900)
J. M. G. LE CLÉZIO - "L' Extase Matérielle" (1967)
ÁLVARO RIBEIRO - "A Razão Animada" (1956)
Considero inútil a listagem dos melhores livros publicados num ano que fecha. Serve apenas interesses comerciais - uma vez que é impossível tê-los lido todos. Como se sabe, ninguém pode servir ao mesmo tempo o Espírito e o Dinheiro... Pelo contrário, parece-me útil a revelação dos livros que mais marcaram um ser humano durante uma parcela do tempo. Há anos que o venho fazendo e este ano não é excepção. Aqui fica a lista:
ETTY HILLESUM - "Cartas" e "Diário 1943 - 1945"
ROBERT MUSIL - "L' Homme sans Qualités" (edição francesa)
PEDRO MACIEL - "Como deixei de ser deus" (2009)
ALBERTO VELHO NOGUEIRA - "Baldes - Restos" (2001)
AMADEU BAPTISTA - "Doze Cantos do Mundo" (2009)
PEDRO TAMEN - "O Livro do Sapateiro" (2010)
HALLDÓR LAXNESS - "Gente Independente" (1934/35)
YVES NAMUR - "Figures du très obscur" (2000)
MARIA TERESA DUARTE MARTINHO - "Visões e Demonstrações" (2006)
TEIXEIRA DE PASCOAES - "Ensaios de Exegese Literária e Vária Escrita" (2004)
JULIO CORTÁZAR - "Rayuela" (1963)
GEORGE ORWELL - "Livros & Cigarros"
CASÉ LONTRA MARQUES - "A densidade do céu sobre a demolição" e "Saber o sol do esquecimento" (2010)
JOSEPH RATZINGER - "Fé e Futuro" (1970) e "A Europa de Bento na crise de culturas" (2005)
MÁRCIO-ANDRÉ - "Ensaios Radioativos" (2008)
FERNANDO ECHEVARRÍA - "Lugar de Estudo" (2009)
FIALHO D' ALMEIDA - "Barbear, pentear"
MARC CHAGALL - "Ma Vie" (1922)
LUIZ PACHECO - "Textos Sadinos"
FREY IOANNES GARABATUS - "As Quybyrycas" (1972)
ROBERTO BOLAÑO - "2666" (2004)
ADALBERTO ALVES - "As Sandálias do Mestre" (2009)
LUÍS DE CAMÕES - "Rimas"
FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO - "Obra Breve"
J. P. OLIVEIRA MARTINS - "Correspondência"
NUNO RAMOS - "Ó" (2008)
CRISTOVAM PAVIA - "Poesia" (ed. 2010)
MARIA GABRIELA LLANSOL - "Livro de Horas II"
ALBERTO MANGUEL - "The Library at Night" (2006) e "Reading Pictures [...]" (2000)
EÇA DE QUEIRÓS - "A Correspondência de Fradique Mendes" (1900)
J. M. G. LE CLÉZIO - "L' Extase Matérielle" (1967)
ÁLVARO RIBEIRO - "A Razão Animada" (1956)
AULA IBÉRICA
[António Sáez Delgado]
Ruy Ventura
'Instrumentos de sopro'
Diário espanhol Hoy, 03.01.2011:
http://www.hoy.es/v/20110103/sociedad/h2aula-iberica-h2ruy-ventura-20110103.html
Son muchos los lectores de Raya de Papel que nos han pedido que ampliemos nuestras propuestas de lectura a libros originales en lengua portuguesa de los que no exista traducción española. Uno muy recomendable es este 'Instrumentos de sopro', de Ruy Ventura, publicado por Edições Sempre-em-Pé, y que supone la séptima entrega poética de este autor de Portalegre. En él explora buena parte del terreno simbólico que sostiene su obra, una de las más personales de la reciente poesía lusa. La cita de Josep M. Rodríguez que le sirve de prólogo («Vivir es abrazar oscuridades: / de lo que no sabemos a lo que no sabemos, / desde una lejanía a otra lejanía. / Todo es inaccesible») ofrece ya claros indicios del territorio que habita la poesía de Ruy Ventura, que se convierte en indagación profunda y serena sobre la trascendencia de la existencia y sus huellas en la vida cotidiana y en el espacio, convertido en territorio, que habitamos. Es la suya una poesía profundamente simbólica, que concede especial importancia a lo sustantivo, a la esencia de esa búsqueda permanente. Y lo hace desde una poética que bebe de diferentes tradiciones y en la que cobran singular importancia sus contactos, como buen hombre de la Raya, con algunos escritores extremeños. La proximidad del poeta con su tierra es otra de las constantes de su poesía, que nace con vocación universal y con las mismas preocupaciones con que sus antepasados cultivaban los campos y veían correr los ríos del Alto Alentejo. Poesía, en suma, reflexiva, meditativa, afilada a veces como un cuchillo.
[António Sáez Delgado]
Ruy Ventura
'Instrumentos de sopro'
Diário espanhol Hoy, 03.01.2011:
http://www.hoy.es/v/20110103/sociedad/h2aula-iberica-h2ruy-ventura-20110103.html
Son muchos los lectores de Raya de Papel que nos han pedido que ampliemos nuestras propuestas de lectura a libros originales en lengua portuguesa de los que no exista traducción española. Uno muy recomendable es este 'Instrumentos de sopro', de Ruy Ventura, publicado por Edições Sempre-em-Pé, y que supone la séptima entrega poética de este autor de Portalegre. En él explora buena parte del terreno simbólico que sostiene su obra, una de las más personales de la reciente poesía lusa. La cita de Josep M. Rodríguez que le sirve de prólogo («Vivir es abrazar oscuridades: / de lo que no sabemos a lo que no sabemos, / desde una lejanía a otra lejanía. / Todo es inaccesible») ofrece ya claros indicios del territorio que habita la poesía de Ruy Ventura, que se convierte en indagación profunda y serena sobre la trascendencia de la existencia y sus huellas en la vida cotidiana y en el espacio, convertido en territorio, que habitamos. Es la suya una poesía profundamente simbólica, que concede especial importancia a lo sustantivo, a la esencia de esa búsqueda permanente. Y lo hace desde una poética que bebe de diferentes tradiciones y en la que cobran singular importancia sus contactos, como buen hombre de la Raya, con algunos escritores extremeños. La proximidad del poeta con su tierra es otra de las constantes de su poesía, que nace con vocación universal y con las mismas preocupaciones con que sus antepasados cultivaban los campos y veían correr los ríos del Alto Alentejo. Poesía, en suma, reflexiva, meditativa, afilada a veces como un cuchillo.
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Aljezur, 18 de Dezembro de 2010
apresentação do livro "Memória d' Alva" na igreja matriz de Nossa Senhora d' Alva:
1 - Intervenção de José António Falcão
2 - Intervenção de RV
3 - RV e José António Falcão na sessão de autógrafos
(Mais fotografias, de F. Barradinha, em http://www.arquivodaljezur.blogspot.com/)
Ruy Ventura:
esboço de uma biobibliografia
Filho de um natural do concelho de Marvão e de mãe nascida no termo de Portalegre, Ruy Ventura descende de alentejanos da região da Serra de São Mamede, tendo entre os seus ascendentes paternos alguns judeus de Castelo de Vide supliciados pela Inquisição de Évora. A sua árvore genealógica revela ainda na sua ascendência minhotos da região de Ponte de Lima, bem como de alguns migrantes espanhóis, nomeadamente extremenhos, bascos e andaluzes. Parece que houve ainda um antepassado seu, de apelido Petiti, que proveio do Piemonte, no norte de Itália.
Registado como Rui Pedro Biscainho Ventura (o “y” - littera pithagorica - é homenagem aos poetas Ruy Belo e Ruy Cinatti, dois cristãos católicos como ele…), nasceu no Hospital da Misericórdia da cidade de Portalegre, junto da igreja do Espírito Santo, corria a madrugada de 27 de Dezembro de 1973, dia do apóstolo e evangelista São João. Não cessara ainda esse ano quando uma urgência médica o enviou para um hospital pediátrico de Lisboa. Regressou ao norte do Alentejo já em 1974 – e a essa data se sucederam 21 anos de vida e crescimento numa das aldeias serranas da região, Carreiras, povoação situada a 7 quilómetros da vila de Castelo de Vide. (Nessa freguesia, tinham propriedades os sogros do poeta Francisco Bugalho, ou seja, os avós maternos dessoutra voz da poesia portuguesa, Cristovam Pavia.) Infelizmente, vê-se obrigado a afirmar que “as ruas das Carreiras, onde [nasceu], após ter visto a luz em Portalegre e sangue novo em Lisboa, já não existem” – embora continue “a regressar a [esse] espaço, como se regressasse chamado pela voz dos sinos”…
Toda a sua infância e toda a sua adolescência se viram envolvidas pelos ritmos de uma natureza agreste e resistente e pela poesia da tradição oral, bem como pelo mistério emanado pelas lendas que rodeavam e rodeiam vários marcos do património material da região, nomeadamente o castelo de Marvão e as ruínas romanas da cidade de Ammaia, em São Salvador da Aramenha. Esta dupla fecundação originou em si uma planta bifurcada, que ainda continua a crescer. De um mesmo tronco, saem duas fortes pernadas: do lado esquerdo, a Poesia e a Arte, em sentido lato, como imposição interior e “instrumentos do Espírito”; do lado direito, a necessidade de investigar o devir da História humana, das estruturas interiores e exteriores da ocupação do espaço pelo Homem e da produção de verdade, bondade e beleza a partir desses espaços, bem como de todas as estratégias inerentes à sua nomeação.
