“Sete
Capítulos do Mundo” é o segundo livro de Ruy Ventura depois de “Arquitectura do
Silêncio” (Difel, 2000, que foi distinguido com o Prémio Revelação da APE). A
edição é da Black Sun, que, a par das Edições Mortas, sem alaridos e
mediatismos, operando nas “margens” (nesse lusco-fusco onde a literatura é mais
instável e vulnerável, e, por isso mesmo, mais maleável) tem vindo a dar a lume
algumas das mais originais, inventivas – por vezes subversivas – soluções
poéticas dos últimos anos.
Este
“Sete Capítulos do Mundo” é convidativo desde logo pelo seu formato: livro
breve, não excede as trinta páginas que se lêem de um só fôlego, contrariando a
tendência actual por parte de muitos dos “novos” poetas portugueses em olhar
com desdém para todo o livro de poesia que se fique abaixo das oitenta páginas,
como se já não fosse “livro”, como se um ritmo de produção febril fosse
sinónimo de genialidade e o número de páginas tivesse alguma relação com a
qualidade da poesia nelas contida. Na verdade, um livro de poesia extenso pode
ser, em muitos casos, uma violência exercida sobre o leitor, um certo tipo de
imposição. Outra forma de violência é o ritmo de publicação de alguns dos
“novos” poetas, que bombardeiam os leitores que têm e os que não têm com vários
títulos por ano. Pela sua brevidade, este último de Ruy Ventura traz de volta o
prazer de ler um livro de poesia de fio a pavio. De resto, tem vindo a ser essa
a prática da Black Sun e vem-se sentindo em tempos recentes uma vontade de
voltar ao livro de poemas que se lê de um trago e que deixa ainda sede quanto
baste para voltar a lê-lo quase de imediato.
“Sete
Capítulos do Mundo” é uma sequência de epifanias que se respiram, da primeira à
última página, num só movimento poético. Ruy Ventura deu ao seu livro o
sub-título de narrativa. No seu sentido original, a “narrativa” refere-se ao
acto de “tornar algo conhecido”, e equivale a “história”, “acção” ou “fábula”.
Trata-se pois de uma “narrativa” poética, lírico-biográfica, na medida em que
estamos perante uma enunciação cadenciada, ritmada e progredindo por etapas que
são variações sobre uma mesma intriga “lírica”, biográfica, confessional, e que
“tornam conhecida” uma certa fruição e experienciação do mundo. Neste sentido,
toda a poesia não-abstracta é uma “narrativa”. No caso deste “Sete Capítulos do
Mundo”, o todo vale mais que as suas partes, o que se aplica, de uma forma
geral, às boas “narrativas”, onde a coerência e a coesão são fundamentais e o
encadeamento harmonioso dos “episódios” é, deixando de alguma literatura
experimental, condição sine qua non.
Estes
poemas epifânicos são um prodígio de contenção e de economia linguística,
maximizando os recursos expressivos e figurativos que assistem à enunciação
poética. São poemas que se infiltram com vagar, com naturalidade, como se este
livro fosse um pulmão luminoso que respirasse de forma regular e controlada – o
controlo de quem já aprendeu, ao segundo livro, a domesticar o seu modo de
dizer, a dirigir a sua voz.
É
evidente em Ruy Ventura a capacidade para criar imagens e metáforas sedutoras.
Imagens e metáforas luminosas, subtis, à flor da pele. Eis um molho delas,
escolhido ao sabor do folhear das páginas: “os ramos atravessam o mundo. / a
luz cruza-nos na planície”; “a criança apanha uma réstia de sol / entre a rama
dos canteiros”; “o relógio põe vírgulas nesta frase. / a pontuação que resta
vem de algumas gotas de chuva.”; “como os plátanos, escondo uma viagem”;
“inventava personagens guardadas no peito como numa carruagem”; “a trovoada
desenhando a tarde”. O poema 45, tão breve quando belo, possui a mesma
capacidade de um haiku de Bashô, de Issa, ou de Kikaku para capturar a luz do
instante (Barthes chamava ao haiku, entre outras coisas, “emoção concentrada”,
“instante de elite” ou simplesmente “silêncio”) no fluxo da eternidade: “somos
todos uma espécie de beiral, / recolhendo a água. / projectando-a de novo /
para a terra.”.
A
captura do “instante de elite” leva-nos a uma óbvia analogia com a fotografia.
