António Carlos Cortez
Ruy Ventura:
o poema como
espectáculo
(do mundo)
«Contramina
é uma tessitura de fios que se entrecruzam em dois planos. Em primeiro
lugar deparo com uma teia de figuras, na ordem das várias dezenas, que se
constituem como que a urdidura basilar da tapeçaria. Tais personagens, que
tanto têm de colectivas como de pessoais, parecem formar a constelação de base
onde se podem lançar os fios da trama. Esses fios, que dão a textura deste
aparato, são as falas das figuras. Figuras e falas são assim a tela e a trama
desta peça, que apresenta ainda três citações, uma abertura e um fecho.»
Assim se deverá ler, segundo escreve
António Cândido Franco no posfácio a este livro de Ruy Ventura, este mais
recente livro dum poeta que, nascido em 1973, publicou já Arquitectura do Silêncio; Sete
Capítulos do Mundo; Assim se Deixa
Uma Casa; O Lugar, A Imagem; Chave de Ignição e Instrumentos de Sopro. Este é, portanto, o sétimo livro de alguém
que, aos querenta anos, se afirma como um autor poliédrico, ou melhor, como um
poeta para quem a poesia é experiência da linguagem e não tanto a famigerada
(ou equivocada) linguagem da experiência. Neste aspecto Ruy Ventura afasta-se
de forma absoluta de certa voga poética que foi moldando o gosto e a prática da
escrita nos últimos dez a quinze anos em Portugal, preferindo essa consciência
linguística da palavra.
Se repararmos, Cândido Franco chama-nos
a atenção para o facto de este livro se articular, no fundo, em torno de três
semas-chaves, em torno de três palavras que são o princípio e o fim (a
finalidade?) deste «contramina»: o livro é teia, e o texto é tecido
e trama de falas e figuras. Não será por acaso que o fascínio da
linguagem se exerce em função dessa lúcida noção do poema como
texto-trama-tecido, numa barthesiana – mas bem assimilada – lição do texto como
gramática de figuras que mutuamente se articulam e articuladamente são
participantes de cenários. Diga-se de outro modo: Ruy Ventura experimenta aqui
o que, para uma autora que lhe deve ser cara – Fiama Hasse Pais Brandão – era o
poema como «área branca», área textual onde a tessitura do real se interpreta
por meio da essência humana que a diz: as palavras.
Noutras ocasiões tinha já lido Ruy
Ventura. Por exemplo, quando li Instrumentos
de Sopro. Vi, por essa altura, a proximidade deste autor com Fiama, é
certo. Mas também com certo Carlos de Oliveira, aquele que mais tangencialmente
está dum telurismo que nada tem de Torga, mas deve muito ao universo
vivificador dum João Cabral de Melo Neto. Não falo dum telurismo sequer
religioso. Apetece-me, antes, relacionar essa vontade de recriação do mundo,
tal qual a lemos em Ventura, com a vontade de criação dum mundo de palavras que
é sempre, bem vistas as coisas, o mais alto desígnio da poesia. Se a nossa
relação com o mundo se faz por meio da linguagem, o poeta afirma-se nesse telos único e talvez último que é o de
saber que tudo começa e acaba nas palavras. Talvez por esse motivo Contramina seja um livro armadilhado, mais do que
qualquer dos outros livros anteriormente publicados por Ruy Ventura. E essa
armadilha está no modo como a teia, a trama e o tecido são objecto de um
tratamento a todos os níveis – apetece dizer - «operático», como se (e daí
Fiama e Carlos de Oliveira), todas as cenas tivessem lugar no texto e não fossem
pensadas para a representação de facto. A religiosidade que possamos ver nesta
poesia é, neste sentido, a religiosidade própria de quem sabe que o fenómeno
poético – como quis, em tempos, Jean Onimus – é um fenómeno essencialmente
espiritual porque é essencialmente «de linguagem» e é na linguagem que
figuramos o mundo e o podemos, se quisermos, subverter ou a partir das palavras
compensar a falha estrutural do nosso ser e estar no mundo. Construir figuras;
figurar, projectar imagens, eis o que o autor de Contramina nos convida a fazer.
A epígrafe de abertura, de genesíaca
inspiração, será pois um bom modo de ler o livro, de aí iniciarmos o percurso.
Encenação de vozes, Ruy Ventura terá lido «Frisos», de Almada Negreiros, para
além desse já clássico «Seis Personagens à procura de autor», de Pirandello.
