JOSÉ DO CARMO FRANCISCO
«Contramina» de Ruy Ventura
– a abóbada, o comboio, o coração, um outro olhar
Publicado in http://transportesentimental.blogs.sapo.pt/ a 13/4/2013 (consultado a 15/4/2013).
Lido na apresentação de "Contramina" em Coimbra, na Casa da Escrita, a 16/4/2013.
A mais antiga batalha da Humanidade não é contra nenhum exército; é contra o Tempo e tudo o que ele significa. A começar pelo desespero, pela solidão, pelo esquecimento. Talvez por essa razão, talvez porque o Homem (no sentido total da palavra) é uma atónita reflexão entre o breve da vida, o frágil do amor e o precário da fé. Talvez por tudo isso (e algo mais) é que a Arte produz monumentos (do latim monumentum) que mais não são do que uma teimosa negação de tudo aquilo que o Tempo dissolveu.
Já Ruy Belo disse um dia no prefácio de um seu livro que «o medo da Morte é a fonte da Arte». E tinha razão porque o artista, seja qual possa ser o seu campo de acção, tudo faz para não morrer. Outro autor, Northrop Frye, avança para uma relação entre as estações do ano e a literatura, ou seja: a comédia na Primavera, o romance no Verão, a tragédia no Outono e a sátira mais a ironia no Inverno.
Mas chega de visão geral e passemos à visão particular deste livro de Ruy Ventura – «Contramina». Uma contramina é o oposto ao primeiro título do autor – «Arquitectura do Silêncio», Prémio Revelação de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores. Trata-se de uma oposição apenas
aparente pois o diálogo aqui inscrito e instalado, não deixa de ser silencioso. O poema é o conjunto de palavras articuladas no silêncio da sua carpintaria interior e particular. Na sua origem mais antiga o poeta é o fazedor, o que constrói a poesia a partir do caos. Escrever é fazer, construir, elevar. O poema pode assim ser visto como uma oração, uma ponte, um monumento. Na página 29 deste livro o tal monumento está presente: «lutamos contra o tempo para que o tempo nos conforte. mais do que casas, erguemos monumentos de carne, onde o sopro da primeira hora penetra cavidades e orifícios para neles depositar os fluídos da existência.»
Tal como num teatro em ensaios ou num palco onde a marcação imprime um ritmo de «entrada-fala-saída», este livro congrega referências não apenas à literatura mas também à música, à escultura, à pintura, à filosofia e também aos evangelhos. A parte mais substancial dos motivos e pontos de partida é da poesia e da ficção chegando o poeta a considerar personagens dos romances como figuras e não os autores dos mesmos. Por outras palavras – Thomas Mann, Umberto Eco, Virgínia Woolf e José Régio são considerados pelas suas personagens e não por si. Também não por acaso o livro de Ruy Ventura é dedicado a Carlos Garcia de Castro e Maria Guadalupe Alexandre e presta homenagem a Judite Peres e Raul Cóias Dias. Afinal toda a literatura é uma homenagem à literatura.
O poeta conhece a confusão da fala e, por isso, convoca o Outro, os Outros, a outra Fala que aqui faz como se fosse sua. Por exemplo na página 15: «há uma face virada a nascente, esperando o centro da noite, o interior da fala. mudo as palavras mas não consigo ordenar as letras que compõem o
universo».
Mas a fala, tal como a casa ou o monumento, não resiste à erosão, à perda e ao desgaste. Por isso o poema adverte: «o adobe desfaz-se com o gelo. a casa dissolve a pedra, o lençol, o livro, a legenda e a lembrança – onde vemos aquele ramo segurando a nossa angústia».
Um dia o poeta Orlando Neves (nascido em Portalegre em 1935) juntou em livro mais de seiscentas possíveis definições de Poesia. Chamou-lhe «Organon». Uma delas consiste em chamar aos Poetas os «mastigadores do Mundo». Foi Cristovam Pavia que deu essa definição. Também em Portalegre num certo dia 21 de Março de 1952 o jovem Poeta David Mourão-Ferreira descobriu a distância entre a estação da CP e a cidade, viajou num calhambeque militar e ouviu de José Régio duas coisas então para ele de todo inesperadas: primeiro «é impossível manter relações pessoais com Miguel Torga» e segundo «Fernando Pessoa pertence ao género dos artistas assimiladores, não dos grandes criadores». Para José Régio «Fernando Pessoa não era um grande criador original mas sim um magnífico assimilador», ou por outras palavras, um mastigador do Mundo.
Neste livro Ruy Ventura coloca lado a lado a memória poética de Cristovam Pavia e de Francisco Bugalho, seu pai, poeta e lavrador em Castelo de Vide. O diálogo possível, imaginado e proposto, surge entre o filho, o Poeta Cristovam Pavia: «descrevemos, sem cessar, o vento entre os pinheiros, uma chuva entes da divisão da terra, no sótão, a mão direita, os dedos demasiado longos. Fragmentos de um texto circundam a abóbada, o comboio, o coração». E o pai, Francisco Bugalho, que poderia ter dito (ou escrito) deste modo: «na terra reservei de antemão o espaço necessário para aumentarmos o fogo em que fomos depositando a nossa sede. perdemos a chave mas fertilizámos o rosto dessa escultura virada a nascente. na montanha, a água do tanque ficou límpida. nela afogámos o oiro e a agonia. o medo desfez a porta. Colocou sobre os músculos o lintel dessa torre, como se fora um tronco de carvalho.»
Abóbada ou Natureza por cima, comboio ou viagem até ao longe, coração ou lugar sentimental onde o Poeta ouve o ruído triplo da Terra, da Locomotiva e do tempo interior. Pode ser esta uma das chaves para perceber o livro «Contramina» de Ruy Ventura. Mesmo quando perceber um livro é apenas encantar-se, esquecer-se e perder-se alguém nas suas citações anunciadas como nas ruelas escuras de uma cidade antiga de onde não apetece sair.