"Conciencia, espiritualidad, capacidad de penetrar, y al penetrar de interiorizar y poner de manifiesto en poemas eslabonados y consecutivos, con toda naturalidad, lo interiorizado. Cada palabra en su sitio, precisión, que es concisión, y esa limpidez, con sus estamentos y niveles forjando palimpsestos, devuelve al lector un sentido de delicadeza, de concreta situación, donde lo mejor del ser humano, si quiere, puede reflejarse, no como representación sino como sólida realidad. Viaje, fotografía, retrato, doisolución y recuperación de lo disuelto, cartas que son y no son, que se expiden y no hay que enviar, todo en función de la presencia de una primera palabra, Verbo y movimiento, belleza." (carta enviada a 10/7/2015)
DEVIR - Revista Ibero-Americana de Cultura
Lançamento no próximo dia 23 de Julho de 2015, pelas 18h30
na livraria Barata, na Avenida de Roma, em Lisboa.
Apresentação a cargo de Fernando J. B. Martinho
e intervenções de António Carlos Cortez (do conselho editorial)
e dos directores (Ruy Ventura e Nuno Matos Duarte).
http://devirrevista.wix.com/devir Edição da Licorne (Évora) SUMÁRIO Álvaro Valverde (Espanha) - "Futuro" [poema] Amadeu Baptista (Portugal) - "Sobre o futuro" [poema] António Cândido Franco (Portugal) - "O amor que enlouquece" [ensaio] António Carlos Cortez (Portugal) - "Oblivion" [poemas] C. Ronald (Brasil) - "Foram rosas" [poema] Fernando Aguiar (Portugal) - dois poemas visuais Francisco dos Santos (Brasil) - dois poemas João Rasteiro (Portugal) - "Acrónimo" [poemas] Jorge Melícias (Portugal) - "El Penúltimo Enojo de Leopoldo María Panero" [ficção] Jorge Tamargo (Cuba) - dois poemas José Emílio-Nelson (Portugal) - "Comboio (anotações)" [poemas] José Félix Duque (Portugal) - "Elogio de São José" [poema] José María Cumbreño (Espanha) - "Escribir en línea recta" [poema] Luis Arturo Guichard (México) - "Limbeños y enmediantes 4" [poema] Manuel Silva-Terra (Portugal) - Do ciclo "Pastor de Pedras" [poema] Miguel Real (Portugal) - "A Europa em 2054" [ficção] Nuno Matos Duarte (Portugal) - "Um lugar para a arte" [ensaio] Pedro Martins (Portugal) - "O Pensamento Teolibertário Português" [ensaio] Rui Almeida (Portugal) - dois poemas Ruy Ventura (Portugal) - "Realismo? Que realismo?" [ensaio] Tiago Gomes e Joana Koehler (Portugal) - "Miss K" [poema] Victor Sosa (Uruguai) - "Gladis recapitula" [poema] Wilmar Silva de Andrade (Brasil) - dois poemas Antologia do poeta catalão Carles Riba, traduzida por Marta López Vilar Album fotográfico de David Infante
SOBRE SEBASTIÃO DA GAMA
por Ruy Ventura
Ruy Belo não gostava que a apreciação de Sebastião da Gama
se ficasse pela atribuição do título de “Poeta da Arrábida”.
Considerando o autor de Serra-Mãe um
“poeta integral”, não podia vê-lo confinado a uma poesia localizada.
Afigurava-se-lhe “pelo menos desorientador chamar a Sebastião da Gama o
poeta da Arrábida e, não contente com isso, esfregar as mãos de alegria, como
quem já disse tudo”. Embora considerasse que “A localização de um poeta
no espaço é um elemento de interpretação da sua poesia”, não deixava no
entanto de verificar os perigos desse veículo de entendimento, que bem se pode
tornar num “obstáculo para a sua compreensão.” Para o poeta de Aquele Grande Rio Eufrates, se “Ver
um poema é como ver um rosto. [...] Podemos saber que é belo, mas não sabemos
porquê”, então “A localização de um poeta na sua paisagem servirá para
ver essa paisagem. Não ao contrário.” Ruy Belo concordava decerto com um
dos pensamentos de Pascal, esse filósofo tão caro a Sebastião da Gama: “Não
é do espaço que eu devo esperar a minha dignidade, mas do acerto do meu
pensamento. [...] pelo espaço, o universo abarca-me e submerge-me como um
ponto. Pelo pensamento, abarco-o eu.”
De facto, a grandeza de uma obra literária não depende do
espaço nem sequer da matéria, mas da maneira como o poeta conseguiu
transfigurar o universo que o rodeou. Teixeira de Pascoaes – esse mestre maior
do autor de Cabo da Boa Esperança –
tinha razão quando afirmava que “A beleza das coisas não é inerte;
insinua-se, em nós, como um segredo, e pretende assenhorear-se do lugar.
Conquista-o e transfigura tudo, em volta dela. Derrama-se como a luz na sombra”.
Permite assim ao ser humano um transporte que o torna ser luminoso, o
transporte que o eleva de uma mera existência natural, instintiva, animal, até
à liberdade e imortalidade da verdadeira vida.
Sebastião, “poeta integral” e
cristão assumido que não dispensava uma ética de responsabilidade em todos os
momentos da sua vida, sem ter sido nunca um “poeta social”,
considerava-se obrigado ao uso público da palavra, ao testemunho, na medida em
que o poeta e o cidadão são duas faces do mesmo ser bifronte, inseparáveis num
ser humano que aceitou a missão de construir pontes entre todas as dimensões da
Vida e até da Existência, entre todos os seres que habitam o Universo, entre
esses homens e mulheres e o Mundo que os rodeia. São reveladoras as palavras
que inscreveu na sua tese de licenciatura: “[S]ó se é Poeta na medida em que
se é homem, que o mínimo acto do homem-Poeta, o mais prosaico, o mais
comezinho, o mais grosseiro, o mais em desacordo com o seu ideal, é tanto a
massa da sua poesia como o seu voo mais arrebatado”.
