Rui Lage

 “Sete Capítulos do Mundo”
Apeadeiro – revista de atitudes literárias, nº 4/5, Inverno, 2004: 203 – 207.

 
         “Sete Capítulos do Mundo” é o segundo livro de Ruy Ventura depois de “Arquitectura do Silêncio” (Difel, 2000, que foi distinguido com o Prémio Revelação da APE). A edição é da Black Sun, que, a par das Edições Mortas, sem alaridos e mediatismos, operando nas “margens” (nesse lusco-fusco onde a literatura é mais instável e vulnerável, e, por isso mesmo, mais maleável) tem vindo a dar a lume algumas das mais originais, inventivas – por vezes subversivas – soluções poéticas dos últimos anos.

         Este “Sete Capítulos do Mundo” é convidativo desde logo pelo seu formato: livro breve, não excede as trinta páginas que se lêem de um só fôlego, contrariando a tendência actual por parte de muitos dos “novos” poetas portugueses em olhar com desdém para todo o livro de poesia que se fique abaixo das oitenta páginas, como se já não fosse “livro”, como se um ritmo de produção febril fosse sinónimo de genialidade e o número de páginas tivesse alguma relação com a qualidade da poesia nelas contida. Na verdade, um livro de poesia extenso pode ser, em muitos casos, uma violência exercida sobre o leitor, um certo tipo de imposição. Outra forma de violência é o ritmo de publicação de alguns dos “novos” poetas, que bombardeiam os leitores que têm e os que não têm com vários títulos por ano. Pela sua brevidade, este último de Ruy Ventura traz de volta o prazer de ler um livro de poesia de fio a pavio. De resto, tem vindo a ser essa a prática da Black Sun e vem-se sentindo em tempos recentes uma vontade de voltar ao livro de poemas que se lê de um trago e que deixa ainda sede quanto baste para voltar a lê-lo quase de imediato.

         “Sete Capítulos do Mundo” é uma sequência de epifanias que se respiram, da primeira à última página, num só movimento poético. Ruy Ventura deu ao seu livro o sub-título de narrativa. No seu sentido original, a “narrativa” refere-se ao acto de “tornar algo conhecido”, e equivale a “história”, “acção” ou “fábula”. Trata-se pois de uma “narrativa” poética, lírico-biográfica, na medida em que estamos perante uma enunciação cadenciada, ritmada e progredindo por etapas que são variações sobre uma mesma intriga “lírica”, biográfica, confessional, e que “tornam conhecida” uma certa fruição e experienciação do mundo. Neste sentido, toda a poesia não-abstracta é uma “narrativa”. No caso deste “Sete Capítulos do Mundo”, o todo vale mais que as suas partes, o que se aplica, de uma forma geral, às boas “narrativas”, onde a coerência e a coesão são fundamentais e o encadeamento harmonioso dos “episódios” é, deixando de alguma literatura experimental, condição sine qua non.

         Estes poemas epifânicos são um prodígio de contenção e de economia linguística, maximizando os recursos expressivos e figurativos que assistem à enunciação poética. São poemas que se infiltram com vagar, com naturalidade, como se este livro fosse um pulmão luminoso que respirasse de forma regular e controlada – o controlo de quem já aprendeu, ao segundo livro, a domesticar o seu modo de dizer, a dirigir a sua voz.

         É evidente em Ruy Ventura a capacidade para criar imagens e metáforas sedutoras. Imagens e metáforas luminosas, subtis, à flor da pele. Eis um molho delas, escolhido ao sabor do folhear das páginas: “os ramos atravessam o mundo. / a luz cruza-nos na planície”; “a criança apanha uma réstia de sol / entre a rama dos canteiros”; “o relógio põe vírgulas nesta frase. / a pontuação que resta vem de algumas gotas de chuva.”; “como os plátanos, escondo uma viagem”; “inventava personagens guardadas no peito como numa carruagem”; “a trovoada desenhando a tarde”. O poema 45, tão breve quando belo, possui a mesma capacidade de um haiku de Bashô, de Issa, ou de Kikaku para capturar a luz do instante (Barthes chamava ao haiku, entre outras coisas, “emoção concentrada”, “instante de elite” ou simplesmente “silêncio”) no fluxo da eternidade: “somos todos uma espécie de beiral, / recolhendo a água. / projectando-a de novo / para a terra.”.

