Na sequência da apresentação do meu CONTRAMINA no dia 24 de Maio no auditório da Escola Básica da Brejoeira (Azeitão), cumpre-me o dever de agradecer:
- à colega Luísa Marques pelo convite e por todo o dinamismo;
- a toda a direcção do Agrupamento de Escolas de Azeitão, pela forma como aceitou este evento;
- à dona Edvirges, por ter posto na sala um pouco do nosso Alentejo;
- ao Nuno de Matos Duarte pela sua inteligente apresentação;
- ao António Carlos Cortez pelo ensaio enviado;
- aos alunos, pais e professores que me honraram muito com a sua presença;
- a quantos, não podendo estar presentes, me acalentaram com os seus actos, as suas palavras (ou até com o seu silêncio cúmplice);
- a quantos, felizmente poucos, preferiram enaltecer-me de outro modo, dando razão a Steinbeck n' "A Pérola".
Bem hajam todos!
O
EIXO E A ÁRVORE:
NOTAS
SOBRE A SACRALIZAÇÃO
DO
TERRITÓRIO ARRÁBIDO
“A
Arrábida é que é o altar da Saudade.
Eu
pu-lo no Marão porque sou do Norte.”
Teixeira
de Pascoaes
dirigindo-se a Sebastião da Gama
“[…]
saudade […] é a projecção espiritual
de
formas corpóreas presentes.”
António
Cândido Franco
“[…]
não pretendo legislar, mas encontrar.”
António
Maria Lisboa
Deveria
ser obrigatório entrar em Sesimbra pela serra da Achada. Subir ao Facho de
Santana, parar nesse lugar e aí, em contemplação, estender o olhar na direcção de
todos os pontos cardeais, só depois descendo à vila pela estrada dos Argéis. A
única alternativa possível consistiria na subida, a pé, até ao lugar abandonado
– e tão belo e sublime – da antiga vila medieval, entrando nela pela Porta do
Sol e dela saindo pela Porta da Azóia, não sem antes subir à mais alta torre do
castelo. Só nesses dois lugares é possível obter a apreensão plena do espaço
que, sucessivamente, foi chamado “Akra
Barbarion”, “Cempsicum Iugum”, “Espichel” e “Arrábida”.
*
Para quantos,
de fora, se aproximavam há dois mil anos do espaço que hoje podemos designar
como “Península da Arrábida”, esta
terra singular, finisterra ou “fim do mundo”, era o “Barbarium Promontorium” e a sua serra o “Mons Barbaricus” (cf. Marques, 2009: 46 – 47). Estrabão, no século
I antes de Cristo, em grego, chamou à região do Espichel “Akra Barbarion” (cf. Serrão, 1994: 33- 35), enquanto Avieno, por
seu turno, lhe chamou “Cempsicum Iugum”,
o que indica uma cadeia montanhosa e, talvez, uma povoação estabelecida na
região com nome da mesma família, “Cempsibriga”
(cf. Serrão, 1994: 32).
Não
excluo de todo as explicações latinas do vocábulo mais antigo. Para os romanos,
esta terra deveria ser, de algum modo que desconhecemos, “terra estrangeira” (ou “terra
estranha”, que a raiz é a mesma) (DLP, 99). Mas, tendo em conta os
vestígios materiais e imateriais que comprovam – inequivocamente – uma forte
presença semita, sobretudo fenícia e púnica, na região (fonte ou modelo de
muita da cultura local, que diversas civilizações posteriores não conseguiram ou
não quiseram apagar), tenho a obrigação de olhar os termos à luz das línguas e
dialectos falados por esses povos vindos do Próximo Oriente e do Norte de
África antes da nossa era. Sigo com escrúpulo a metodologia de análise toponímica
que já apresentei noutras publicações (cf. Ventura, 2011: 15 – 19).