E, de facto, diferentes formas lexicais tendo por base a palavra “fotografia”
ocorrem nestes poemas inúmeras vezes. A fotografia é testemunha de fenómenos, tem
essa faculdade única de cristalizar num suporte físico aquilo que, num dado
momento e num dado lugar, se encontra diante de nós. Mas não permite
compreender melhor os fenómenos que testemunha, não os pode explicar ou
decompor em fragmentos: é indivisível, assenta num pressuposto de integridade e
de limpidez. É uma testemunha muda e, por isso, insuficiente (“fotografo tudo.
/ mas nada encontro / para revelar”). A poesia problematiza, indaga sobre essa
essencial mudez do mundo; talvez não explique essa mudez, mas pode certamente dizê-la. A fotografia está presente,
assiste ao acontecer do instante (“junto da figueira, o céu nasce / como numa
fotografia”), mas não pode interrogá-lo. A poesia pode. Interroga
permanentemente aquilo que não tem voz, o seu papel é pôr a pedra e o pássaro,
a água e o fogo, a falar. Pode atravessar o coração das coisas e pode apenas,
recatadamente, aflorá-las, medrar junto ou para além das suas mais difusas
fronteiras, fazer do opaco espelho, forçar a linguagem secreta da natureza a
articular-se: “nenhum retrato / permitirá entender. / as linhas desfazem o
corpo que representam. / um chapéu esvoaça sobre o vale. / o fumo eleva a
resina. / não a dos pinheiros. / a da seiva que se descobre / no limiar da
casa”. Esta é portanto uma poesia de decifração e de revelação de fotografias
da existência (“como um retábulo, / tento reconstruir a paisagem”), ainda que
esbarre a cada passo na impossibilidade dessa decifração e dessa revelação – e
sem ter sequer forma de saber se e quando alguma coisa é decifrada – como se
não fosse possível ao sujeito imprimir numa representação nítida, lógica e
consistente os instantes capturados pela fotografia e se tivesse que contentar
com meros “negativos” da existência: “encontramos apenas a sombra, / quando
queríamos a transparência. / será transparente esta fotografia? / os objectos
falam – / do corpo que fomos. / prenunciarão outro caminho?” ou “os telhados
estão demasiado limpos. / pouco dizem da água / e dos passos”.
A
recorrente imagem da fotografia (ou seja, da imagem de uma imagem, da
representação de uma representação, de uma “mentira” no sentido platónico uma
vez que se encontra pelo menos três graus abaixo do real, em suma, de uma
espécie distinta de percepção do real a que chamaríamos a percepção poética)
leva-nos, portanto, a uma problematização – se não angustiada pelo menos dorida
– das representações mentais e afectivas do mundo cuja sede é o sujeito
poético. A questão é expressamente equacionada no próprio texto poético:
“deixei-me ferir por essa imagem”. É com este verso que começa o poema 15 de
“Sete Capítulos do Mundo”, verso ao qual se segue uma dolorosa e belíssima
epifania: “a dor alastra na garganta. / como o nevoeiro subindo a serra / numa
manhã de outubro. / talvez fosse essa a sua função. / ferir para deixar uma
cicatriz na pela – / para o futuro.” Será esta, porventura, a razão de ser da
imagem ( que era, para Sartre, “um certo tipo de consciência”) formando-se na
percepção (poética): a de deixar cicatrizes – pistas – para uma leitura íntima
do mundo. Como se essas feridas se deixassem ler através da ponta dos dedos do
pensamento, num exercício de “braille” poético. Há, pois, qualquer coisa de
ascético nesta poesia: a tendência para o sujeito se tornar num recolector de
imagens (ou de epifanias) que lhe indiquem um possível itinerário rumo ao
auto-conhecimento, que lhe inventem um modo temporal para as ramificações
possíveis da sua “narrativa” lírica: “os ramos atravessam o mundo. / a luz
cruza-nos na planície. / entre as estradas, um outro itinerário / uma forma de
cicatrizar as feridas”. As leituras desse “baille” poético são comandadas pelos
altos e baixos-relevos do papel do mundo, pela sua rugosidade ou maciez, pelas
suas saliências e fissuras, de acordo com os seus ritmos e com os seus ciclos.
O sujeito poético (como, afinal, o leitor de poesia) jamais se banha duas vezes
no mesmo texto, na mesma leitura, na mesma narrativa. Keats quis que ficasse
para seu epitáfio “aqui jaz aquele cujo nome foi escrito na água”. Ruy Ventura
diz algo parecido: “desenhamos uma palavra / ou apenas a água da ribeira?”.
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