O poeta – quando o é de verdade – é
sempre um instrumento de religação, logo um ser ético. Sebastião sabia,
contudo, que os termos nem sempre se confundem, que o contrário nem sempre se
verifica:
“A indignação activa contra as
injustiças da sociedade, o carinho pelos oprimidos, qualquer homem de bem os
pode ter; mas isso não é suficiente para ser Poeta; isso, que num homem
qualquer é tudo, é no Poeta só um pretexto. [...] Um legítimo Poeta que não
tenha escrito senão contra as injustiças sociais seria um Poeta na mesma se não
existissem essas injustiças, Então, seriam outros os temas; outros os
pretextos.”
As suas palavras referiam-se,
sobretudo, aos poetas portugueses de oitocentos (Herculano, Garrett, Junqueiro,
Gomes Leal, Cesário)... Nas veias do seu pensamento corria no entanto o sangue
mais universal das ideias defendidas pelos directores da revista presença, principalmente José
Régio (o seu outro mestre, ao lado do poeta de Marános), defensores intransigentes da liberdade inteira dos
criadores contra a submissão da Arte a ditames político-sociais, por mais
justos que parecessem. As considerações tecidas por Sebastião da Gama não
perderam ainda actualidade. O autor de Serra-Mãe não rejeitava a “poesia social”, como não
recusava qualquer forma de expressão poética que se instituísse enquanto Arte
em Liberdade. Aí reside também a sua postura ética. Sabia distinguir num poema,
como leitor clarividente, as suas diferentes dimensões: de um lado o seu valor
humano, que em geral conduz a uma maior realização comunicativa; do outro, o
seu valor poético, artístico. Um poema escrito em linguagem obscura poderá
conduzir, na sua opinião, a uma maior dificuldade no entendimento imediato, mas
isso não significa para Sebastião da Gama que a Poesia não permaneça lá, “inviolada,
esperando a vinda dos que a descubram”. Segundo escreveu, “O seu valor
humano será menor e terá, por conseqüência, uma realização limitada. Mas isso
não impede que o seu valor absoluto se não melindre.”
Seja qual for a Arrábida que nos mova,
as injustiças que nos façam escrever, as paisagens que nos encantem, as figuras
que nos interpelem, os sonhos e imagens que nos obriguem, os sentimentos que se
estabeleçam, os pensamentos que queiram ver a luz da expressão – é preciso
passarmos da representação à apresentação do mundo e dos seus seres, da
observação à investigação da realidade, da prospecção dos vestígios de um tempo
e de um espaço fugidios e irrepetíveis à sua escavação e interpretação.
Apresentar, investigar, escavar e interpretar serão sempre os verbos que
moverão o trabalho poético de quem escreve porque não pode deixar de criar em
Arte. “Transfiguração” é a palavra-chave.
É neste âmbito que se deve sublinhar a
ligação entre Sebastião da Gama e a Arrábida. Nos poemas arrábidos de frei
Agostinho da Cruz, essa guia espiritual do poeta de Vila Nogueira, percebe-se
que toda a elevação espiritual se estrutura entre a Natureza/Mundo, a
Palavra/Poesia e Deus. Interpretando-os e lendo a serra que conhecia como
poucos, o autor de Itinerário Paralelo
percebeu que o território estendido entre as duas ermidas da Memória (Campo, Cabo e Serra) só se pode
entender em profundidade nessa tríade evidenciada na poesia do frade
franciscano ou noutra, mais clara, que ele verteu nos títulos dos três livros
que publicou na sua curta vida de vinte e sete anos. Campo Aberto corresponde à Natureza, à criação, mas também ao mundo
habitado e social, onde todos nós existimos e tentamos viver, abrindo-nos e
esvaziando-nos das contingências, afastando-nos dos instintos e da corrupção. Cabo da Boa Esperança exprime a
finisterra, a cessação de um mundo natural, por obra da palavra e da poesia, ou
seja, pela acção criativa colaborante com Deus na produção de uma “pintura” que traga para junto de nós o
Supremo Pintor; por isso o Cabo não é
apenas fim da terra, mas início da esperança. Por fim, a montanha, Serra-Mãe vem dar relevo à matriz, ao
tronco, à matéria gerada e geradora, mas sobretudo ao acidente natural que
exige o movimento de assunção, incitando os seres humanos a subir a escada do
Paraíso e a aproximar-se de Deus. Tal como escreveu na sua tese de
licenciatura, “Poesia” e “Deus” são termos sinónimos, equivalentes.
A Arrábida ofereceu aos dois poetas de
Deus um espelho onde puderam ver as três virtudes teologais, como vias de
salvação pessoal e do mundo: no campo,
ou seja, na natureza e na sociedade, o exercício da Caridade, do Amor Divino
transformado em Amor à criação, humana e natural; no cabo, o encontro com a Esperança, a boa Esperança, aquela que nos
faz olhar o futuro enquanto emanação sagrada; e, por fim, na serra, o encontro com a Fé, nesse lugar
onde se oferece a liberdade, o melhor manjar que, nas palavras de frei
Agostinho, “Depende de trazer o
pensamento / Aceso na divina saudade”.
Cada um de nós tem presente um
Sebastião da Gama que lhe é próximo. Haverá quem guarde sobretudo a sua memória
de Homem e de Cidadão (onde se inclui o seu desempenho como professor), outros
privilegiarão as suas intuições pedagógicas, um pequeno grupo lembrará o seu
cristianismo alegre e esclarecido, muitos recordam sobretudo o poeta e, entre
estes, existirão aqueles que valorizam sobretudo o valor humano dos seus
textos, enquanto um número indeterminado de leitores realçará a qualidade
artística dos seus poemas, sobretudo daqueles que o farão permanecer no futuro,
conservando a solidez do seu lugar no vasto território da Poesia Portuguesa do
século XX. Todas as facetas deste ser poliédrico, exemplar, merecem a nossa
admiração. O que não significa que passemos à canonização; a pior coisa que
pode suceder a um escritor intenso como ele é não ser discutido, não ser
constantemente avaliado nas suas atitudes e nas suas produções. Não tenhamos
dúvidas: o futuro recordará Sebastião da Gama como Poeta, sobretudo como Poeta,
mas isto não significa que uma devoção acrítica nos impeça de ver que a sua poesia
foi um ser em crescimento, em maturação.