Subjacente
a “terra” ou “país estrangeiro / estranho” parece estar o temor provocado nos
falantes pela situação de finisterra. Recordo que o topónimo “Espichel” significa “falésia do abismo” ou “falésia do inferno (do mundo inferior, dos
mortos)”, pela aglutinação de duas palavras hebraicas: shpi
(alto escalvado, falésia) e sh’l (DFP, 245 e 251). Já Moisés Espírito
Santo notou tal leitura (cf. DFP, 76) que, tendo plena confirmação material no
terreno, deve ter designado todo o espaço que vai do Cabo ao fim da Arrábida
pelo menos até ao século XII, como indiciam documentos dessa época (cf.
Ventura, 2011: 53) e a tradução desse nome, para latim ou português, na
designação duma praia situada na costa sul da região, a curta distância da “Pedra do Frade”: a “Praia do Inferno” (cf. Cardoso, 1994: 8). Não me parece, assim, que
os termos “barbarium” ou “barbaricum” tivessem que ver com
qualquer rudeza dos habitantes da região, como por muitos lados se tem escrito.
O termo
parece ter sido, antes, uma adaptação à fonética das línguas grega e latina da
voz semita que se usaria correntemente. Na base de “barbarion”, “barbaricum”
e “barbarium” parece estar a
aglutinação, mais uma vez, de termos hebraicos. Como é usual na toponímia
antiga e tradicional, descrevem o terreno e/ou as suas funções, sem qualquer
fantasia ou lirismo. Recordo que as designações do espaço são sempre lógicas,
materiais, funcionais e/ou descritivas. Afiguram-se-me três hipóteses neste
momento (DFP, 113):
a) br (campo aberto, vazio, puro) + brg (passar, desaparecer,
fugir);
b) BR
(id.) + BRK (orar, venerar, abençoar);
c) br (id.) + br’ (desbravar, arrotear).
Ou seja,
os termos usados na Antiguidade Clássica para nomear o Espichel e a Arrábida
significariam “campo aberto/vazio [por
onde] se passa”, “campo aberto/vazio,
abençoado/sagrado, onde se reza” ou “campo
aberto/vazio, desbravado/arroteado”.
Quanto a
“Arrábida”, seria, como alguns
autores já apontaram, apenas uma “cadeia
de montes” (cf. Marques, 2009: 46) e pouco do que por aí se tem afirmado, com
pouca sustentação material ou contextual.
Veja-se.
Na mesma língua fenícia/púnica, onde se utilizou grande parte do vocabulário
antigo do hebraico e do aramaico, há um nível material que se confirma nas
palavras. Por um lado, temos HR, “monte
ou serra”; por outro, RB, “grande”;
e, por fim, DA, “esta” (DFP, 117,
128, 220). Logo, “serra grande esta”,
HR RB DA… que poderia ser entendida ainda na sua função geográfica ou social de
fronteira, HR BD, pois BD significa “separação”
(DFP, 110), ou na sua função religiosa – provavelmente relacionada com os
santuários fenícios-púnicos que os arqueólogos descobriram em Alferrara ou na
serra do Risco, à vista de Abul (cf. Gomes, 2001), – como local onde
permaneciam sacerdotes transmissores de oráculos, BD ou BAD (DFP, 110).