Licenciado em Línguas e mestre em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, desde 1995 que exerce actividade profissional docente, maioritariamente no 2º. Ciclo do Ensino Básico, mas também no Ensino Superior, onde leccionou Literatura Portuguesa, Literatura Tradicional e Cultura Portuguesa e exerceu as funções de formador de professores do Ensino Básico. Pertencente ao grupo daqueles que se viram obrigados a deixar o Alentejo, mas nunca o abandonarão, actualmente é professor na Península da Arrábida, na cidade de Setúbal.
Iniciou a sua actividade literária na primeira metade dos anos 90 do século passado. Em 1997, um júri da Associação Portuguesa de Escritores – constituído por Fiama Hasse Pais Brandão, Fernando Pinto do Amaral e Urbano Tavares Rodrigues – atribuiu o Prémio Revelação de Poesia ao seu primeiro livro, Arquitectura do Silêncio. Desde a edição dessa obra, no ano 2000, tem publicado regulamente outras obras: Sete capítulos do mundo (2003); Assim se deixa uma casa (2003); Chave de ignição (2009); Instrumentos de sopro (2010); Contramina (2012); e Detergente (2016). Em Espanha, deu à estampa Un poco más sobre la ciudad (2004), El lugar, la imagen (2006) e Campo de la Verdad (2013). A sua terceira colectânea foi, entretanto, traduzida nos Estados Unidos da América, num projecto cultural editado em San Francisco (Califórnia). Publicou, no Brasil (São Paulo), a antologia Rua da Outra Rua (2014) e em Espanha (Badajoz) a colectânea Poemas - Arqueologia (2015).
Tendo participado em múltiplas antologias poéticas, organizou algumas, nomeadamente Poetas e Escritores da Serra de São Mamede (2002), Em memória de J. O. Travanca-Rêgo e Orlando Neves (2005) e a Antologia Poética, de Frei Agostinho da Cruz (2019). Orientou ainda os livros Contos e Lendas da Serra de São Mamede (2005) e José do Carmo Francisco, uma aproximação (2005), bem como a publicação na Apenas Livros de uma parte da literatura tradicional de Castelo de Vide, Marvão e Portalegre (de que saíram, em 2013, três cadernos). Editou poemas e ensaios em variadíssimas publicações periódicas portuguesas, brasileiras, espanholas, italianas e norte-americanas, tendo assinado prefácios ou posfácios de algumas obras literárias editadas em Portugal e no Brasil. Coordenou, com Nicolau Saião, o suplemento cultural Fanal do jornal O Distrito de Portalegre (2000-2003). Tem proferido palestras nalgumas instituições portuguesas, espanholas e italianas e foi, ainda, colaborador dos volumes de actualização do Dicionário de Literatura, de Jacinto do Prado Coelho. Presentemente, dirige com Nuno Matos Duarte a revista ibero-americana de cultura Devir (publicada nas edições Licorne, de Évora). Editou, em 2017, o ensaio A Chave de Sebastião da Gama e em 2018 o volume Sob os braços da azinheira - Leituras de Fátima.
Obras literárias suas estão publicadas em espanhol, francês, inglês, italiano e alemão. Tem, além disso, algum trabalho como tradutor literário, sendo autor das versões portuguesas de vários livros e poemas de autores espanhóis (Antonio Sáez Delgado, Ángel Campos Pámpano, José María Cumbreño, Alberto Corazón, entre outros); nesse âmbito traduziu ainda, para a Fundación Academia Europea de Yuste, um livro de poemas de um autor belga (Anton van Wilderode) sobre últimos anos de vida do imperador Carlos V. Tem sido também, esporadicamente, jurado nalguns prémios de poesia. A sua actividade literária e cultural vem sendo registada numa página pessoal (http://www.ruyventura.blogspot.com/), onde estão publicadas nomeadamente algumas opiniões e críticas sobre a sua produção poética.
Desde o início da década de 1990 que se dedica, em paralelo (ou nem tanto…), a uma actividade como investigador nas áreas do património imaterial (literatura tradicional e toponímia) e do património material (nomeadamente arte e arquitectura sacras). Neste âmbito, tem vários artigos publicados na imprensa, nomeadamente no semanário O Distrito de Portalegre (hoje extinto) e nas revistas culturais A Cidade (Portalegre), Ibn Maruán (Marvão), Elvas – Caia (Elvas), Calipole (Vila Viçosa), Sol XXI (Lisboa), Al-Rihana (Aljezur) e Invenire (Lisboa), tendo ainda participado nas Jornadas de Toponímia de Lisboa. Desde há algum tempo é coordenador das páginas electrónicas “Arquivo do Norte Alentejano” (http://www.nortealentejano.blogspot.com/) e “Arquivo d’ Aljezur” (http://www.arquivodaljezur.blogspot.com/). Com temática variada, esses artigos têm reflectido sobre o património religioso do norte alentejano, as torres senhoriais da região de Portalegre, a toponímia antiga e/ou medieval, as “Memórias Paroquiais”, o romanceiro tradicional e/ou popular e as representações de algumas figuras históricas (D. Carlos, vg.) na literatura oral. Neste seu trabalho de investigação, podem destacar-se os livros Memória d' Alva (sobre a igreja matriz de Aljezur, 2010), Santo António na Região de Portalegre (2013), O eixo e a árvore - notas sobre a sacralização do território arrábido (2014) e Notas sobre a história da igreja paroquial de Odesseixe (2014).
Colabora com a Pastoral da Cultura, o Secretariado Nacional dos Bens Culturais da Igreja e a Diocese de Setúbal, onde é responsável pelas comemorações do IV Centenário da Morte de Frei Agostinho da Cruz. É colaborador da Cátedra Poesia e Transcendência, da Universidade Católica Portuguesa - Porto, integrando nomeadamente a equipa de investigadores do projecto Teotopias, coordenada por José Rui Teixeira.
esboço de uma biobibliografia

Registado como Rui Pedro Biscainho Ventura (o “y” - littera pithagorica - é homenagem aos poetas Ruy Belo e Ruy Cinatti, dois cristãos católicos como ele…), nasceu no Hospital da Misericórdia da cidade de Portalegre, junto da igreja do Espírito Santo, corria a madrugada de 27 de Dezembro de 1973, dia do apóstolo e evangelista São João. Não cessara ainda esse ano quando uma urgência médica o enviou para um hospital pediátrico de Lisboa. Regressou ao norte do Alentejo já em 1974 – e a essa data se sucederam 21 anos de vida e crescimento numa das aldeias serranas da região, Carreiras, povoação situada a 7 quilómetros da vila de Castelo de Vide. (Nessa freguesia, tinham propriedades os sogros do poeta Francisco Bugalho, ou seja, os avós maternos dessoutra voz da poesia portuguesa, Cristovam Pavia.) Infelizmente, vê-se obrigado a afirmar que “as ruas das Carreiras, onde [nasceu], após ter visto a luz em Portalegre e sangue novo em Lisboa, já não existem” – embora continue “a regressar a [esse] espaço, como se regressasse chamado pela voz dos sinos”…
Toda a sua infância e toda a sua adolescência se viram envolvidas pelos ritmos de uma natureza agreste e resistente e pela poesia da tradição oral, bem como pelo mistério emanado pelas lendas que rodeavam e rodeiam vários marcos do património material da região, nomeadamente o castelo de Marvão e as ruínas romanas da cidade de Ammaia, em São Salvador da Aramenha. Esta dupla fecundação originou em si uma planta bifurcada, que ainda continua a crescer. De um mesmo tronco, saem duas fortes pernadas: do lado esquerdo, a Poesia e a Arte, em sentido lato, como imposição interior e “instrumentos do Espírito”; do lado direito, a necessidade de investigar o devir da História humana, das estruturas interiores e exteriores da ocupação do espaço pelo Homem e da produção de verdade, bondade e beleza a partir desses espaços, bem como de todas as estratégias inerentes à sua nomeação.