Com Ruy Belo iniciei estas palavras,
com Ruy Belo as termino. Se concordo com ele quando afirma que Sebastião da
Gama “vinha melhorando surpreendentemente de livro para livro”, não sei
até que ponto ficou “a meio da canção” (na medida em que uma parte
substancial da sua obra em prosa e em verso ainda permanece inédita). Há no
entanto uma convicção que partilho com o autor de Terra da Alegria: “[...]
não é que não tenha interesse a biografia, mas o que inequivocamente tem
primordial importância são os textos, os positivos textos. Só de quem foi poeta
na obra interessará saber se foi poeta na vida. [...] De resto o poeta sabia
que assim era e desejava que da sua obra falassem ‘objectivamente, friamente’.”
Convosco partilharei a certeza de que
Sebastião da Gama foi poeta na vida e na obra. Por isso aqui estamos. Por isso
assumimos como dever preservar e divulgar, num olhar claro, todos as faces da
sua memória.
Texto lido nas comemorações do 91º aniversário
do nascimento de Sebastião da Gama
(11/4/2015, na Sociedade Filarmónica Perpétua Azeitonense, em Vila Nogueira de Azeitão)
José Carlos Seabra
Pereira (2015)
“Novos tempos de ‘a
interminável preparação’ – Apontamentos sobre a poesia portuguesa no primeiro
decénio do século XXI”
Cultura XXI – Ensaios, [Lisboa], Labirinto das Letras: 117 – 188.
["RUY VENTURA E A SUA POESIA PNEUMÁTICA E COSMOGÓNICA"]
“Tal como o último
quartel do século XX, o decénio inaugural do novo milénio apresenta-se-nos como
tempo de basta produção no domínio da poesia lírica e como espaço de
coexistência e cruzamento de tendências várias. Daí que impressione e atraia
como campo de enorme pujança, mas também nos dificulte a visão panorâmica como
labirinto de difícil cartografia. […]” (p. 117)
“Quer pela diluição dos
grupos programáticos e pelos vectores temático-formais que nesse contexto
prevalecem na estruturação das obras mais representativas dos nossos dias, quer
pela orientação que se nos depara nos poucos casos que mais se aproximam dos
contornos de corrente estético-literária, o estado dominante parece não só
pós-pessoano, mas também pós-anos 60 – no sentido de, sobre heranças de Sena e
de algum Nemésio, de Herberto Helder e de Cesariny, adoptar por horizonte
matricial o legado de Ruy Belo, do grupo do Cartucho (1976) e de uma prática
poética já pós-moderna na desenvoltura descomplexada, no gosto do lúdico e do
provocatório, nas conexões anglo-americanas e refracções da cena Pop.
Mas esta perspectiva […]
é apenas uma das hipóteses plausíveis para a leitura da nova poesia portuguesa
na viragem do século.
Com efeito, ela não
parece dar conta cabalmente das motivações e dos efeitos das insofismáveis linhas
entrecruzadas de persistência da PO-EX […] e da metamorfose da revolução
surrealista […].
Por outro lado, menos
parece atender às fundas origens e às potencialidades de uma proposta
programática alternativa ao imanentismo perceptivo e textual defluente do
modelo propugnado nos anos 70/80 por Joaquim Manuel Magalhães. Referimo-nos a
uma tentativa de integração superadora das linhagens surrealista e experimental
numa poesia outra de conhecimento e de simbolização. Trata-se de uma poética
que, pela imaginação analógica, pretende promover e figurar a convergência do
subliminar com o suprarreal em energias espirituais e formas arquetípicas, se
não sobrenaturais, de real supra-sensível. É uma poética propugnada em ensaio e
ilustrada em cenas de teatro […] por António Cândido Franco […].
Seja qual for o alcance
que este combate espiritual e estético vier a conquistar, importa assinalar
que, em diálogo intertextual com Herberto Helder e sua cifra Do Mundo, mais do que sobre o estamento
neo-romântico de entre Nobre e Pascoaes, […] a correspondente antropologia
literária vem sendo gradativamente cifrada no gnosticismo cristão de Ruy
Ventura e sua poesia pneumática e cosmogónica de ‘súmula do mundo’ e ‘breviário
pessoal de vozes’. Nessa poesia, a ‘contramina’, metáfora do inefável, emerge
nas falas anónimas de Chave de Ignição
(2009) e de Instrumentos de Sopro
(2010), a caminho da tensão dramática de personagens e vozes, ancestrais e
actuais (Contramina, 2012). Vozes,
essas, inconfundíveis mas relacionáveis com iluminações oníricas e
fantasmagóricas de vocações poéticas como a de José Rui Teixeira, que aliás
como elas questionam, com subjacente espiritualidade cristã, a transitoriedade
da vida.” (pp. 124 – 127)
“[…] subscreveriam a
demarcação do escapismo nostálgico e da evasão idealizante que algum dia tenta
impor-se na obra de Fernando Pinto do Amaral […]. Cortando vazas à tentação da
nostalgia, Manuel de Freitas interpela(-se) […]. Permanece o homo viator com um indefinido horizonte
primordial: ‘recebendo e transportando a marca de cada passagem. / entregando
em nossa morada / o verbo e a saudade do início’, como tão bem cifra Ruy
Ventura num livro de 2003 com o título de sugestionadora simbologia
numerológica, sete capítulos do mundo.”
(pp. 160 – 161)
“Propala-se uma
perspectiva de continuidade bio-gráfica entre o poeta e o sujeito da
enunciação, mas com fronteira incerta e fluida entre a estratégia de sugestão
de referência autobiográficas (‘deícticas’, ‘logísticas’) e efeitos de
auto-ficção, tão desenvoltamente gerados como desenvoltamente se exibem os
mecanismos de engendramento do poema.
[…]
Não faltam, pois, marcas
frequentes e por vezes extensas de afirmação do ‘eu’, com processos vários e
variamente confinantes de sugestão autobiográfica e de construção
auto-ficcional. Mas […] também não faltam processos de autodistanciamento, de
autodesdobramento e mesmo de alterização, com o regime discursivo a adoptar
diferentes modalidades de dialogismo, ou a deslocar-se para fronteiras com a
composição dramática – vg. hoje Contramina
de Ruy Ventura –, ou a optar por figurações e elocuções alteronímicas.” (pp.