Há uma
leitura aceitável do topónimo antigo “Cempsibriga”
que não devo ignorar. É provável que um dos locais de vigia da região se
situasse algures nas proximidades do castelo de Sesimbra, talvez no castro de
que ainda subsistem vestígios apreciáveis num morro a nascente dessa construção
medieval. Os “Cempsos” talvez fossem
conhecidos assim pela vigilância que se exerceria, de forma privilegiada, a
partir do seu território montanhoso e escarpado, o “Cempsicum Iugum” registado por Avieno (“Jugum” significa “cadeia
montanhosa” ou “cabeço de uma
montanha” (DLP, 371)). TZPIH em hebraico é um “posto de vigia” e TZPH significa na mesma língua “montar guarda / vigiar” (DFP, 234) (veja-se
o ar de família com o verbo português “espiar”,
que daí virá também…). TZPIH ZH seria uma maneira, dialectal, de dizer “esta vigia” (ou, em termos mais
correntes, “esta atalaia”). “Cempsibriga” seria pois, em fenício ou
púnico, a “muralha [de onde] se vigia”,
pois “briga” nada tem que ver com o “celta” em Portugal, como alguns
celtistas/germanistas muito propagaram, curiosamente sem nunca referirem fontes
legíveis. Deriva do termo hebraico BRIG, que significa “muralha”, “cintura”, “travessa”
(DFP, 113)…
Concluindo,
embora sem dogmatismos: na Antiguidade, o território arrábido estaria
sinalizado por vários marcos linguísticos, com capacidade descritiva, que acabaram
por identificar o território:
a) um
campo aberto, desértico ou vazio de gentes, pouco povoado, local de passagem,
que os ocupantes romanos viram como “terra
estranha”, talvez porque fosse considerado, pelos próprios autóctones, como
local sagrado, de oração;
b) uma
finisterra, entendida como fim do mundo e, provavelmente, como fronteira dos
infernos abissais;
c) uma
serra grande, talvez sentida como fronteira-separação e onde existiriam
sacerdotes/profetas que proferiam oráculos;
d) e,
por fim, um local de vigilância amuralhada.
A esta
realidade mais ancestral sobrepôs-se outra que a confirmou, reinterpretando-a e
modificando-a, sem a adulterar. Ao inferior (inferno, abismo marítimo) e
superior (montanha), à vigia/vigilância e abertura/passagem/deserto, ao
vazio/sagrado, sobrepuseram-se outras realidades simbólicas de ligação entre
seres e território. Os eixos mantiveram-se, mas – como num “eterno retorno” (Nietzsche) –
transfigurados.
O tempo
– numa cronologia imemorial preservada pelas lendas, como fragmentos de um mito
global – veio confirmar esta estrutura axial com rituais, legendas, construções
e ocupações diversas.
Aos dois
extremos do eixo atribuíram-se nomes iguais, comuns, indicando uma identidade e
uma comunicação entre os dois pólos: “Memória”.
O substantivo abstracto colou-se a construções religiosas (oratórios/ermidas)
que remontam à Idade Média (sécs. XIII e XIV), diminutas na sua expressão
material, mas imaterialmente enormes, dada a sua ligação às narrativas da
aparição nesses locais de esculturas sagradas, aí fixadas após deslocações
misteriosas. Em qualquer delas, temos esculturas de síntese (femininas e
masculinas, adultas e infantes, marianas e crísticas) que sobem, ascendem do
mundo inferior, tenebroso, do mar, até um lugar alto, superior, montanhoso,
numa acção sagrada, revelada aos homens por fenómenos luminosos/estelares. Seja
na lenda de Nossa Senhora da Pedra Mua ou na narrativa de Nossa Senhora da
Arrábida, a descoberta/invenção exige dos seres humanos uma compreensão da luz
e/ou do sonho e um movimento de estranhamento, de peregrinação, complementares.
Ao Espichel vai-se por via terrestre, seca. À Arrábida chega-se por via
marítima, húmida. (Parecem termos alquímicos ou indicações iniciáticas…) Ao
planalto ocidental, em cujo extremo ficaram gravadas as pegadas de uma
burrinha, vai-se e retorna-se. Ao monte oriental sobe-se, fica-se e muda-se de
vida, numa “metanóia” integral, rumo
à ascese.
De
comum, permaneceu até aos nossos dias o ritual cíclico que todos os anos
recorda os factos ou um voto imemorial: os círios. Os círios são um grupo (SHR,
“grupo”) e uma acção de júbilo e
convívio (SHR, “cantar”),
concretizada no “canto” e na
celebração cantada (SHIRH) (DFP, 248 e 252). Assim dizem as palavras
vindas do fenício e/ou do púnico. Tal corresponde ao que os círios são, ainda
hoje.