Licenciado em Línguas e mestre em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, desde 1995 que exerce actividade profissional docente, maioritariamente no 2º. Ciclo do Ensino Básico, mas também no Ensino Superior, onde leccionou Literatura Portuguesa, Literatura Tradicional e Cultura Portuguesa e exerceu as funções de formador de professores do Ensino Básico. Pertencente ao grupo daqueles que se viram obrigados a deixar o Alentejo, mas nunca o abandonarão, actualmente é professor na Península da Arrábida, na cidade de Setúbal.
Iniciou a sua actividade literária na primeira metade dos anos 90 do século passado. Em 1997, um júri da Associação Portuguesa de Escritores – constituído por Fiama Hasse Pais Brandão, Fernando Pinto do Amaral e Urbano Tavares Rodrigues – atribuiu o Prémio Revelação de Poesia ao seu primeiro livro, Arquitectura do Silêncio. Desde a edição dessa obra, no ano 2000, tem publicado regulamente outras obras: Sete capítulos do mundo (2003); Assim se deixa uma casa (2003); Chave de ignição (2009); Instrumentos de sopro (2010); Contramina (2012); e Detergente (2016). Em Espanha, deu à estampa Un poco más sobre la ciudad (2004), El lugar, la imagen (2006) e Campo de la Verdad (2013). A sua terceira colectânea foi, entretanto, traduzida nos Estados Unidos da América, num projecto cultural editado em San Francisco (Califórnia). Publicou, no Brasil (São Paulo), a antologia Rua da Outra Rua (2014) e em Espanha (Badajoz) a colectânea Poemas - Arqueologia (2015).
Tendo participado em múltiplas antologias poéticas, organizou algumas, nomeadamente Poetas e Escritores da Serra de São Mamede (2002), Em memória de J. O. Travanca-Rêgo e Orlando Neves (2005) e a Antologia Poética, de Frei Agostinho da Cruz (2019). Orientou ainda os livros Contos e Lendas da Serra de São Mamede (2005) e José do Carmo Francisco, uma aproximação (2005), bem como a publicação na Apenas Livros de uma parte da literatura tradicional de Castelo de Vide, Marvão e Portalegre (de que saíram, em 2013, três cadernos). Editou poemas e ensaios em variadíssimas publicações periódicas portuguesas, brasileiras, espanholas, italianas e norte-americanas, tendo assinado prefácios ou posfácios de algumas obras literárias editadas em Portugal e no Brasil. Coordenou, com Nicolau Saião, o suplemento cultural Fanal do jornal O Distrito de Portalegre (2000-2003). Tem proferido palestras nalgumas instituições portuguesas, espanholas e italianas e foi, ainda, colaborador dos volumes de actualização do Dicionário de Literatura, de Jacinto do Prado Coelho. Presentemente, dirige com Nuno Matos Duarte a revista ibero-americana de cultura Devir (publicada nas edições Licorne, de Évora). Editou, em 2017, o ensaio A Chave de Sebastião da Gama e em 2018 o volume Sob os braços da azinheira - Leituras de Fátima.
Obras literárias suas estão publicadas em espanhol, francês, inglês, italiano e alemão. Tem, além disso, algum trabalho como tradutor literário, sendo autor das versões portuguesas de vários livros e poemas de autores espanhóis (Antonio Sáez Delgado, Ángel Campos Pámpano, José María Cumbreño, Alberto Corazón, entre outros); nesse âmbito traduziu ainda, para a Fundación Academia Europea de Yuste, um livro de poemas de um autor belga (Anton van Wilderode) sobre últimos anos de vida do imperador Carlos V. Tem sido também, esporadicamente, jurado nalguns prémios de poesia. A sua actividade literária e cultural vem sendo registada numa página pessoal (http://www.ruyventura.blogspot.com/), onde estão publicadas nomeadamente algumas opiniões e críticas sobre a sua produção poética.
Desde o início da década de 1990 que se dedica, em paralelo (ou nem tanto…), a uma actividade como investigador nas áreas do património imaterial (literatura tradicional e toponímia) e do património material (nomeadamente arte e arquitectura sacras). Neste âmbito, tem vários artigos publicados na imprensa, nomeadamente no semanário O Distrito de Portalegre (hoje extinto) e nas revistas culturais A Cidade (Portalegre), Ibn Maruán (Marvão), Elvas – Caia (Elvas), Calipole (Vila Viçosa), Sol XXI (Lisboa), Al-Rihana (Aljezur) e Invenire (Lisboa), tendo ainda participado nas Jornadas de Toponímia de Lisboa. Desde há algum tempo é coordenador das páginas electrónicas “Arquivo do Norte Alentejano” (http://www.nortealentejano.blogspot.com/) e “Arquivo d’ Aljezur” (http://www.arquivodaljezur.blogspot.com/). Com temática variada, esses artigos têm reflectido sobre o património religioso do norte alentejano, as torres senhoriais da região de Portalegre, a toponímia antiga e/ou medieval, as “Memórias Paroquiais”, o romanceiro tradicional e/ou popular e as representações de algumas figuras históricas (D. Carlos, vg.) na literatura oral. Neste seu trabalho de investigação, podem destacar-se os livros Memória d' Alva (sobre a igreja matriz de Aljezur, 2010), Santo António na Região de Portalegre (2013), O eixo e a árvore - notas sobre a sacralização do território arrábido (2014) e Notas sobre a história da igreja paroquial de Odesseixe (2014).
Colabora com a Pastoral da Cultura, o Secretariado Nacional dos Bens Culturais da Igreja e a Diocese de Setúbal, onde é responsável pelas comemorações do IV Centenário da Morte de Frei Agostinho da Cruz. É colaborador da Cátedra Poesia e Transcendência, da Universidade Católica Portuguesa - Porto, integrando nomeadamente a equipa de investigadores do projecto Teotopias, coordenada por José Rui Teixeira.
LANÇAMENTO DE
"MEMÓRIA D' ALVA
- CONTRIBUTOS PARA UMA BIOGRAFIA DA IGREJA MATRIZ DE ALJEZUR", de Ruy Ventura
A Comissão Organizadora das Comemorações do Bicentenário da Sagração da Igreja Matriz de Aljezur, tem o prazer de convidar V. Exa. e respectiva família para o lançamento do livro "Memória d' Alva - Contributos para uma Biografia da Igreja Matriz de Aljezur", da autoria de Ruy Ventura. A apresentação terá lugar no dia 18 de Dezembro, sábado, pelas 21 horas, na Igreja de Nossa Senhora d' Alva, em Aljezur, e estará a cargo do Professor Doutor José António Falcão, Historiador de Arte e Director do Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja. Agradecemos a sua presença.
LEVEZA, RIGOR E LUMINOSIDADE
(sobre a arte de Saúl Dias e de Julio)
1.
Júlio Maria dos Reis Pereira (1902-1983) constitui um caso interessante no campo dos estudos da onomástica artística. Num movimento pendular entre autor empírico e autor textual (considerando nós a sua pintura e os seus desenhos como textos, produtos – como os poemas – de uma tecelagem muito matizada, mas, a nosso ver, coerente), foi sendo estruturada uma identidade repartida que, colocando fora da esfera textual o primeiro, desdobra a substância do segundo.
O cidadão, com identidade civil, irmão carnal (e espiritual?!) de José Maria dos Reis Pereira (o poeta, ficcionista, dramaturgo e desenhista José Régio), apaga-se para deixar nascer duas outras personalidades: “Julio” (sem acento) e “Saúl Dias” (com acento). Se em José Régio, João Falco, Miguel Torga, Cristovam Pavia, Nicolau Saião ou noutros autores estamos perante casos de pseudonímia artística ou literária, com substituições totais ou parciais da designação atribuída pelo registo civil ou baptismal, no caso vertente a estratégia onomástica vai além disso. Não atinge, é certo, o extremo heteronímico talhado por Fernando Pessoa no seu “teatro em gente”, com Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis, António Mora, Alexander Search, Barão de Teive e outros. Não elabora uma ficção totalizante, como Boris Pasternak, ao atribuir a Jivago poemas que lhe pertencem enquanto autor empírico que dá propriedade literária ao romance, dada a inexistência de um pacto ficcional entre autor e leitores. A sua atitude perante a identidade poética (artística e literária) é mais próxima da que, nos anos ’70 do século passado, o pintor António Quadros assumiria, ao dar à sua obra plástica selos onomásticos aparentemente próximos do artista empírico (António Quadros e António Lucena), guardando para a sua importante produção poética personagens como João Pedro Grabato Dias, Frey Ioannes Grabatus ou Mutimati Barnabé João.