162 – 163)
“[Nalguns] poetas, chega
a hora de dizer precoce experiência de entrada no ‘Equinócio de Outono’ da vida
e de ‘uma inclinação musical para a queda’ […]. Em idêntico sentido, a lírica
diferente de um Manuel de Freitas ou de um Ruy Ventura tipifica a poesia
daqueles – ‘portadores’ como Nemésio queria – a quem, numa Arquitectura do Silêncio, ‘não lhes falta / o olhar – basta-lhes /
o horizonte’, mas que suspeitam que jamais chegarão ‘a ler, para além do sol, /
o sol que o ilumina’. […]” (p. 168)
“Recolhida, mas
constitutiva e intersticialmente catalisadora em Ruy Ventura, a economia
universal da Salvação com teleonomia de espiritualidade cristã comparece, mas
mais velada que diferida, noutros poetas de assegurada representatividade
epocal. […]” (p. 186)
El poeta portugués Ruy Ventura nació en Portalegre en 1973 y actualmente vive en Azeitão, donde enseña lengua y literatura portuguesa en un instituto de la localidad.
Su primer poemario, “Arquitectura de Silencio”, fue galardonado en 1997 con el Premio Revelación de la Asociación Portuguesa de Escritores. Desde entonces ha publicado otras obras como “Siete capítulos del mundo” y “Así se deja una casa” (ambos en 2003); “Llave de Ignición”, en 2009, “Instrumentos de Soplo” de 2010 y, en 2012, “Contramina”.
El año pasado, la obra del poeta cruza el atlántico y llega a Brasil con una antología llamada “Calle de la otra Calle” (“Rua da outra Rua”).
Es posible encontrar innumerables poemas suyos traducidos al inglés, alemán, francés y español.
Ruy Ventura, además de su actividad poética y docente, es también traductor, investigador y ensayista con intereses tan diversos como la toponimia, el patrimonio histórico religioso, la poesía contemporánea y la literatura tradicional portuguesa. En el ámbito de la traducción hay que destacar su vinculación a Extremadura, siendo traductor de autores extremeños como Ángel Campos, Antonio Sáez o José María Cumbreño.
Algunas consideraciones personales sobre la lírica de Ruy Ventura:
En Ruy Ventura encontramos la raya, o, a lo mejor, dos rayas. Una serrana, desde la cuna, donde resuena España desde lo más alto de la Sierra de S. Mamede, y otra, también montañosa, que limita Portugal con su reflejo en el espejo del Atlántico, en una quietud casi monástica de la Sierra de Arrábida.
Estas geografías inspiraron grandes nombres del lirismo portugués, como José Régio, desde su ventana de Portalegre, Sebastião da Gama en lo más alto de la península de Setúbal, o, incluso, mi tan estimado Bocage. Y, desde hace ya casi 20 años, Ruy Ventura es un dignísimo sucesor de este lirismo luso.
No es el tiempo cronológico el que pone las comas en la poética de Ruy Ventura, quizás algunos granos de arena o las ramas podadas de algunos momentos que llenan una casa, cuyos fondos son una especie de raíz que la sostienen en una arquitectura de silencio.
Desde el relieve encontramos una fuerza telúrica de montaña, escribiendo y reescribiendo su voz. El poeta Ruy Ventura persigue imágenes que caminan con la lucidez del vate que no cierra los ojos, que fotografía todo pero no encuentra nada para revelar. ¿Y por qué habrá que revelar la mirada?
Esa es la gran diferencia entre literatura y poesía como Ruy Ventura la concibe en su obra. Al optar por la prosa, el autor cuenta lo poético que encuentra en su universo con un lenguaje que se deja deslumbrar por su propio movimiento, dejando, incluso, herirse por sus imágenes.
¿Piedra o sangre? ¿Sangre o tinta? ¿Tinta o piedra? El poeta brasileño, que tanto cantó la aridez de su Sertão, como la fertilidad de Andalucia, João Cabral de Melo Neto nos educó por la piedra, sin embargo Ruy Ventura nos enseña que la piedra acompaña la forma del mundo, en su ausencia de voz, en la dureza que la aparta de ser tierra.
Al guardar en los ojos las semillas, el poeta logra abandonar la brevedad y cadenas que pueden ser las raíces de uno, obturando, siempre, en gestos impregnados de nitrato de plata, la sombra de su original voz poética.
Cerré las tapas que ocultan esta breve antología con la sensación de haber peregrinado por la montaña para visitar un santuario, seguro de que el verbo orar no es antagónico al laborar del poeta. Eso es más que evidente en la poética de Ruy Ventura cuyos poemas son un medio y la reflexión un fin. Como él mismo enuncia “hay, sin embargo, hechos, vestigios, trozos de papel, facturas que la escritura nunca descuidada fue a dejar entre las páginas de un desierto…”
En la lírica de Ventura, cuyo nombre nos podría resumir su obra, con la ayuda del diccionario de la RAE, encontramos felicidad, suerte, contingencia o casualidad, como también el riesgo, el peligro, o, por antonomasia, el suceso o lance extraño que procede de la actividad poética.
En las palabras de Ventura sabemos que del grito a la nada se cruza por una tabla de madera que une los dos lados del andamio y nos quedamos con la certeza que si queremos intentar, de alguna manera, traer la idea de Dios a nuestro pensamiento, simplemente, estimados lectores, como dice el poeta que tengo el placer de presentar, hay que tener cojones, o, como se dice en portugués:“ter colhões”.
LUÍS LEAL
(Março de 2015)
(Foto de Antonio Sáez Delgado)
UM POEMA DE "SETE CAPÍTULOS DO MUNDO"
TRADUZIDO PARA ESPANHOL
esta sala fue antaño un balcón. de aquel tiempo quedaron una lámpara una persiana para siempre abierta, una ventana y un arriate donde nacen y crecen flores de plástico. ciertamente: mi presencia no existía todavía. aunque esta edad sobrepase la del aluminio, que separa el jardín y la casa
Ruy Ventura
(Traduzido por Pedro Luis Cuadrado)
[ESTA SALA FOI OUTRORA UMA VARANDA]
esta sala foi outrora uma varanda. desse tempo ficaram um candeeiro, uma persiana para sempre aberta, uma janela e um alegrete onde nascem e crescem flores de plástico. decerto: a minha presença não existia ainda. embora esta idade ultrapasse a do alumínio, separando o jardim e a casa.