Não podemos
contudo esquecer que SHR é, também, “umbigo”
e “cordão umbilical” – que podem,
como se sabe, ser vocábulos que designam o “axis
mundi”. Disso talvez nos fale o outro eixo, fixo numa terra do meio,
situado rigorosamente a meio da linha simbólica que vai da “Memória” à “Memória”. Nesta linha tão importante implantaram-se ao longo de
mais de dois mil anos, em épocas diferentes, marcos religiosos tão significativos
quanto um bétilo (pedra sagrada semita, mais tarde cristianizada) (perto da
Roça do Casal do… Meio, cf. Serrão, 1994: 101 – 102), uma azóia sufi (ainda
hoje recordada na toponímia e em vestígios materiais encontrados (cf. AA. VV.,
2009: 172 – 181)) e uma ermida dedicada à Senhora da Pinha (mais tarde chamada
de “El Carmen”). E acabou por
crescer, arborescendo, deitando ramos em direcção ao sul, por Sesimbra, penetrando
baía adentro, e ao norte/noroeste, nomeadamente até Alfarim.
Nada
parece ter sido deixado ao acaso neste território sacralizado, unido pelo
divino, que só as manigâncias políticas, ocorridas entre meados do século XVIII
e a década de 70 do século XX, puderam dividir.
Recorde-se
que no centro simbólico da linha está Cempsibriga, o tal lugar que pode e deve
ter sido de vigia/vigilância. Desse local, situado algures no vale, entre o
cabeço do castelo e o castro, traçou-se um caminho directo até ao oceano (o que
não significa geometricamente direito) e nele se elevaram vários santuários/edifícios
marcantes, num percurso simbólico, de (re)ligação.
Para o
outro lado dessa linha longitudinal que liga o Espichel à Arrábida parte outro
eixo. É eminentemente feminino, pois parte da capela de Sant’ Ana
(cristianização da Grande Mãe) até Alfarim, terra da Concepção – como, afinal,
o seu nome indica. ALP (que se pode ler “alf”)
é o “clã”, enquanto HRY significa “conceber” (DFP, 101 e 128). O nome da
sua padroeira cristã parece confirmá-lo: Nossa Senhora da Conceição, aquela que
vence as forças ctonianas/demoníacas pisando uma serpente simbólica.
O vale
de Sesimbra, entre o morro do castelo e o facho de Santana, é pois o eixo
central de todo o território arrábido. Só no século XVI a mudança da povoação
para a “Ribeira”, com consequente
fundação de nova paróquia na década de 1530, parece ter deslocado aquilo que,
provavelmente, práticas geomânticas de marcação do terreno ou de observação do
espaço haviam distinguido/sacralizado há muito num alinhamento. Sem que algo se
tenha perdido. Pelo contrário, creio ter acontecido um enriquecimento.
Nesse
local, entre o mar e o campo (a SHD que deu em “Achada” e significa “campo”
(DFP, 246)), há mais dois elementos que reforçam – e de que maneira… – a
sacralidade desse espaço com ocupação humana milenar.
Vemos,
por um lado, Sesimbra e os seus navegantes protegidos por “dois arcanjos” petrificados nos morros do “Arcanzil”, um a nascente, outro a poente da vila (Pitôrra &
alii, 2011: 40 – 41). Os mensageiros/protectores duplos fazem lembrar as duas
faces de Janus, deus das portas, das transições e das passagens, marcando a
mudança do passado para o futuro, do baixo para o alto (DS, 530-531). Mas o
termo, em si, pode vir do fenício-púnico HR KSL, significando “monte[s] [da] confiança” (DFP, 160), não
sendo de excluir uma proveniência do latim “agger”
(baluarte, elevação) (DLP, 43) ou do grego “árcho”
(proeminência, grau elevado, chefe) (DE1, 296). Não deve também ficar na sombra
o parentesco fonético e simbólico com os termos “arca”, “arco” e “arcano”.
Por
outro, temos a lenda do achamento da imagem do Senhor Jesus das Chagas,
protector dos pescadores sesimbrenses (e não só). Essa narrativa coloca
Sesimbra na rota da cruz, mas não de uma cruz qualquer. Trata-se de um símbolo
com duas faces, sintético, como todo o seu território semeado de marcos
simbólicos que conciliam os opostos. Lembro que a cruz é, para G. K.