         A captura do “instante de elite” leva-nos a uma óbvia analogia com a fotografia. E, de facto, diferentes formas lexicais tendo por base a palavra “fotografia” ocorrem nestes poemas inúmeras vezes. A fotografia é testemunha de fenómenos, tem essa faculdade única de cristalizar num suporte físico aquilo que, num dado momento e num dado lugar, se encontra diante de nós. Mas não permite compreender melhor os fenómenos que testemunha, não os pode explicar ou decompor em fragmentos: é indivisível, assenta num pressuposto de integridade e de limpidez. É uma testemunha muda e, por isso, insuficiente (“fotografo tudo. / mas nada encontro / para revelar”). A poesia problematiza, indaga sobre essa essencial mudez do mundo; talvez não explique essa mudez, mas pode certamente dizê-la. A fotografia está presente, assiste ao acontecer do instante (“junto da figueira, o céu nasce / como numa fotografia”), mas não pode interrogá-lo. A poesia pode. Interroga permanentemente aquilo que não tem voz, o seu papel é pôr a pedra e o pássaro, a água e o fogo, a falar. Pode atravessar o coração das coisas e pode apenas, recatadamente, aflorá-las, medrar junto ou para além das suas mais difusas fronteiras, fazer do opaco espelho, forçar a linguagem secreta da natureza a articular-se: “nenhum retrato / permitirá entender. / as linhas desfazem o corpo que representam. / um chapéu esvoaça sobre o vale. / o fumo eleva a resina. / não a dos pinheiros. / a da seiva que se descobre / no limiar da casa”. Esta é portanto uma poesia de decifração e de revelação de fotografias da existência (“como um retábulo, / tento reconstruir a paisagem”), ainda que esbarre a cada passo na impossibilidade dessa decifração e dessa revelação – e sem ter sequer forma de saber se e quando alguma coisa é decifrada – como se não fosse possível ao sujeito imprimir numa representação nítida, lógica e consistente os instantes capturados pela fotografia e se tivesse que contentar com meros “negativos” da existência: “encontramos apenas a sombra, / quando queríamos a transparência. / será transparente esta fotografia? / os objectos falam – / do corpo que fomos. / prenunciarão outro caminho?” ou “os telhados estão demasiado limpos. / pouco dizem da água / e dos passos”.

         A recorrente imagem da fotografia (ou seja, da imagem de uma imagem, da representação de uma representação, de uma “mentira” no sentido platónico uma vez que se encontra pelo menos três graus abaixo do real, em suma, de uma espécie distinta de percepção do real a que chamaríamos a percepção poética) leva-nos, portanto, a uma problematização – se não angustiada pelo menos dorida – das representações mentais e afectivas do mundo cuja sede é o sujeito poético. A questão é expressamente equacionada no próprio texto poético: “deixei-me ferir por essa imagem”. É com este verso que começa o poema 15 de “Sete Capítulos do Mundo”, verso ao qual se segue uma dolorosa e belíssima epifania: “a dor alastra na garganta. / como o nevoeiro subindo a serra / numa manhã de outubro. / talvez fosse essa a sua função. / ferir para deixar uma cicatriz na pela – / para o futuro.” Será esta, porventura, a razão de ser da imagem ( que era, para Sartre, “um certo tipo de consciência”) formando-se na percepção (poética): a de deixar cicatrizes – pistas – para uma leitura íntima do mundo. Como se essas feridas se deixassem ler através da ponta dos dedos do pensamento, num exercício de “braille” poético. Há, pois, qualquer coisa de ascético nesta poesia: a tendência para o sujeito se tornar num recolector de imagens (ou de epifanias) que lhe indiquem um possível itinerário rumo ao auto-conhecimento, que lhe inventem um modo temporal para as ramificações possíveis da sua “narrativa” lírica: “os ramos atravessam o mundo. / a luz cruza-nos na planície. / entre as estradas, um outro itinerário / uma forma de cicatrizar as feridas”. As leituras desse “baille” poético são comandadas pelos altos e baixos-relevos do papel do mundo, pela sua rugosidade ou maciez, pelas suas saliências e fissuras, de acordo com os seus ritmos e com os seus ciclos. O sujeito poético (como, afinal, o leitor de poesia) jamais se banha duas vezes no mesmo texto, na mesma leitura, na mesma narrativa. Keats quis que ficasse para seu epitáfio “aqui jaz aquele cujo nome foi escrito na água”. Ruy Ventura diz algo parecido: “desenhamos uma palavra / ou apenas a água da ribeira?”.

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