RADIOGRAFIA DE RUY VENTURA
por João Francisco Chagas
1. Ruy Ventura amplia e entrelaça nos seus poemas as
heranças da poesia metafísica (Gerard Manley Hopkins, T. S. Eliot e Dylan
Thomas), do hermetismo italiano (Eugenio Montale) e do neo-surrealismo (tal
como foi pensado e praticado por Philip Lamantia e difundido por Andrew Joron).
Matizam esta trama a melhor parte da grande poesia religiosa, a contenção
explosiva de Emily Dickinson, o transcendentalismo de Teixeira de Pascoaes e do
mais secreto Fernando Pessoa, os choques de altíssima tensão provenientes da
obra do “maior poeta em prosa da língua
portuguesa” (Raul Brandão) e toda a discreta e sublime tradição da poesia obscura
(que atingiu em Portugal o seu cume na obra de Fiama Hasse Pais Brandão e fora
de portas na introversão enigmática proposta por Paul Celan), bem como a “esquelética robustez” dos poemas de Carlos
de Oliveira e Nuno Guimarães. Todos os homens possuem uma genealogia – e a dos
poetas nunca se limitará aos oito bisavós de que ninguém se livra.
2. Não quero reinventar a roda, apresentando ex nihilo os traços dominantes desta
poesia; se o fizesse, correria o risco de torná-la quadrada,
impossibilitando-lhe o movimento. Recorro, por isso, aos ensaios de Levi
Condinho, António Carlos Cortez, Pedro Martins e António Cândido Franco, entre
os vários possíveis, onde essa definição já foi em grande parte exposta.
Condinho fala em “elementarismo” (“atenção devota às coisas do mundo”) e em
“religação”; Cortez aponta uma “visão imaginante” em que “os referentes como que se revelam na sua
essencialidade”; Martins regista “uma
visão poliédrica onde se espelha o naufrágio do mundo”; Franco, por seu
lado, salienta a urdidura de um “real
superior”, reconduzindo “a palavra à
sua condição cosmogónica primordial”, nisto sendo um contraponto da “multidão
informe de artefactos inoperantes que por aí se lêem e que resultam num
afunilamento empobrecedor da ideia de real”. Não viram mal, embora não
tenham visto tudo… porque tal não é possível ao leitor humano seja de que texto
for.
3. A poesia do autor de Rua da Outra Rua, apesar da sua linguagem simbólica, figurativa e exigente,
não se pode dizer abstracta nem árida. É, de algum modo, catalisada pela
visualidade, pela iconicidade, pela contenção emblemática. Daí os enigmas que a
povoam, indicando ao leitor inquieto e, por vezes, desorientado, algo de mais
alto e misterioso, a que só se acede subindo a escada da montanha. Será muito
útil ao exegeta que queira tornar-se hermeneuta dos seus poemas a
contemplação/meditação dos desenhos ofuscantes de Domingos António Sequeira,
dos quadros metafísicos de Giorgio De Chirico, das pinturas musicais de
Ciurlionis, das abstracções místicas de Manuel D’ Assumpção, do
sobrenaturalismo de António Dacosta. O melhor acompanhamento para essa tarefa
estará nas composições de Olivier Messiaen. (Ultimamente, a poesia de Ruy
Ventura parece ter encontrado nas fotografias de José Luís Neto algumas das
suas irmãs colaças.)
4. Trata-se de uma obra sem expansões, contida, elíptica
até. Como se “a medo” escrevesse e
falasse, nunca se livrando de um sentimento de temor perante algo indefinido e
numinoso. Talvez, por isso, cubra o seu rosto textual e se exprima por
meias-palavras, por frases cortadas, meio-ditas. Parece ser esse o único modo
que encontrou para dar voz a uma presença-ausência luminosa (geradora de uma theoria) e para, no reverso, exprimir a
sua constante psicomaquia com um mundo tenebroso (que parece obrigá-lo a uma
sucessão de catábases e anábases).
5. Ruy Ventura alterou o seu nome, pondo nele um Y que,
segundo tem afirmado, é homenagem a Ruy Belo e a Ruy Cinatti, “dois cristãos católicos, como ele”.
Não creio que aí esteja, contudo, toda a verdade, anagogicamente falando. O Y é
a letra inicial, em hebraico, do tetragrama sagrado (YHWH) e do nome de Cristo
(Yoshua). Creio que, nesse pormenor paratextual, mostra ele de forma velada (como
é seu hábito) uma filiação judaico-cristã, em cujo cerne se encontra a memória,
entendida enquanto húmus, semente e escrita de uma religiosidade que procura,
sobretudo, o futuro e, nessa síntese, demanda o Amor nas suas mais altas
expressões naturais, sociais e sobrenaturais.
Entrevista a Ruy Ventura
«A nossa mais digna tarefa
será sempre descobrir, imaginar e interpretar.»
Ruy Ventura (1973)
nasceu em Portalegre e vive em Azeitão (Portugal) sendo professor de Português
na escola local. Os seus poemas estão traduzidos em alemão, francês, inglês e
espanhol. A sua poesia está publicada em vários países (México, E.U.A., Brasil,
Alemanha, Espanha e Portugal). Além da poesia, os seus interesses como
investigador contemplam áreas tão diversas como a toponímia, o património religioso,
a poesia contemporânea e a literatura tradicional portuguesa. O seu primeiro
livro (Arquitectura do Silêncio)
recebeu em 1997 o Prémio Revelação da Associação Portuguesa de Escritores e foi
editado em 2000. Publicou entretanto outros livros: Sete capítulos do mundo (2003), Assim
se deixa uma casa (2003), Chave de
ignição (2009), Instrumentos de sopro
(2010) e Contramina (2012). Ao fim de
ver publicados nove livros de poemas, surge agora com uma antologia publicada
no Brasil (Lumme Editor, de São Paulo) em 2014. Trata-se de Rua da Outra Rua.