Chesterton, “o símbolo do mistério e da
saúde”: “[…] embora tenha no centro uma colisão e uma contradição, pode estender
os seus quatro braços para sempre, sem alterar a forma. Porque tem um paradoxo,
no centro, pode crescer sem mudar” (Chesterton, 1958: 55). É, também, uma
via luminosa e de testemunho, de sangue e de redenção – “per crucem ad lucem”, tal como na árvore (DS, 68) em que o eixo
primordial acabaria por se transformar – e, igualmente, na opinião de Guénon, um
símbolo de totalização espacial e de união dos contrários (DS, 325). A cruz de
Sesimbra, de onde pende um Cristo Morto esculpido no norte da Europa na
primeira metade do século XVI (infelizmente maculado por um restauro bárbaro
executado por curiosos sem ética artística), quando sai em procissão é dolorosa
e florida, morte e ressurreição, paixão e aleluia.
O que
mais interessa na lenda da invenção da imagem de Jesus crucificado é aquilo que
tem sido menosprezado: o achamento do braço perdido na praia, como pedaço de
lenha/madeira que só no fogo se revela, quando não é consumido pelo fogo. Tal
como a Senhora do Cabo e a Senhora da Arrábida, saiu do mar, do abismo, do
mundo inferior, vencendo-os para se dar a epifania. Recordo que o braço
simboliza a força, o poder, o socorro prometido, a protecção, mas também a
justiça (DS, 146 – 147), que é esta parte do corpo de Deus, em conjunto com a Sua
mão, que dá a vitória ao povo de Israel (segundo as Escrituras). Mas o “braço”, se atentarmos no som da palavra,
pode ser também BR ASH – “filho do
fogo”, “nascido do fogo” (DFP,
106, 113) – ou BR’ ASH – “criação
do fogo” (idem). Poderia o que era fogo ser queimado pelo lume?
Além
disso, o braço é de madeira, um pedaço de lenha. Temos aqui ressonâncias de uma
relíquia, verdadeira ou suposta, da Santa Cruz ou do Santo Lenho – a que ainda
hoje existe em relicário guardado na matriz de Sesimbra, transportada sob o
pálio no dia da festa magna, a qual se supõe ser única na diocese de Setúbal
(cf. Monteiro, 2002: 22). É que a solenidade do Senhor Jesus das Chagas calha
na festa cristã da “invenção (descoberta)
da Santa Cruz” por Santa Helena no Monte Calvário, 4 de Maio. A “madeira” dessa imagem, que não arde,
lembra por seu lado a “mater”, que em
latim é “mãe”, “causa”, “fonte”, “tronco”, “origem” e “pátria” (DLP,
407). “Madeira” e “matéria” são uma e a mesma palavra.
Pegando nestes termos e no nome do Senhor Jesus, poderemos até dizer que são
uma imagem espelhada da Portugal, cujo símbolo maior, como se sabe, são as
chagas que Ele ostenta no nome e na escultura.
Mas é
preciso ir à procissão do Senhor Jesus das Chagas para reconhecer em Sesimbra o
eixo religioso da região. O cortejo, com número muito significativo de fiéis,
percorre quase em espiral as estreitas ruas da parte velha da vila durante mais
de três horas. Nalgumas a enorme escultura quase nem cabe, mas lá vai passando
e pisando o alecrim que as ornamenta como planta sagrada (a mesma com que os
velhos de Alcabideche e da Caparica cobriram a primeira ermida do santuário da
Pedra Mua), enquanto os devotos apanham e guardam ramitos da planta (que
guardam como vestígios sagrados). No Largo da Marinha benzem-se os barcos e os pescadores
– e a água sacralizada, benta, é agente de um ritual antigo de acalmação do
mar, dessa potência imensa que representa as forças do abismo (DS, 623) e era
cultuada como Neptuno na zona do Outão. É preciso dominar as ameaças com a cruz
dupla, na sua morte e na sua ressurreição.