“Julio” e “Saúl Dias” semi-heterónimos de Júlio Maria dos Reis Pereira? Como Bernardo Soares, de Fernando Pessoa? Temos suspeitas, mas as dúvidas não nos permitem uma afirmação peremptória. Ao contrário do poeta nascido em Lisboa, no Largo de São Carlos, que deixou declarações explícitas (partes, também elas, de uma ficção autoral) indicando pontes de aproximação e de afastamento entre as personagens dessa dramaturgia totalizante e o autor empírico que as ficcionou – no autor da “Série Poeta” não conhecemos qualquer texto claro sobre o assunto. Há indícios ténues semeados por toda a sua obra que não devemos pôr de lado, mas todas as conclusões serão sempre provisórias, incluídas no campo da indeterminação, como é apanágio da Poesia.
De tudo quanto lemos e observámos de Saúl Dias-Júlio ficou-nos no entanto a convicção da existência de algo de borgesiano neste(s) autor(es). Ao separar-se do engenheiro nascido em Vila do Conde, a personalidade poética de Reis Pereira parece dizer, com Jorge Luís Borges: “talvez eu seja também uma personagem imaginária”...
Há, em nosso entender, uma sobreposição de trindades poéticas e/ou identitárias. Se tivermos em conta quanto temos vindo a expôr, temos em primeiro lugar uma triangulação da identidade em que o vértice A (autor empírico) potencia dois vértices distintos, B (autor literário) e C (autor pictórico), que por sua vez dialogam entre si, num movimento biunívoco (o que também sucede, empiricamente, entre A e B e entre A e C, havendo por detrás dos quadros e dos poemas uma mão que escreve, que pinta e desenha).
Podemos, de seguida, figurar um triângulo onomástico – pseudonímico ou semi-heteronímico – em que a base de sustentação é constituída pelos dois vocábulos do nome literário (Saúl e Dias) e o vértice superior pelo designativo atribuído ao autor plástico (Julio).
Esta figuração é permitida por um pequeno, mas importante, pormenor de índole ortográfica. Decerto conhecedor de que nada existe enquanto memória se não existir primeiro enquanto expressão (verbal ou não-verbal), Júlio Maria dos Reis Pereira introduziu nas duas identidades-entidades em que se apagou para se dividir uma quase imperceptível modificação: suprimiu o acento da esdrúxula “Júlio” e acrescentou-o à aguda “Saul”. Há um passo de um texto seu de 1980 (“Nos Dois Pratos da Balança”) que nos parece significativo:
“[...] embora as artes plásticas me tenham ocupado muito mais tempo do que a poesia, a verdade é que foram os versos que mais alegria me deram (refiro-me à alegria interior que se sente quando uma obra realizada ou em realização nos sai bem). Não sei explicar isto, mas assim tem acontecido.”
Subvertendo as regras da língua portuguesa e da sua gramática, o autor empírico retirou ao acento gráfico a sua funcionalidade prática, transformando-o num sinal deíctico, num dedo que aponta para “Saúl Dias”, desviando a atenção de “Julio”, aquele nome que mais aproximaria o(s) seu(s) ser(es) poético(s) do cidadão Reis Pereira e levaria os leitores dos seus poemas e os observadores dos seus quadros a formarem com ele um pacto autobiográfico, que aparentemente desejou afastar.
Embora tenha passado mais tempo a pintar do que a escrever, tal como declara no excerto acima transcrito, a personagem em que mais se revê (isto é, a parte da sua obra em que mais se realizou enquanto eu-próprio-outro) é a do criador literário e não a do criador plástico. Ao contrário do que se tem proposto ao longo de décadas e por muitas vozes, Reis Pereira não é assim um pintor que escreve, mas um poeta que também pinta. A Poesia assume-se enquanto edifício largo, totalizador, de que a pintura é apenas uma das fachadas (ou, talvez, um dos pilares). Há um domínio maior, assinado pelo “fazedor” Saúl Dias, o da Poesia, do qual fazem parte tanto a obra versificada quanto a pintada e desenhada – processos diversos, linguagens diferenciadas que contribuem para o mesmo todo, embora os poemas se situem no patamar criativo mais importante.
Perante estes dados, não erraremos muito se considerarmos que toda a obra criada por Júlio Maria dos Reis Pereira foi por ele enquadrada numa ficção autoral. O autor empírico apagou-se logo de início, afastou-se para que a sua personagem, Saúl Dias, vivesse. Pseudónimo ou semi-heterónimo, num processo de inversão identitária, enquanto na realidade material “Júlio” é o homem e “Saul” a sua invenção virtual, na escrita o jogo transfigurador inverte os termos: é “Saúl” o ser vivente que assina os poemas e, em simultâneo, pinta sob o nome de “Julio”.
2.
Se a ficção autoral apenas se vislumbra nos indícios deixados na fixação onomástica, a figuração do Poeta enquanto personagem dentro do poema e da pintura está bem presente em toda a produção de Saúl Dias-Julio. Mais evidente na justamente célebre “Série Poeta” (conjunto de desenhos e de pinturas que têm como tema a personagem que lhe dá título), encontra-se também presente ao longo da sua poesia. Excluindo os dispersos e inéditos recolhidos postumamente nas suas poesias completas, não podemos menosprezar o facto de que, em todos os seus livros, se encontram textos onde, de forma mais desenvolvida ou mais elíptica, se reflecte sobre o fazer poético ou sobre a figura idealizada do Poeta.
O primeiro poema do seu livro inicial, ...mais e mais..., de 1932, é uma declaração de princípios, um prefácio a toda a sua obra, um programa de vida para essa personagem dupla, Saúl Dias-Julio, que produzirá durante mais de cinco décadas uma obra ímpar na literatura de expressão portuguesa e nas artes plásticas lusas.
Um obra chã, próxima do húmus terreno e humano, nasce da contemplação e do confronto com essa trindade identitária e vital, triangulada em verbos que procuram resumir toda a vivência psicológica de um ser arquetípico, que se torna personagem de uma “história” (como refere Júlio Reis Pereira no artigo citado no capítulo anterior):
“(Aquele triângulo, ali, / pintado a rubro no chão, / desperta em mim a obsessão / de que tudo o que eu senti, / amei, chorei ou sorri / era pintado no chão.)”
Não sem antes se situar esteticamente perante a literatura e a arte do passado, defendendo implicitamente, na senda dos manifestos do Segundo Modernismo português, assinados por José Régio na revista presença, uma “literatura viva”, mais autêntica (ainda que, para ele, a defesa da “sinceridade” levada a cabo pelos presencistas como valor artístico e literário se configure antes, ao longo dos seus poemas, como uma procura da veracidade e de outros fundamentos que adiante descortinaremos). Há um claro corte com o passado:
“Eram outras as guitarras / e as melodias intensas... / Partiram-se as cordas tensas / que eram enormes amarras, / a separar-me das charras, / medíocres existências!...”
Um corte que se faz, sobretudo, pela escavação interior, na consciência de que a exploração de um “corpo” exterior poderá revelar a sujidade de uma alma, até aí escondida. O psicologismo (decorrente, talvez, de leituras de Dostoiewsky e das intuições especulativas de Freud) é evidente, assumido enquanto caminho para o encontro com a verdade ontológica:
“A inconsciente devassa / cujo corpo é uma tulipa, / esguio como uma ripa, / airoso como o da garça!... / A perturbante comparsa / transmudou-se em suja pipa.”
A proposta do poema inicial de Saúl Dias é, no entanto, consequente. Não se dirige aos outros, mas a si próprio. O lirismo de imparável escavação / desvendação interior é assumido pelo sujeito poético:
“Que os meus versos sejam líricos / e me desvendem!... Ascendam / e – maravilha! – se acendam / quando a noite toda em círculos, / como o falar dos ventrílocos, / de ignoto brota... se estendam!... // Que eles sejam o reflexo / de tudo o que me embriaga: / esta ânsia que me alaga, / e as exigências do sexo, / e os pensamentos sem nexo, / e aquela hora toda chaga... // e esses minutos todos / ferindo-me quais punhais, / e risos, lágrimas, ais, / e rios de oiro e de lodo, / e esse vago, estranho modo... / isto tudo... e mais e mais...”