Como o «Director» da peça do dramaturgo de Agrigento, Ventura poderia
interromper, invectivar, aconselhar, criticar, elogiar, irritar-se, ironizar
com as «falas» das suas personagens. Mas o que acontece é que estas
falas-figuras, actuam para além do «Director»/autor «Ruy Ventura». As cascatas
de imagens que cumprem – que são ditas – por cada uma das «máscaras» deste
livro escapam à autoridade do autor. Por isso, naquilo que poderia ser lido
como um primeiro acto deste livro armadilhado – a meio caminho entre o texto
poético e o texto dramático – não nos espantemos por se iniciar da seguinte
forma este livro:
«destroços emergem desta língua. outra
língua, sem voz, ecoa nos lugares e em vozes dominadas pela perda.»
Quem fala é «João». O do Apocalipse?
Talvez sim ou talvez não. Mas importa mais, a meu ver, o que se diz, deixando
em aberto a simbologia ou o «estatuto» de quem diz. Desde logo, ao assumir-se
que de uma língua emergem destroços, o que se afirma é a força destruidora de
um dizer que, feito destroços, pode, em todo o caso, emergir: isto é – ser
mundo. É um dizer que reenvia aos átomos e minerais, substâncias geradoras da
vida. Fala-se, nessa primeira voz, do «ouro enterrado na pronúncia da matéria».
É justo que assim seja o primeiro movimento de leitura: é de poesia, parece-me,
que este «João» vem falar. A poesia é sempre, para recuperar, Deleuze (mas não
abusemos na consabida estratégia retórica da citação pela citação – e também
aqui não haverá espaço para citar Walter Benjamin - que fica sempre bem nestas ocasiões), essa
linguagem de destroços, essa gaguez e estremecimento da fala quotidiana.
Se o livro de Ruy Ventura é ou está
minado, a hipótese de o desarmadilhar será o de vermos como, por detrás das
falas das personagens (de João Evangelista a Santo Agostinho, passando por
Graça Morais, Zénon [uma personagem de Marguerite Yourcenar], Casaubon
[personagem de Umberto Eco] e Orlando [protagonista do romance de V. Woolf],
sem esquecer outras «figuras» como Manoel de Barros, poeta brasileiro, Carlos
de Oliveira, Cosme Lourenço – um mestre de obras – Francisco Bugalho – poeta e
lavrador – até Cesariny, Fiama e Fernando Pessoa, Sá-Carneiro ou Gabriela
Llansol – e muitas outras figuras faltam neste elenco breve) se ergue, mais do
que a figuração das figuras, a tessitura das falas. É como se, na verdade, cada
fala/ cenário que as «máscaras» dizem pudessem ser, no fundo, destituídas de
nome próprio, pois não importa, de facto, saber quem consuma o quê (que uma epígrafe
de fecho restitui à origem crística, como sendo as últimas palavras do
Nazareno, dizendo que tudo estava, então, consomado), mas saber sobre e como
cada uma das falas a si mesma se vai consumindo nesse exercício de gaguez que é
dar ao leitor a surpresa constante de um livro difícil, porque se lê a vida – a
do próprio autor ou a de outros – de forma exigente.
E com razão podemos falar de um texto
estranho cujo engendramento se faz por meio de uma permanente descoincidência
entre fala e figura. Os sete quadros lírico-dramáticos que compõem este livro
são, para um leitor ingénuo, quase sonhos, espécie de projecção de imagens, num
processo de escrita que tem tanto de rigoroso como de alucinatório. Ao
colocar-se em cena, no texto, na página, tanta voz, como equilibrar os
diálogos? Como o pirandelliano Director? Como quem, sabendo de antemão o
projecto de livro, quisesse dizer-nos que o que neste livro prevalece é a
subversão do poético pelo lado dramático do tratamento do texto? Tratar-se-á
dum livro citacional, sem mais? Ou, pela citação, promove-se uma espécie de
viagem ao mundo entendido como texto, como se fosse possível – a Ruy Ventura –
refazer o seu «Livro da Natureza»?
Sejamos mais radicais. Será talvez
possível entender a experiência poética aqui presente como um degrau já
percorrido pela história dos géneros literários, reservando-se Ruy Ventura o
direito de, também ele, contribuir para
aquilo que pessoanamente poderíamos ver como a subversão total dos géneros
literários, na medida em que o «modo lírico», o género poético é transfigurado
em um modo outro. Nesse sentido, o autor «Ruy Ventura» é como que o veículo de
transmissão das vozes que, autónomas, firmam um estranho pacto de leitura: contramina é um texto, é trama de vozes
e é tecido de figuras que, em rigor, nos desautoriza a qualquer leitura segura,
de tão minado que está este volume por uma pessoana e labiríntica rede de vozes
que vivem pela voz do autor, diluindo-a e fazendo-a comparticipar desse jogo de
vozes várias que, por diversas vezes, ir-se-ão revezando, como se esse teatro
polifónico construísse um mundo explicativo dos mundos pertencentes ao universo
de cada «personagem» que comparece na página.