Esta Rua da Outra Rua existe mesmo ou é uma criação a propósito da antologia?
Como tudo quanto surge
pela via da poesia, um título é simultaneamente imanência e transcendência,
matéria e pensamento. A “Rua da Outra Rua” existe mesmo. Situa-se na pequena aldeia
onde fui criado – Carreiras, a sete quilómetros de Castelo de Vide. Embora hoje
o nome se atribua apenas a uma pequena travessa, até aos anos trinta do século
passado designava um arruamento maior, que ligava a Rua Nova à antiga Rua do
Castelo, ou seja, a novidade à tradição. Renasce, todavia, enquanto título de
antologia. Como diria o poeta Sebastião da Gama, o símbolo visto ou ouvido
tornou-se símbolo encontrado ou pensado, na medida em que o “outro” surge como
elemento transfigurador da realidade. A rua deixa de ser rua ao transformar-se
noutro lugar de circulação, se tivermos em conta a quase total homofonia com o
termo ruah, que significa, como sabe,
“sopro”, “vento”, “aragem”, mas sobretudo, na tradição judaico-cristã, o
Espírito Santo. As epígrafes do livro, colhidas em Dalila Pereira da Costa, De
Chirico e no padre António Vieira, explicam isto muito bem.
O facto de os poemas surgirem em forma de prosopoema é uma
estratégia de comunicação?
Não sei se é uma
estratégia de comunicação, mas é com toda a certeza um caminho da poesia, tal
como a penso hoje em dia. Poderia ter transcrito nesta antologia todos os
poemas tal como foram publicados nos livros originais. Penso contudo que o
trabalho poético é incessante, não dispensando o apuro de tudo quanto publiquei
no passado, mesmo daquilo que já parecia muito apurado. Escrever é reescrever.
Daí que esta antologia seja também um novo livro de poemas meus. Foram todos revistos,
reescritos, depurados, embora respeitando o seu cerne inicial e imaginal. Só
usando os artifícios estilísticos mínimos é que o poema se institui enquanto
demanda da verdade da palavra. E procurar a verdade da palavra será sempre
encontrar aquele “não sei quê” que eleva o homem acima da sua condição
biológica e dos seus instintos, ou seja, que o separa da animalidade ou da
bestialidade e o transforma em ser vivente e não apenas existente.
A ordem dos livros na antologia corresponde à data da
escrita e não à data da publicação?
Nem uma coisa nem
outra. No início da antologia coloquei uma sequência publicada em 2003 na Black
Sun Editores e que, de algum modo, é excêntrica na minha produção. Em termos de
pensamento, é simultaneamente anterior e posterior a tudo quanto tenho escrito.
Acabou por fixar-se neste livro como prólogo e está bem assim, embora também
pudesse ser um epílogo, se este volume incluísse toda a minha poesia escrita e
publicada até ao momento. No que respeita aos outros livros, estão por ordem
cronológica de publicação, embora sem essa indicação, que pode ser contudo
conferida na nota final. Tentei reduzir ao mínimo todos os aspectos
paratextuais. Por isso retirei, também, as dedicatórias originais (o que não
significa um apagamento, mas apenas uma atitude estética, tanto mais que para o
leitor brasileiro nada significariam; só uma edição portuguesa justificaria a
sua manutenção, ainda assim em nota final), bem como todas as menções às
alavancas que levantaram os textos.
Alguns textos poéticos seus ficam excluídos desta selecção.
Existe uma razão especial objectiva?
A edição desta
antologia permitiu-me iniciar o processo de reescrita de todos os meus livros
de poesia que, se algum dia houver editor, serão publicados em volume conjunto.
Tratando-se neste caso de uma reunião de textos que sempre desejei investida de
uma “esquelética robustez”, como dizia o velho humorista, tive de proceder a
uma selecção, não só em função do meu gosto pessoal, enquanto leitor que de fora
já lê os seus poemas, mas também procurando dar alguma coerência ao conjunto.
Não consigo conceber um livro de poesia ou, sequer, uma antologia sem uma
coesão interna. Nunca publiquei colectâneas de poemas, mas sequências poéticas.
Não critico quem o faz, mas estou do lado daqueles que não conseguem fazer
feixes de poemas como se atassem molhos de lenha.
Já com 14 anos de actividade poética permanente,
reconhece-se na frase de Camilo Castelo Branco «A Poesia
não tem presente: ou é esperança ou saudade»?
Se tiver em conta que
no Arquitectura do Silêncio,
publicado em 2000, saíram poemas escritos entre 1992 e 1997, já ultrapassei as
duas décadas de actividade… Verdade seja dita que este facto me provoca uma
“inquietante estranheza”, como diria o Freud. Não discordando do Camilo Castelo
Branco, autor que leio sempre com gosto não tanto pelas suas narrativas
relativamente banais mas pela força da sua expressão musculada e imaginativa,
que o coloca entre os melhores poetas em prosa da nossa língua, gosto sobretudo
da noção de “saudade” inventada (ou seja, encontrada, descoberta) pelo Teixeira
de Pascoaes, que bem se adapta ao que é a mais alta poesia: a poesia é
simultaneamente esperança e lembrança. Ou seja, não tem presente (a não ser o
da leitura). Esperança, porque é desejo, sonho e imaginação. Lembrança, porque
é dor, regresso e rememoração. É a poesia, ou seja, a criação no mais elevado
significado da palavra, que desfaz esta antinomia, não destruindo os dois
termos, mas associando-os. Por isso a poesia é, simultaneamente, memória e
profecia, recordação e amnésia, lembrança e esquecimento. Mas, sobretudo,
liberdade, não só enquanto subversão dos códigos comunicativos da comunidade
falante, mas enquanto procura desse “manjar” sublime de que falava frei Agostinho
da Cruz, que consiste em “trazer o pensamento / Aceso na divina saudade”. Quem
tiver ouvidos para ouvir, oiça... Talvez não seja fácil escutar algo nos dias
que correm, em que o ruído nos acompanha, nos distrai e nos destrói… Sem
atenção, nunca haverá contudo poesia nem entendimento, o que será decerto uma
auto-estrada para a alienação mental e para o retrocesso civilizacional.