O resultado expressivo, vertido em textos versificados, é no entanto o da incompletude. Fragmentos poéticos resultantes de um ser fragmentado, imperfeito, são assumidos pelo autor textual enquanto excrescências também imperfeitas. A ironia remata o poema, como forma de desconstrução da solenidade que, por vezes, rodeia o ideal romântico do Poeta, enquanto figura superior, aureolada. O triângulo poético pinta-se no chão, lembremos... Não é apenas uma humildade ritualizada, feita de falsas modéstias. Trata-se de um sarcasmo auto-crítico, que deseja destruir a vaidade de ser Poeta:
“Os meus poemas bizarros / quase nunca os acabo. / São um luxo de nababo / p’r’os meus nervos afiados. / Inacabados, quebrados, / lembram-me galos sem rabo.”
Saúl Dias irá aprofundar (por vezes modificando pequenos pormenores) estes propósitos ao longo da sua obra curta, quase bissexta. A escolha da onomástica literária não é alheia a este poema-prefácio. “Saul” foi o primeiro rei de Israel escolhido por Javé, destronado por David, devido à sua ignomínia. A unção (real ou poética), parece dizer-nos, pode ser revogada a qualquer momento se a soberba pretender elevar a criatura acima do criador. “Dias” parecem ser, simplesmente, os dias vividos, o quotidiano passado conservado na memória, que o sujeito poético – seguindo as teorias de Bergson – pretende restituir ao presente, iluminando-o, dando-lhe assim capacidade para se projectar no futuro. Assim no-lo indica um soneto publicado no livro Ainda, como cólofon:
“Eu não quero esquecer os dias que viveram. / Por eles escrevi estes versos mofinos; / escrevi-os à tarde ouvindo rir meninos, / meninos loiro-sóis que bem cedo morreram. // Eu não quero esquecer os dias que enumeram / desejos e prazeres, rezas e desatinos; / e, em loucuras ou entoando hinos, / lá na Curva da Estrada, azuis, desapareceram. // Eu não quero esquecer dos dias mais felizes / a bênção branca-e-astral, lá das Alturas vinda, / nem tampouco o travor das horas infelizes. // Eu não quero esquecer... Quero viver ainda / o tempo que secou, mas que deixou raízes, / e em verde volverá, e florirá ainda...”
Rei destronado à procura dos dias perdidos? Assim parece ser. Ente desdobrado, “os dias consome / a cantar ao desafio, / ao desafio consigo” (in Essência). Saúl Dias não parece considerar-se sequer poeta. Se fala com voz própria quando trata de reflectir sobre a estrutura muscular e óssea do poema, esta personagem criada por Júlio Maria dos Reis Pereira (talvez imagem espelhada de si próprio) pronuncia-se sobre o Poeta (e dirige-se ao Poeta) sempre como de alguém exterior a si, como de uma terceira pessoa. Descreve-lo como um ser ideal, fora do mundo, asceta e mendigo, vagabundo, louco, visionário, humilde, recolector de imagens visíveis ou invisíveis, transmissor de emoções, de sentimentos e de experiências, solitário, temerário, eternizador dos instantes (“Uma palavra quente! / Uma palavra para todo o sempre!”, in Essência) ao lutar contra “o Tempo / irreversível e eterno” (in Essência), com “a pretensão / de que [um] intenso clarão / [é] um sinal lá dos céus, / e de, no meio do assombro, / [pressentir] a mão de Deus / tocar-lhe, amiga, no ombro” (in Essência). Um ser distante de si – como se revivesse o cenário bíblico de um Saul impotente e transviado, substituído por David, o verdadeiro rei e poeta.
Nisto tudo, há a procura da leveza, expressão do pensamento essencial que só se concretiza no extremo rigor da exactidão de uma palavra:
“Na tarde longa / imaginei um longo poema. / Depois, / fui-o encurtando / e reduzi-o a pequenos versos. // Quisera que os meus versos / fossem duas palavras apenas, / aéreos como penas, / leves / como tons dispersos…” (in Sangue)
Ao longo de toda a sua busca, Saúl Dias vai encontrando “receitas”, expressas em diversas artes poéticas que tenta concretizar. À maneira de Rainer Maria Rilke, pensa que “Versos / escrevem-se / depois de ter sofrido. / O coração / dita-os apressadamente. / E a mão tremente / quer fixar no papel os sons dispersos. // É só com sangue que se escrevem versos.” (in Sangue)
O poema, “estranha rosa / rubra e preta”, abre-se “na alma do poeta”, porque é a fixação de “uma pena”, de quem sente “estoirar / o calabre / do coração, / nostálgico do éden…” e deve deixar “o coração sangrar” (in Gérmen).
Sujeito à transitoriedade da existência, o texto poético, nascendo da meditação (ascética?) nos domínios da imaginação, é “Um esquema dorido. / Um teorema / que se contradiz. / Uma súplica. / Uma esmola” que transmite as dores do Homem, “vividas umas, sonhadas outras… / (Inútil destrinçar.)” (in Essência).
A Saúl Dias interessa sobretudo a capacidade fertilizadora do texto, matéria orgânica que alavanca o crescimento do mundo e a ressurreição da vida. Como as rosas, que não devem conservar-se numa jarra, porque murchariam:
“Joga-as fora! / A valeta / que dessora / húmida, quente, / fá-las-á reviver / em húmus, sangue, lume… // E, rosas outra vez, / serão cor e perfume, / abraçando o jardim / de lés a lés…” (poema inicial de Gérmen)
Na hora da morte (isto é, no final da narrativa que se inicia com o primeiro poema de Saúl Dias e termina com o último publicado num livro em vida), o autor textual – que vê na Poesia um vislumbre de alegria, mesmo na doença e na dor (“Mesmo na dor / a sua alma é contente / se uma rima fugace / poalha de harmonia / um verso recortado…”, in Essência) – sabe que o Poeta, cessante enquanto ser biológico, não cessa enquanto ser virtual e verbal que é. Como José Duro nos versos finais de Fel (1898), sabe que “enquanto escreve / vive ressuscitando fugidias horas / mudadas em auroras…” (in Essência), porque a permanência de um escritor, ser feito de palavras, se deve à actividade revivificadora dos leitores, multiplicadores de sentidos.
O testamento de Saúl é, no entanto, mais uma manifestação do sentimento de incompletude de um caminho. O Poeta, até aí um ser ideal a alcançar na sua eminência, passa a coincidir com o sujeito da escrita. Poeta-desejo, sente que nunca alcançou a meta desejada (“Dias e dias / a tentar um verso, uma rima… / (um pobre verso, uma pobre rima…)”, in Vislumbre), conseguindo embora manter a alegria da ingenuidade infantil (“no coração do Poeta / há música, foguetes / e bandeiras ao vento… / (como outrora, na infância, nalgum dia de festa…”, in Vislumbre).
No fundo, sabe que a Poesia é um interminável exercício de depuração interior, manifestação da “sabedoria da linguagem, […] uma aventura de linguagem” (Ruy Belo, 1970). Um Poeta ideal ou idealizado chegaria ao fim. Na sua humildade, Saúl Dias tem a convicção de que ficou a meio do caminho. Numa estrutura circular, o poema final da sua obra retoma, meditativo, um sentimento semelhante ao expresso, de forma irónica, no início:
“Só conheço, talvez, uma palavra. // Só quero dizer uma palavra. // A vida inteira para dizer uma palavra! // Felizes os que chegam a dizer uma palavra!” (in Vislumbre)
3.
Júlio Reis Pereira afirmava que a “Série Poeta” contava a mesma narrativa presente nos poemas de Saúl Dias. Podemos afirmar que os desenhos e as pinturas do conjunto pictórico mais conhecido de Julio legendam (lêem e interpretam) os poemas. E não apenas esse ciclo coerente, mas muitas outras obras plásticas que, ao contrário do que poderá parecer, não ilustram um texto, mas iluminam-no, desverbalizando-o, de modo a torná-lo, talvez, mais universal.
Praça onde confluiram várias avenidas da arte europeia do século XX, foi José Régio quem – em nosso entender – melhor compreendeu essa centralidade do pintor. Não existem influências, se as entendermos enquanto processo epigonal. Como refere o autor de Davam Grandes Passeios aos Domingos…, num texto de 1967, na pintura de Julio
“[…] cabem manifestações tão diversas como a de um expressionismo violento, alimentado por uma tendência caricatural, dramática, satírica; a de uma espécie de dadaísmo muito pessoal (ou ultra-realismo) gerado no pendor tão instintivo como consciente para certos achados da arte infantil ou popular; a de um realismo mágico – feliz expressão que gozou em tempos de certo prestígio – transfigurador da realidade através das semialucinações do sonho; a de um decorativismo fundado na cor e na construção; ou a de um moderno classicismo banhado no lirismo congénito […]”
Num artigo de 1935, o mesmo autor já diagnosticara:
“Do futurismo, do cubismo, do dadaísmo, do expressionismo, do super-realismo […] resulta, embora não sistematicamente, o que nesses quadros e desenhos é mais característico de uma certa época de pintura. Neles perpassam ecos das vozes dos seus principais criadores ou intérpretes, e efeitos da vasta literatura especulativa ou crítica sobre tais escolas e mestre. […] / […] Nada, porém, […] se refere propriamente ao íntimo da obra de Julio. […] A aceitação de quantas inovações e liberdades trouxe à pintura moderna não aparece na obra de Julio senão como meio da mais completa expressão. Por isso se não poderá dizer dele que seja um futurista, um cubista, um super-realista, ou qualquer ista puro – ainda que dos vários ismos se aproveite a sua arte. E dizendo que ela se aproveita deles, disse tudo.”