É nesta perspectiva poliédrica, como se
o livro fosse um poliedro de vozes, e fosse ele mesmo figura, que Contramina se torna esse «teatro
especular» de que fala Cândido Franco. Mas esse teatro especular é, na verdade,
teatro performativamente espectacular, pois é como espectáculo de vozes – e não
como speculum de vozes (estas vozes
não são o espelho das pessoas ou dos referentes que as disseram num passado
longínquo ou recente, sejam elas «Agostinho» ou «Fiama») – que a escrita se n
os oferece em todo o esplendor da sua performatividade. Não é por acaso que Ruy
Ventura coloca uma voz como Gabriela dialogando com vozes como Amatus ou João.
Sabemos bem quanto Amato Lusitano ou João, o evangelista, partilham entre si o
nome - «João» - e quanto a questão no nome (só mais um dos múltiplos aspectos
fascinantes num livro como este, estranho – e por trazer consigo a condição da
literatura: causar estranhamento) se impõe como das que mais obsessivamente se
jogam no fazer literário. De facto, perguntemos: quem no nome de quem e pelo
nome de quem nos vem falar em Contramina ?
E a resposta, lacunar, parcial e provisória só poderá ser – pelo menos para mim
– a voz da própria Literatura, assim com
maiúscula.
É que, em rigor, a construção de vozes
aqui presente, neste teatro espectacular e em cuja escrita as figuras se
levantam para serem o que são: figuras; essa construção de vozes é um modo
subtilmente terrorista de dizer aos leitores que já não há espaço, no mundo
actual, para a palavra de poesia. Ou, dito de outro modo, que o mundo dito
pelas palavras não tem de ser esse mundo que, nas palavras, se torna mais banal
do que é. Ruy Ventura, cujo percurso «original e exacto» será de acompanhar
sempre, é um desses artistas para quem o mundo real conta, para quem os dados
sensíveis contam, mas aos quais convém dar o relevo que só a linguagem de
poesia confere. Um relevo próprio da arte, pois se a arte é essa «contramina
poderosa do inefável», é possível que um livro assim ponha em relevo um modo
absolutamente radical de dizer a realidade do nosso mundo.
Nesse sentido, Ruy Ventura está muito
mais próximo dessa linhagem poética que reenvia aos «filhos de Álvaro de
Campos» (para terminarmos lembrando Eduardo Lourenço e aqueles que, segundo o
ensaísta, souberam revolucionar a linguagem do romance nos anos 60 (na poesia
ocorreu o mesmo, como sabemos, com poetas como Gastão Cruz, Fiama ou Herberto
ou Ruy Belo)) recusando um realismo em poesia que, querendo ser do seu tempo,
mais não é do que essa nota de rodapé dum processo poético que teve na
reinvenção ou subversão dos géneros e da linguagem quotidiana os seus momentos
mais fulgurantes.
Neste início de século, quando uma
equivocada moda de poesia realista ou dita «da experiência» pretende ser o
pensamento único na poesia, eis um livro que tem de ser lido naquilo que é: na
sua linguagem lírico-dramática, no seu engendramento ou arquitectura exigentes
que fazem das páginas as cenas teatrais de vozes que, vindas da tradição,
agitam o nosso ser e estar aqui. E o ser e estar aqui, no caso de Ruy Ventura,
é assumir que a poesia pode ser o lugar onde há uma espécie de epifania, de
«visão interior», a mesma de que falam os seus mestres – mestres da linguagem –
Herberto Helder, Cesariny, Fiama ou Carlos de Oliveira. A este último
atribui-se uma das mais sugestivas expressões do que a própria poesia de Ruy
Ventura pretende ser: poesia que tem a brevidade (a incisão?) da pedra. A
pedra, não o esqueçamos, é o poema que está no meio do caminho, a palavra que
se interpõe entre nós e o mundo sensível. Que o poema imite a «incerteza das
palavras» é revelar quanto a poesia, sendo monumento de palavras, manipulação
delas e construção dum mundo por meio delas, é sempre o falar incerto. O dizer,
a dicção que se afasta dos que raramente se enganam e nunca têm dúvidas. Esses,
os que corrompem a palavra e a tornam comércio e propaganda, nunca poderão ler
o espectáculo do mundo.
Maio de
2013
(lido na apresentação de "Contramina" em Azeitão, a 24/5/2013;
versão longa de um artigo publicado a 26/6/2013 no "Jornal de Letras".)