O
estranho é que há muito o cortejo não é só de sesimbrenses, mas de toda a
região. As Chagas não se deslocam a outros santuários, mas em compensação,
surpreendidos ou não, vemos na procissão das Chagas os círios/confrarias de
outros locais de culto ancestral com os seus estandartes. Prestam vassalagem
espiritual ao seu suserano, visível no símbolo duplo da morte e da vida. Vêm do
Espichel (e, através dele, de todas terras que aí vão ou foram), das Pedreiras
(cuja população venera a Senhora de El Carmen), do do Senhor do Bonfim de
Setúbal, da Atalaia.
Às
Chagas, à sua madeira/lenho, à sua cruz da Quaresma e de Maio, da Paixão e da
Invenção, da Dor e da Redenção (que é Ressurreição e Ascensão) – todos se
rendem. Talvez porque Sesimbra e o seu vale sejam o eixo simbólico,
arborescente, de todo um território que vai de Memória a Memória, da Concepção
à Cruz e à Eternização – na Arrábida.
Dedico
esta súmula, a desenvolver e aprofundar num trabalho futuro,
o
senhor António Reis Marques, investigador sesimbrense
que
muito me tem ensinado. Vejo-o, também, como ex-voto
ao
Senhor Jesus das Chagas (Ele sabe porquê).
Azeitão,
parcela perdida do concelho de Sesimbra,
em
13 de Maio de 2013.
1. Dicionários
Chevalier, Jean & Gheerbrant, Alain (1982) – Dictionnaire des Symboles. Édition revue et augmentée, Paris, Robert Laffont /
Jupiter. [DS]
Espírito
Santo, Moisés (s/d) – Dicionário Fenício
– Português, contendo os glossários das línguas e dialectos falados pelos
Fenícios e Cartagineses: cananita, acadiano, assírio e hebraico bíblico. 2ª
edição, Lisboa, Instituto de Sociologia e Etnologia das Religiões – Faculdade
de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. [DFP]
Machado,
José Pedro (1995) – Dicionário
Etimológico da Língua Portuguesa. Lisboa, Livros Horizonte. [DE]
S/A
(2008) – Dicionário de Latim – Português.
(3ª edição revista), Porto, Porto Editora. [DLP]
2. Outra bibliografia
AA.
VV. (2009) – O tempo do Risco – Carta Arqueológica
de Sesimbra. S/l, Câmara Municipal de Sesimbra.
Cardoso,
João Luís (1994) – “O litoral sesimbrense da Arrábida. Resenha dos
conhecimentos da sua evolução quaternária e das ocupações humanas
correlativas”. Sesimbra Cultural,
Sesimbra, nº. 4, Dezembro: 5 – 12.
Chesterton,
Gilbert Keith (1958) – Ortodoxia.
Porto, Livraria Tavares Martins.
Gomes,
Mário Varela (2001) – “Divindades e santuários púnicos, ou de influência
púnica, no sul de Portugal”. Os Púnicos
no Extremo Ocidente, Lisboa, Universidade Aberta: 99 – 148.
Marques,
Luís (2009) – Arrábida e a sua
religiosidade popular. Lisboa, Assírio e Alvim.
Monteiro,
Rafael (2002) – A Festa das Chagas, os
painéis de Nuno Gonçalves e outros temas. S/l, Câmara Municipal de
Sesimbra.
Pitôrra,
Paulo (coord.) & alii (2001) – O que
veio à rede… - Vocabulário, alcunhas e topónimos de Sesimbra. S/l, Câmara
Municipal de Sesimbra.
Serrão,
Eduardo da Cunha (1994) – Carta
Arqueológica do Concelho de Sesimbra. Lisboa, Câmara Municipal de Sesimbra.
Ventura,
Ruy (2011) – “Para uma carta toponímica da região de Aljezur”. Al-Rihana – Revista Cultural do Município de
Aljezur, s/l, nº 5: 11 – 56.