Ao olharmos para a globalidade da obra pintada e desenhada pelo pseudónimo de Saúl Dias, mesmo para aqueles quadros onde mais se nota uma expressão sarcástica, a primeira e principal impressão com que ficamos é a da permanência em todo o lado de uma extrema leveza. Italo Calvino, num ensaio dos anos ’80 (in Seis Propostas para o Próximo Milénio, 1990), considerava a leveza um dos valores fundamentais a serem transmitidos como herança ao futuro (que já começámos a viver). Em conjunto com a exactidão e com o rigor (propostas também para este novo tempo), a leveza e a luminosidade da arte verbal e não-verbal criada por Júlio Maria dos Reis Pereira faz dele não só um autor universal, como o “proprietário” de uma obra que o futuro ganhará em observar, lendo e legendando.
O irmão de José Régio contou certo dia um sonho que tivera, onde se via avaliado no dia do Juízo Final. Perante o peso dos seus pecados, colocou na balança das virtudes quanto criara de belo na “Série Poeta”. A balança começou a pender para o lado da salvação. Em 1980, “dez anos passados sobre essa antevisão”, assaltava-o uma dúvida: “terão ainda esses desenhos peso suficiente para forçar a descer o prato?” A pergunta ficou sem resposta. Não sabendo nós responder – por não conhecermos totalmente a cotação junto de tal juiz das boas obras artísticas (apesar de vermos hoje beatificado pela Igreja um pintor como Fra Angelico…) –, resta-nos uma convicção interior. Podemos até estar enganados; acreditando nós que a Justiça não será cega no futuro, parece-nos contudo que nesses tempos se julgará toda a obra de Saúl Dias-Julio (não só a “Série Poeta”, mas a sua pintura inteira e toda a sua poesia) como virtudes e valores a preservar e a transmitir.
(sobre a arte de Saúl Dias e de Julio)
1.
Júlio Maria dos Reis Pereira (1902-1983) constitui um caso interessante no campo dos estudos da onomástica artística. Num movimento pendular entre autor empírico e autor textual (considerando nós a sua pintura e os seus desenhos como textos, produtos – como os poemas – de uma tecelagem muito matizada, mas, a nosso ver, coerente), foi sendo estruturada uma identidade repartida que, colocando fora da esfera textual o primeiro, desdobra a substância do segundo.
O cidadão, com identidade civil, irmão carnal (e espiritual?!) de José Maria dos Reis Pereira (o poeta, ficcionista, dramaturgo e desenhista José Régio), apaga-se para deixar nascer duas outras personalidades: “Julio” (sem acento) e “Saúl Dias” (com acento). Se em José Régio, João Falco, Miguel Torga, Cristovam Pavia, Nicolau Saião ou noutros autores estamos perante casos de pseudonímia artística ou literária, com substituições totais ou parciais da designação atribuída pelo registo civil ou baptismal, no caso vertente a estratégia onomástica vai além disso. Não atinge, é certo, o extremo heteronímico talhado por Fernando Pessoa no seu “teatro em gente”, com Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis, António Mora, Alexander Search, Barão de Teive e outros. Não elabora uma ficção totalizante, como Boris Pasternak, ao atribuir a Jivago poemas que lhe pertencem enquanto autor empírico que dá propriedade literária ao romance, dada a inexistência de um pacto ficcional entre autor e leitores. A sua atitude perante a identidade poética (artística e literária) é mais próxima da que, nos anos ’70 do século passado, o pintor António Quadros assumiria, ao dar à sua obra plástica selos onomásticos aparentemente próximos do artista empírico (António Quadros e António Lucena), guardando para a sua importante produção poética personagens como João Pedro Grabato Dias, Frey Ioannes Grabatus ou Mutimati Barnabé João.
“Julio” e “Saúl Dias” semi-heterónimos de Júlio Maria dos Reis Pereira? Como Bernardo Soares, de Fernando Pessoa? Temos suspeitas, mas as dúvidas não nos permitem uma afirmação peremptória. Ao contrário do poeta nascido em Lisboa, no Largo de São Carlos, que deixou declarações explícitas (partes, também elas, de uma ficção autoral) indicando pontes de aproximação e de afastamento entre as personagens dessa dramaturgia totalizante e o autor empírico que as ficcionou – no autor da “Série Poeta” não conhecemos qualquer texto claro sobre o assunto. Há indícios ténues semeados por toda a sua obra que não devemos pôr de lado, mas todas as conclusões serão sempre provisórias, incluídas no campo da indeterminação, como é apanágio da Poesia.
De tudo quanto lemos e observámos de Saúl Dias-Júlio ficou-nos no entanto a convicção da existência de algo de borgesiano neste(s) autor(es). Ao separar-se do engenheiro nascido em Vila do Conde, a personalidade poética de Reis Pereira parece dizer, com Jorge Luís Borges: “talvez eu seja também uma personagem imaginária”...
Há, em nosso entender, uma sobreposição de trindades poéticas e/ou identitárias. Se tivermos em conta quanto temos vindo a expôr, temos em primeiro lugar uma triangulação da identidade em que o vértice A (autor empírico) potencia dois vértices distintos, B (autor literário) e C (autor pictórico), que por sua vez dialogam entre si, num movimento biunívoco (o que também sucede, empiricamente, entre A e B e entre A e C, havendo por detrás dos quadros e dos poemas uma mão que escreve, que pinta e desenha).
Podemos, de seguida, figurar um triângulo onomástico – pseudonímico ou semi-heteronímico – em que a base de sustentação é constituída pelos dois vocábulos do nome literário (Saúl e Dias) e o vértice superior pelo designativo atribuído ao autor plástico (Julio).
Esta figuração é permitida por um pequeno, mas importante, pormenor de índole ortográfica. Decerto conhecedor de que nada existe enquanto memória se não existir primeiro enquanto expressão (verbal ou não-verbal), Júlio Maria dos Reis Pereira introduziu nas duas identidades-entidades em que se apagou para se dividir uma quase imperceptível modificação: suprimiu o acento da esdrúxula “Júlio” e acrescentou-o à aguda “Saul”. Há um passo de um texto seu de 1980 (“Nos Dois Pratos da Balança”) que nos parece significativo:
“[...] embora as artes plásticas me tenham ocupado muito mais tempo do que a poesia, a verdade é que foram os versos que mais alegria me deram (refiro-me à alegria interior que se sente quando uma obra realizada ou em realização nos sai bem). Não sei explicar isto, mas assim tem acontecido.”
Subvertendo as regras da língua portuguesa e da sua gramática, o autor empírico retirou ao acento gráfico a sua funcionalidade prática, transformando-o num sinal deíctico, num dedo que aponta para “Saúl Dias”, desviando a atenção de “Julio”, aquele nome que mais aproximaria o(s) seu(s) ser(es) poético(s) do cidadão Reis Pereira e levaria os leitores dos seus poemas e os observadores dos seus quadros a formarem com ele um pacto autobiográfico, que aparentemente desejou afastar.
Embora tenha passado mais tempo a pintar do que a escrever, tal como declara no excerto acima transcrito, a personagem em que mais se revê (isto é, a parte da sua obra em que mais se realizou enquanto eu-próprio-outro) é a do criador literário e não a do criador plástico. Ao contrário do que se tem proposto ao longo de décadas e por muitas vozes, Reis Pereira não é assim um pintor que escreve, mas um poeta que também pinta. A Poesia assume-se enquanto edifício largo, totalizador, de que a pintura é apenas uma das fachadas (ou, talvez, um dos pilares). Há um domínio maior, assinado pelo “fazedor” Saúl Dias, o da Poesia, do qual fazem parte tanto a obra versificada quanto a pintada e desenhada – processos diversos, linguagens diferenciadas que contribuem para o mesmo todo, embora os poemas se situem no patamar criativo mais importante.
