Fernando Guimarães
(2013)
SOBRE CONTRAMINA
[Carta datada de 22/12/2012]
Acabo de
ler o seu livro “Contramina”. Ele parece representar um limite a que conduz a
noção de “poesia dramática” tal como foi considerada por Fernando Pessoa, ou,
se se preferir, pelo Modernismo quando ele se prolonga a um Surrealismo que
tanto se aproximou do nosso tempo.
Li-o
como um conjunto de poemas a que vários nomes ou personagens (depois
identificados no final) vêm dar uma unidade que quase se diria estrófica. Um
desses nomes diz: “nada recebo de uma voz distante”. Não há, pois, diálogo.
Talvez o seu livro seja antes um monólogo, uma voz ou logos único onde se
vislumbra uma imaginação transbordante, quase excessiva, plena.
[…]
“A mesma voz quando as vozes são diferentes”
[sobre livros de Robert Bréchon, RV e Casimiro de Brito]
JL, nº 1111, de 1 a 14 de Maio de 2013: 16 – 17.
[…]
Repare-se […] no título desta crónica. Ele, de certo modo, resume aquela ideia
segundo a qual a imitação, o fingimento, a divergência e a convergência
autoral, a poesia dramática tal como a entendiam Pessoa ou T. S. Eliot acaba
por presidir à criação literária. Todos estes vectores marcaram uma poética que
tem atravessado a literatura ocidental desde o Romantismo à modernidade, ganhando
aqui um especial relevo. Seguindo tais direcções ou caminhos, o poema vai ser
percorrido por um sentido marcado pela sensibilidade, a que os românticos se
mostraram fiéis, pela imaginação, aquela que o Surrealismo soube levar às
últimas consequências ou, ainda, pela reflexividade que permite que a linguagem
poética seja também conhecimento.
Ao
dizer-se, no referido título desta crónica, que a mesma voz se encontra em
vozes diferentes como que se revela bem um daqueles traços que marca uma
poética que é precisamente a da modernidade: o autor no texto é a ausência que
o torna presente e, portanto, está presente noutro registo, isto é, enquanto
perda. Um novo livro de Ruy Ventura, acompanhado de um [posfácio] de António
Cândido Franco, confronta-nos […] com questões desta índole. Intitula-se ele Contramina. António Cândido Franco
fala-nos, acerca dele, em “enunciação a vozes múltiplas”. Com efeito,
Contramina adopta uma forma teatral, com várias personagens que desenvolvem, no
entanto, um discurso contínuo, de modo que o diálogo se torna de certo modo num
longo monólogo.
O
teatro, nestas circunstâncias, torna-se anti-teatro. Os personagens
transformam-se em poemas. Veja-se este excerto da fala de um deles: “a erosão é
tão só um efeito de linguagem em que o freio não impede o transporte dos
resíduos numa enxurrada cujo entulho ocupa todos os caminhos disponíveis.
coberto o asfalto, nenhuma incisão será possível sobre os ossos ou sobre a
pele. dentro deles, um cérebro resiste à entrada das vozes e à sua fixação na
imagem. só o movimento admite a entrada da sombra na circulação sanguínea. sem
verbo, o ruído afasta-se.”
Há aqui
uma apesar de tudo dispersiva tonalidade dramática que, como diz António
[Cândido Franco], deriva de um “breviário pessoal de vozes”. Esse tom é de
certo modo apocalíptico, mas apaziguando-se na deriva de uma imaginação que
prepara uma espécie de epifania quando a vida recomeça “nas árvores, na pedra,
noutros pedaços da madeira de Deus”. Mas, ao lado disto, resta a surpresa de
assistirmos àquele momento em que a autoria, no poema, ou os personagens, no
teatro, são postos em questão através de outras vozes. Um dos nomes ou
personagens do livro acabará mesmo por dizer que “nada recebo de uma voz
distante”. É como se este fosse, afinal, o segredo último da imitação daquelas
outras vozes a que se referia Robert Bréchon.
[…]
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