O título Rua da Outra Rua sugere um conjunto de casas. Há uma casa inicial de onde o
poema afinal nunca saiu?
Procurei encontrar e
definir essa casa inicial no meu primeiro livro – e por isso mesmo o intitulei Arquitectura – e em todos aqueles que
lhe sucederam. Andei algum tempo às cegas, mas com muito maior clareza vejo
hoje em dia onde se situa, embora saiba que nunca conseguirei sequer
aproximar-me do seu esboço. Com os simbolistas oitocentistas, também afirmo
convictamente que a poesia e a literatura não são campos coincidentes. Com
frequência, opõem-se. Embora haja muitos textos escritos em verso, com todos os
tiques daquilo a que costumamos chamar “poema”, uma grande quantidade pertence
somente à literatura e nem de perto chega à poesia. Luto para que os meus
textos não fiquem desse lado. Há na realidade uma casa inicial que é também a
casa final. Por isso mesmo, quanto um dia juntar todos os meus poemas num único
volume, hei-de dar-lhe o título de Arqueologia,
na medida em que toda a poesia é uma forma imperfeita de tentar definir
humanamente esse “princípio”, esse “começo”, que os gregos designavam arkhé.
Um dia Alexandre O’ Neill escreveu que o Poeta é o
contrário do publicitário porque este «acrescenta
às coisas aquilo que elas não são». Concorda?
De certa forma
concordo, na medida em que o poeta, enquanto instrumento, pratica uma
hermenêutica da realidade que, como se sabe, é bem mais vasta do que o concreto
e o quotidiano, mesmo quando passados pelo joeiro da memória, quase sempre
inventada ou recriada. Ou seja, procurando a verdade, o cerne, da palavra, do
significante, acaba por descobrir, desvelando, a essência do significado. O que
digo deve arrepiar aqueles que ainda defendem a arbitrariedade do signo, mas só
numa língua de pau, de pau porque pauperizada (como aquela que a comunicação
social, a propaganda e certa universidade nos querem impor, reduzindo-nos à
condição de gagos mentais), é que uma coisa se separa por completo da outra.
Isto vem dar razão a Jorge de Sena quando afirma «ao longo dos tempos a Poesia nunca hesitou em chamar as
coisas pelos seus nomes»?
Primeiro temos de
descobrir que nomes têm verdadeiramente as coisas. E, ao mesmo tempo, encontrar
os verbos que as fazem seres moventes e vivos, e não apenas existentes. Só depois
disso as poderemos chamar, ou seja, invocar. Um velho poeta neoclássico, hoje quase
esquecido, Francisco José Freire (que assinava com o pseudónimo Cândido
Lusitano), dizia com muita razão que trovar, ou seja, escrever poesia, vem de
“trouver”, verbo francês que significa encontrar e descobrir. Essa será sempre
a nossa mais digna tarefa: descobrir, imaginar e interpretar. Não creio no
entanto que o Sena pensasse nisto que digo quando proclamou essa frase. Talvez
pensasse na poesia como veículo de intervenção social. Estou muito longe de
concordar com aqueles que usam e usaram os poemas para fazer proclamações
políticas e sociais. De boas intenções está o inferno cheio… e não consta que
seja um lugar bem frequentado. Não sou como o outro que defendeu a abolição do
“mistério da poesia” enquanto houver problemas económicos, sociais e políticos.
Houve alguma época boa na história da humanidade? Não creio… Nenhum poema
verdadeiramente grande se alheia do seu tempo e dos dramas aí vividos, mas a
partir do momento em que se subordina a um desejo deliberado de transmissão de
uma mensagem filantrópica, deixa de ser poesia para passar a ser literatura em
verso, ou, pior, propaganda rimada. Muitos caíram nesse logro, inclusive alguns
nomes grandes da nossa poesia. Acontece o mesmo com aqueles que julgam agarrar
mais leitores imitando a linguagem anti-simbólica do nosso tempo ou
transformando os seus versos em carrinhos de mão que transportam
micro-narrativas mais ou menos inanes ou descrições jornalísticas… Mas seria
assunto que levaria muito tempo a escalpelizar. Parece-me que não vale a pena
gastar cera com ruins defuntos…
Na dicotomia entre «canção» e «reflexão» qual é o lugar da
sua Poesia?
Não consigo separá-las
e creio que nenhum poeta que deseje ser mais do que um literato o conseguirá.
De certo modo, a canção é um meio e a reflexão o fim, se entendermos este termo
não só enquanto sinónimo de pensamento, mas também, na sua etimologia, enquanto
devolução imperfeita de uma imagem espelhada, não nossa, mas de algo que nos
transcende enquanto seres humanos.
Sente que a Poesia, tal como a Oração, liga de novo os dois
mundos separados pela Morte?
Não sinto, penso.
Imponho todavia uma nuance na frase
que me propõe. O que separa os dois mundos não é a morte, mas a existência, que
será sempre uma redução da vida e até da vivência; a não ser que a existência
sem vida seja um sinónimo de morte; se assim for, a maior parte dos seres
humanos de hoje já morreu. Uma existência sem vida – aquela que o nosso tempo
nos impõe a todo o momento, sem que a maior parte dos seres humanos saiba como
fugir-lhe ou sequer tenha consciência do lugar infernal a que desceu – só
poderá transformar-se numa vivência rumo à vida se nos dispusermos a trilhar o
árduo caminho que nos leva à liberdade. A arte, não enquanto espectáculo ou substituto,
mas enquanto catalisador da religiosidade, será sempre um dos melhores bordões
nessa peregrinação. Por isso, a arte mais importante é simbólica. O que é
simbólico liga, como diz a etimologia, e o contrário de simbólico é diabólico…
Mas quem, neste mundo onde somos seduzidos e reduzidos por toda a tralha que o
dinheiro pode comprar, estará disposto a tornar-se peregrino, ou seja, novato,
aprendiz, estrangeiro no seu próprio país? Nem a maior parte daqueles que se
dizem poetas…
No tempo de Cesário Verde era mais famoso Cláudio Nunes, no
tempo de Camilo Pessanha o conhecido era Augusto Gil. Só o tempo pode decidir?