Perante estes dados, não erraremos muito se considerarmos que toda a obra criada por Júlio Maria dos Reis Pereira foi por ele enquadrada numa ficção autoral. O autor empírico apagou-se logo de início, afastou-se para que a sua personagem, Saúl Dias, vivesse. Pseudónimo ou semi-heterónimo, num processo de inversão identitária, enquanto na realidade material “Júlio” é o homem e “Saul” a sua invenção virtual, na escrita o jogo transfigurador inverte os termos: é “Saúl” o ser vivente que assina os poemas e, em simultâneo, pinta sob o nome de “Julio”.
2.
Se a ficção autoral apenas se vislumbra nos indícios deixados na fixação onomástica, a figuração do Poeta enquanto personagem dentro do poema e da pintura está bem presente em toda a produção de Saúl Dias-Julio. Mais evidente na justamente célebre “Série Poeta” (conjunto de desenhos e de pinturas que têm como tema a personagem que lhe dá título), encontra-se também presente ao longo da sua poesia. Excluindo os dispersos e inéditos recolhidos postumamente nas suas poesias completas, não podemos menosprezar o facto de que, em todos os seus livros, se encontram textos onde, de forma mais desenvolvida ou mais elíptica, se reflecte sobre o fazer poético ou sobre a figura idealizada do Poeta.
O primeiro poema do seu livro inicial, ...mais e mais..., de 1932, é uma declaração de princípios, um prefácio a toda a sua obra, um programa de vida para essa personagem dupla, Saúl Dias-Julio, que produzirá durante mais de cinco décadas uma obra ímpar na literatura de expressão portuguesa e nas artes plásticas lusas.
Um obra chã, próxima do húmus terreno e humano, nasce da contemplação e do confronto com essa trindade identitária e vital, triangulada em verbos que procuram resumir toda a vivência psicológica de um ser arquetípico, que se torna personagem de uma “história” (como refere Júlio Reis Pereira no artigo citado no capítulo anterior):
“(Aquele triângulo, ali, / pintado a rubro no chão, / desperta em mim a obsessão / de que tudo o que eu senti, / amei, chorei ou sorri / era pintado no chão.)”
Não sem antes se situar esteticamente perante a literatura e a arte do passado, defendendo implicitamente, na senda dos manifestos do Segundo Modernismo português, assinados por José Régio na revista presença, uma “literatura viva”, mais autêntica (ainda que, para ele, a defesa da “sinceridade” levada a cabo pelos presencistas como valor artístico e literário se configure antes, ao longo dos seus poemas, como uma procura da veracidade e de outros fundamentos que adiante descortinaremos). Há um claro corte com o passado:
“Eram outras as guitarras / e as melodias intensas... / Partiram-se as cordas tensas / que eram enormes amarras, / a separar-me das charras, / medíocres existências!...”
Um corte que se faz, sobretudo, pela escavação interior, na consciência de que a exploração de um “corpo” exterior poderá revelar a sujidade de uma alma, até aí escondida. O psicologismo (decorrente, talvez, de leituras de Dostoiewsky e das intuições especulativas de Freud) é evidente, assumido enquanto caminho para o encontro com a verdade ontológica:
“A inconsciente devassa / cujo corpo é uma tulipa, / esguio como uma ripa, / airoso como o da garça!... / A perturbante comparsa / transmudou-se em suja pipa.”
A proposta do poema inicial de Saúl Dias é, no entanto, consequente. Não se dirige aos outros, mas a si próprio. O lirismo de imparável escavação / desvendação interior é assumido pelo sujeito poético:
“Que os meus versos sejam líricos / e me desvendem!... Ascendam / e – maravilha! – se acendam / quando a noite toda em círculos, / como o falar dos ventrílocos, / de ignoto brota... se estendam!... // Que eles sejam o reflexo / de tudo o que me embriaga: / esta ânsia que me alaga, / e as exigências do sexo, / e os pensamentos sem nexo, / e aquela hora toda chaga... // e esses minutos todos / ferindo-me quais punhais, / e risos, lágrimas, ais, / e rios de oiro e de lodo, / e esse vago, estranho modo... / isto tudo... e mais e mais...”
O resultado expressivo, vertido em textos versificados, é no entanto o da incompletude. Fragmentos poéticos resultantes de um ser fragmentado, imperfeito, são assumidos pelo autor textual enquanto excrescências também imperfeitas. A ironia remata o poema, como forma de desconstrução da solenidade que, por vezes, rodeia o ideal romântico do Poeta, enquanto figura superior, aureolada. O triângulo poético pinta-se no chão, lembremos... Não é apenas uma humildade ritualizada, feita de falsas modéstias. Trata-se de um sarcasmo auto-crítico, que deseja destruir a vaidade de ser Poeta:
“Os meus poemas bizarros / quase nunca os acabo. / São um luxo de nababo / p’r’os meus nervos afiados. / Inacabados, quebrados, / lembram-me galos sem rabo.”
Saúl Dias irá aprofundar (por vezes modificando pequenos pormenores) estes propósitos ao longo da sua obra curta, quase bissexta. A escolha da onomástica literária não é alheia a este poema-prefácio. “Saul” foi o primeiro rei de Israel escolhido por Javé, destronado por David, devido à sua ignomínia. A unção (real ou poética), parece dizer-nos, pode ser revogada a qualquer momento se a soberba pretender elevar a criatura acima do criador. “Dias” parecem ser, simplesmente, os dias vividos, o quotidiano passado conservado na memória, que o sujeito poético – seguindo as teorias de Bergson – pretende restituir ao presente, iluminando-o, dando-lhe assim capacidade para se projectar no futuro. Assim no-lo indica um soneto publicado no livro Ainda, como cólofon:
“Eu não quero esquecer os dias que viveram. / Por eles escrevi estes versos mofinos; / escrevi-os à tarde ouvindo rir meninos, / meninos loiro-sóis que bem cedo morreram. // Eu não quero esquecer os dias que enumeram / desejos e prazeres, rezas e desatinos; / e, em loucuras ou entoando hinos, / lá na Curva da Estrada, azuis, desapareceram. // Eu não quero esquecer dos dias mais felizes / a bênção branca-e-astral, lá das Alturas vinda, / nem tampouco o travor das horas infelizes. // Eu não quero esquecer... Quero viver ainda / o tempo que secou, mas que deixou raízes, / e em verde volverá, e florirá ainda...”
Rei destronado à procura dos dias perdidos? Assim parece ser. Ente desdobrado, “os dias consome / a cantar ao desafio, / ao desafio consigo” (in Essência). Saúl Dias não parece considerar-se sequer poeta. Se fala com voz própria quando trata de reflectir sobre a estrutura muscular e óssea do poema, esta personagem criada por Júlio Maria dos Reis Pereira (talvez imagem espelhada de si próprio) pronuncia-se sobre o Poeta (e dirige-se ao Poeta) sempre como de alguém exterior a si, como de uma terceira pessoa. Descreve-lo como um ser ideal, fora do mundo, asceta e mendigo, vagabundo, louco, visionário, humilde, recolector de imagens visíveis ou invisíveis, transmissor de emoções, de sentimentos e de experiências, solitário, temerário, eternizador dos instantes (“Uma palavra quente! / Uma palavra para todo o sempre!”, in Essência) ao lutar contra “o Tempo / irreversível e eterno” (in Essência), com “a pretensão / de que [um] intenso clarão / [é] um sinal lá dos céus, / e de, no meio do assombro, / [pressentir] a mão de Deus / tocar-lhe, amiga, no ombro” (in Essência). Um ser distante de si – como se revivesse o cenário bíblico de um Saul impotente e transviado, substituído por David, o verdadeiro rei e poeta.
Nisto tudo, há a procura da leveza, expressão do pensamento essencial que só se concretiza no extremo rigor da exactidão de uma palavra:
“Na tarde longa / imaginei um longo poema. / Depois, / fui-o encurtando / e reduzi-o a pequenos versos. // Quisera que os meus versos / fossem duas palavras apenas, / aéreos como penas, / leves / como tons dispersos…” (in Sangue)
Ao longo de toda a sua busca, Saúl Dias vai encontrando “receitas”, expressas em diversas artes poéticas que tenta concretizar. À maneira de Rainer Maria Rilke, pensa que “Versos / escrevem-se / depois de ter sofrido. / O coração / dita-os apressadamente. / E a mão tremente / quer fixar no papel os sons dispersos. // É só com sangue que se escrevem versos.” (in Sangue)
O poema, “estranha rosa / rubra e preta”, abre-se “na alma do poeta”, porque é a fixação de “uma pena”, de quem sente “estoirar / o calabre / do coração, / nostálgico do éden…” e deve deixar “o coração sangrar” (in Gérmen).