Fernando Guimarães
(2013)
SOBRE CONTRAMINA
[Carta datada de 22/12/2012]
Acabo de
ler o seu livro “Contramina”. Ele parece representar um limite a que conduz a
noção de “poesia dramática” tal como foi considerada por Fernando Pessoa, ou,
se se preferir, pelo Modernismo quando ele se prolonga a um Surrealismo que
tanto se aproximou do nosso tempo.
Li-o
como um conjunto de poemas a que vários nomes ou personagens (depois
identificados no final) vêm dar uma unidade que quase se diria estrófica. Um
desses nomes diz: “nada recebo de uma voz distante”. Não há, pois, diálogo.
Talvez o seu livro seja antes um monólogo, uma voz ou logos único onde se
vislumbra uma imaginação transbordante, quase excessiva, plena.
[…]
“A mesma voz quando as vozes são diferentes”
[sobre livros de Robert Bréchon, RV e Casimiro de Brito]
JL, nº 1111, de 1 a 14 de Maio de 2013: 16 – 17.
[…]
Repare-se […] no título desta crónica. Ele, de certo modo, resume aquela ideia
segundo a qual a imitação, o fingimento, a divergência e a convergência
autoral, a poesia dramática tal como a entendiam Pessoa ou T. S. Eliot acaba
por presidir à criação literária. Todos estes vectores marcaram uma poética que
tem atravessado a literatura ocidental desde o Romantismo à modernidade, ganhando
aqui um especial relevo. Seguindo tais direcções ou caminhos, o poema vai ser
percorrido por um sentido marcado pela sensibilidade, a que os românticos se
mostraram fiéis, pela imaginação, aquela que o Surrealismo soube levar às
últimas consequências ou, ainda, pela reflexividade que permite que a linguagem
poética seja também conhecimento.
Ao
dizer-se, no referido título desta crónica, que a mesma voz se encontra em
vozes diferentes como que se revela bem um daqueles traços que marca uma
poética que é precisamente a da modernidade: o autor no texto é a ausência que
o torna presente e, portanto, está presente noutro registo, isto é, enquanto
perda. Um novo livro de Ruy Ventura, acompanhado de um [posfácio] de António
Cândido Franco, confronta-nos […] com questões desta índole. Intitula-se ele Contramina. António Cândido Franco
fala-nos, acerca dele, em “enunciação a vozes múltiplas”. Com efeito,
Contramina adopta uma forma teatral, com várias personagens que desenvolvem, no
entanto, um discurso contínuo, de modo que o diálogo se torna de certo modo num
longo monólogo.
O
teatro, nestas circunstâncias, torna-se anti-teatro. Os personagens
transformam-se em poemas. Veja-se este excerto da fala de um deles: “a erosão é
tão só um efeito de linguagem em que o freio não impede o transporte dos
resíduos numa enxurrada cujo entulho ocupa todos os caminhos disponíveis.
coberto o asfalto, nenhuma incisão será possível sobre os ossos ou sobre a
pele. dentro deles, um cérebro resiste à entrada das vozes e à sua fixação na
imagem. só o movimento admite a entrada da sombra na circulação sanguínea. sem
verbo, o ruído afasta-se.”
Há aqui
uma apesar de tudo dispersiva tonalidade dramática que, como diz António
[Cândido Franco], deriva de um “breviário pessoal de vozes”. Esse tom é de
certo modo apocalíptico, mas apaziguando-se na deriva de uma imaginação que
prepara uma espécie de epifania quando a vida recomeça “nas árvores, na pedra,
noutros pedaços da madeira de Deus”. Mas, ao lado disto, resta a surpresa de
assistirmos àquele momento em que a autoria, no poema, ou os personagens, no
teatro, são postos em questão através de outras vozes. Um dos nomes ou
personagens do livro acabará mesmo por dizer que “nada recebo de uma voz
distante”. É como se este fosse, afinal, o segredo último da imitação daquelas
outras vozes a que se referia Robert Bréchon.
[…]
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