Sem dúvida. Os alfarrabistas
estão cheios de livros escritos por autores que, em vida, eram idolatrados em
todos os areópagos da moda. Ninguém os compra. Talvez devamos concordar com
Pascoaes, que considerava a arte um ídolo falso que nos leva ao Deus
verdadeiro, ou, como dizia o seu discípulo Sebastião da Gama, uma chave falsa
que abre portas verdadeiras. Também não será má ideia relermos A Capital, do Eça. Este mundo está cheio
de Romas… Como repetia uma senhora que o meu amigo bem conheceu, não têm
qualquer habilidade para fazer o vestido, mas sabem “botar defeito”. Têm para
cinco anos de imortalidade nas prateleiras dos arquivos. Nisto tudo, temos de
ser “simples como as pombas e astutos como a serpentes”. Cristo tinha razão.
Não podemos esquecer que, mesmo agora, os escaparates e as colecções de poesia
de algumas editoras de topo estão cheios de grandes “ilusionistas”. Olhe, o
David Mourão-Ferreira identificou alguns na nossa santa terrinha. Mas quem lê
hoje os Vinte Poetas Contemporâneos?
Identificou alguns, mas nem todos… Cesariny também descobriu a careca a um par
deles, mas quase só na marginália dos livros da sua biblioteca. Só depois da
morte de um poeta, de toda a sua família e de todos os seus amigos e clientes é
que se sabe quanto vale a obra de um escritor de poemas. Mas quem nos saberá
ler daqui por uns anos? Se o vocabulário se continuar a reduzir à velocidade
actual, daqui por cem anos os seres humanos voltarão a grunhir… Aí, batatas…
Valeremos todos o mesmo. Nessa altura, se houver cinquenta leitores de jeito em
cada língua será uma sorte. Ainda assim, a poesia convulsiva será apreciada. Já
estarão debaixo dos torrões ou feitos em cinza todos aqueles que, do seu
pedestal, agora cospem sobre os poetas menos coloquiais, aos quais retiram
direito de cidadania, reduzindo-os à condição de indigentes culturais. Talvez
essa malta tenha sorte e veja os seus restos colocados no canteiro de um jardim
público, onde os canídeos farão aquilo que a natureza lhes manda. Que apoteose!
Não tenho dúvidas: se vivessem hoje e sem abrigo, como muitos poetas do nosso
tempo, T. S. Eliot, Ezra Pound ou Paul Celan seriam autores subterrâneos,
rejeitados pela sua dificuldade. Tiveram a sorte de existir noutro tempo. O que
mais interessa é trabalharmos honradamente, como uma vez me escreveu Fernando
Echevarría. Mas alguém se preocupa com a honra hoje em dia? A maior parte das
pessoas, com tantos versejadores à cabeça, deve responder como um miúdo duma
aldeia alentejana há quarenta anos: “Mais vale morrer sem honra”… Os escândalos
da alta finança e da corrupção, bem como a sede existente nos nossos dias de
ganhar dinheiro sem trabalho, provam que sou capaz de ter alguma razão.
Entre o «sangue pisado» da vida e o «estilo» da escrita
será a Poesia um intervalo difícil de atingir porque difícil de dosear?
A poesia nunca poderá
ser um escape. Ou seja, tem de incluir na sua massa o sangue pisado da
existência e muito mais… Não há evolução humana sem a compreensão e a aceitação
da dor e do sofrimento. Nisso (e em muito mais) ando de braço dado com o Raul
Brandão, o nosso mais importante poeta em prosa, como bem o qualificou o nosso
amigo de São João de Gatão. Tem de incluir na sua massa o sangue, mas não
exclusivamente. Se assim fosse, os poemas deixariam de ser poemas e passariam a
ser qualquer coisa parecida com as morcelas. Brinco com coisas sérias, eu sei.
Quero apenas dizer que metemos as mãos no monturo para descobrir nele uma via
de redenção. Como o pinto da história tradicional, que encontrou um copo de
ouro no meio do estrume... José Mattoso acertou: não devemos ser apenas activos
ou apenas contemplativos, mas praticar uma acção contemplativa ou uma contemplação
activa. Ora, praticar esse caminho em poesia equivale a fazê-lo a tempo inteiro
e de corpo inteiro, nunca num intervalo ou por diletantismo, na medida em que
reconhecemos uma hierarquia, ou seja, um princípio sagrado. O poema é o
intermediário entre a poesia e o poeta. E quem diz Poesia, como escreveu um
vizinho meu falecido em 1952 com 27 anos, diz Verbo, diz Vida e diz Amor. Por
isso tenho como regra de vida as palavras iniciais do salmo 115… (Declarações tomadas em
Azeitão por José do Carmo Francisco, a 11 de Novembro de 2014. Uma versão mais
curta desta entrevista foi publicada na revista electrónica Inefável, dirigida por Pedro Silva Sena. Esta versão foi editada no nº 50 da revista Triplov, dirigida por Maria Estela Guedes, e pode ser lida aqui. Brevemente será reeditada no Brasil.)
A ARRÁBIDA:
UM SANTUÁRIO ENTRE DUAS MEMÓRIAS
No passado sábado, 31 de Janeiro, proferi uma conferência intitulada "A Arrábida: um santuário entre duas memórias", no âmbito das comemorações do 40º aniversário do jornal "Raio de Luz" (Sesimbra), de que sou colaborador. O evento contou com a presença de monsenhor José Lobato, vigário-geral da diocese de Setúbal, em representação de D. Gilberto dos Reis, prelado diocesano, e da vice-presidente da Câmara Municipal de Sesimbra, Dra. Felícia Costa. Encerrou com um espectáculo do coro Vocálise, de Caneças (Odivelas).
O prefácio de António Carlos Cortez que antecede a antologia Rua da Outra Rua [Lumme, São Paulo, 2014], de Ruy Ventura, foi reproduzido no nº 38 da revista electrónica Germina, no Brasil. Pode ser lido aqui.