Sujeito à transitoriedade da existência, o texto poético, nascendo da meditação (ascética?) nos domínios da imaginação, é “Um esquema dorido. / Um teorema / que se contradiz. / Uma súplica. / Uma esmola” que transmite as dores do Homem, “vividas umas, sonhadas outras… / (Inútil destrinçar.)” (in Essência).
A Saúl Dias interessa sobretudo a capacidade fertilizadora do texto, matéria orgânica que alavanca o crescimento do mundo e a ressurreição da vida. Como as rosas, que não devem conservar-se numa jarra, porque murchariam:
“Joga-as fora! / A valeta / que dessora / húmida, quente, / fá-las-á reviver / em húmus, sangue, lume… // E, rosas outra vez, / serão cor e perfume, / abraçando o jardim / de lés a lés…” (poema inicial de Gérmen)
Na hora da morte (isto é, no final da narrativa que se inicia com o primeiro poema de Saúl Dias e termina com o último publicado num livro em vida), o autor textual – que vê na Poesia um vislumbre de alegria, mesmo na doença e na dor (“Mesmo na dor / a sua alma é contente / se uma rima fugace / poalha de harmonia / um verso recortado…”, in Essência) – sabe que o Poeta, cessante enquanto ser biológico, não cessa enquanto ser virtual e verbal que é. Como José Duro nos versos finais de Fel (1898), sabe que “enquanto escreve / vive ressuscitando fugidias horas / mudadas em auroras…” (in Essência), porque a permanência de um escritor, ser feito de palavras, se deve à actividade revivificadora dos leitores, multiplicadores de sentidos.
O testamento de Saúl é, no entanto, mais uma manifestação do sentimento de incompletude de um caminho. O Poeta, até aí um ser ideal a alcançar na sua eminência, passa a coincidir com o sujeito da escrita. Poeta-desejo, sente que nunca alcançou a meta desejada (“Dias e dias / a tentar um verso, uma rima… / (um pobre verso, uma pobre rima…)”, in Vislumbre), conseguindo embora manter a alegria da ingenuidade infantil (“no coração do Poeta / há música, foguetes / e bandeiras ao vento… / (como outrora, na infância, nalgum dia de festa…”, in Vislumbre).
No fundo, sabe que a Poesia é um interminável exercício de depuração interior, manifestação da “sabedoria da linguagem, […] uma aventura de linguagem” (Ruy Belo, 1970). Um Poeta ideal ou idealizado chegaria ao fim. Na sua humildade, Saúl Dias tem a convicção de que ficou a meio do caminho. Numa estrutura circular, o poema final da sua obra retoma, meditativo, um sentimento semelhante ao expresso, de forma irónica, no início:
“Só conheço, talvez, uma palavra. // Só quero dizer uma palavra. // A vida inteira para dizer uma palavra! // Felizes os que chegam a dizer uma palavra!” (in Vislumbre)
3.
Júlio Reis Pereira afirmava que a “Série Poeta” contava a mesma narrativa presente nos poemas de Saúl Dias. Podemos afirmar que os desenhos e as pinturas do conjunto pictórico mais conhecido de Julio legendam (lêem e interpretam) os poemas. E não apenas esse ciclo coerente, mas muitas outras obras plásticas que, ao contrário do que poderá parecer, não ilustram um texto, mas iluminam-no, desverbalizando-o, de modo a torná-lo, talvez, mais universal.
Praça onde confluiram várias avenidas da arte europeia do século XX, foi José Régio quem – em nosso entender – melhor compreendeu essa centralidade do pintor. Não existem influências, se as entendermos enquanto processo epigonal. Como refere o autor de Davam Grandes Passeios aos Domingos…, num texto de 1967, na pintura de Julio
“[…] cabem manifestações tão diversas como a de um expressionismo violento, alimentado por uma tendência caricatural, dramática, satírica; a de uma espécie de dadaísmo muito pessoal (ou ultra-realismo) gerado no pendor tão instintivo como consciente para certos achados da arte infantil ou popular; a de um realismo mágico – feliz expressão que gozou em tempos de certo prestígio – transfigurador da realidade através das semialucinações do sonho; a de um decorativismo fundado na cor e na construção; ou a de um moderno classicismo banhado no lirismo congénito […]”
Num artigo de 1935, o mesmo autor já diagnosticara:
“Do futurismo, do cubismo, do dadaísmo, do expressionismo, do super-realismo […] resulta, embora não sistematicamente, o que nesses quadros e desenhos é mais característico de uma certa época de pintura. Neles perpassam ecos das vozes dos seus principais criadores ou intérpretes, e efeitos da vasta literatura especulativa ou crítica sobre tais escolas e mestre. […] / […] Nada, porém, […] se refere propriamente ao íntimo da obra de Julio. […] A aceitação de quantas inovações e liberdades trouxe à pintura moderna não aparece na obra de Julio senão como meio da mais completa expressão. Por isso se não poderá dizer dele que seja um futurista, um cubista, um super-realista, ou qualquer ista puro – ainda que dos vários ismos se aproveite a sua arte. E dizendo que ela se aproveita deles, disse tudo.”
Ao olharmos para a globalidade da obra pintada e desenhada pelo pseudónimo de Saúl Dias, mesmo para aqueles quadros onde mais se nota uma expressão sarcástica, a primeira e principal impressão com que ficamos é a da permanência em todo o lado de uma extrema leveza. Italo Calvino, num ensaio dos anos ’80 (in Seis Propostas para o Próximo Milénio, 1990), considerava a leveza um dos valores fundamentais a serem transmitidos como herança ao futuro (que já começámos a viver). Em conjunto com a exactidão e com o rigor (propostas também para este novo tempo), a leveza e a luminosidade da arte verbal e não-verbal criada por Júlio Maria dos Reis Pereira faz dele não só um autor universal, como o “proprietário” de uma obra que o futuro ganhará em observar, lendo e legendando.

Aljezur e Cotovia, Páscoa / 2007
(para o Eng. José Alberto Reis Pereira)
Ensaio publicado como prefácio da antologia de Saúl Dias, De ainda a vislumbre,
publicada em São Paulo (Brasil) pela Editorial Escrituras:
Fernando Guimarães
“Ouvir devagar…”
Jornal de Letras, nº. 1048, de 1 a 14 de Dezembro de 2010: 16-17.
[S/ livros de Daniel Faria, Gonçalo Salvado, José Emílio-Nelson e RV.]
[…]
Ruy Ventura publicou um novo livro de poemas, Instrumentos de Sopro. Há nele um sentido que se diria disfórico, o que poemas como este (parcialmente transcrito) revelam de imediato:
não existe / este lugar. sem água / opõe-se à transformação da pedra / guarda veios de uma madeira sem seiva // a serenidade dos passos procura / uma viagem sem destino / longos dedos folheiam / o fumo e algumas ervas sem préstimo – / ferro escorando, em vão, as células / de um corpo sem movimento.
Neste livro faz-se uma opção por uma escrita que se diria cursiva (“leio e releio. Seguro entre as mãos / o corpo e a esperança, a longa oliveira / deitada sobre a fonte”), presa a uma divagação evocadora (“que nome guardariam nesses silos / que hoje apenas resguardam a memória”) ou ligada a uma percepção imaginosamente transposta que procura, como o poeta diz, a “linguagem das formas a interpretação dos lugares”. Lugares vagos, imprecisos, como se se perseguisse uma visão cujos horizontes se vão afastando sempre.
“Ouvir devagar…”
Jornal de Letras, nº. 1048, de 1 a 14 de Dezembro de 2010: 16-17.
[S/ livros de Daniel Faria, Gonçalo Salvado, José Emílio-Nelson e RV.]
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Ruy Ventura publicou um novo livro de poemas, Instrumentos de Sopro. Há nele um sentido que se diria disfórico, o que poemas como este (parcialmente transcrito) revelam de imediato:
não existe / este lugar. sem água / opõe-se à transformação da pedra / guarda veios de uma madeira sem seiva // a serenidade dos passos procura / uma viagem sem destino / longos dedos folheiam / o fumo e algumas ervas sem préstimo – / ferro escorando, em vão, as células / de um corpo sem movimento.
Neste livro faz-se uma opção por uma escrita que se diria cursiva (“leio e releio. Seguro entre as mãos / o corpo e a esperança, a longa oliveira / deitada sobre a fonte”), presa a uma divagação evocadora (“que nome guardariam nesses silos / que hoje apenas resguardam a memória”) ou ligada a uma percepção imaginosamente transposta que procura, como o poeta diz, a “linguagem das formas a interpretação dos lugares”. Lugares vagos, imprecisos, como se se perseguisse uma visão cujos horizontes se vão afastando sempre.
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