Entrevista a Ruy Ventura
«A nossa mais digna tarefa
será sempre descobrir, imaginar e interpretar.»
Ruy Ventura (1973)
nasceu em Portalegre e vive em Azeitão (Portugal) sendo professor de Português
na escola local. Os seus poemas estão traduzidos em alemão, francês, inglês e
espanhol. A sua poesia está publicada em vários países (México, E.U.A., Brasil,
Alemanha, Espanha e Portugal). Além da poesia, os seus interesses como
investigador contemplam áreas tão diversas como a toponímia, o património religioso,
a poesia contemporânea e a literatura tradicional portuguesa. O seu primeiro
livro (Arquitectura do Silêncio)
recebeu em 1997 o Prémio Revelação da Associação Portuguesa de Escritores e foi
editado em 2000. Publicou entretanto outros livros: Sete capítulos do mundo (2003), Assim
se deixa uma casa (2003), Chave de
ignição (2009), Instrumentos de sopro
(2010) e Contramina (2012). Ao fim de
ver publicados nove livros de poemas, surge agora com uma antologia publicada
no Brasil (Lumme Editor, de São Paulo) em 2014. Trata-se de Rua da Outra Rua.
Esta Rua da Outra Rua existe mesmo ou é uma criação a propósito da antologia?
Como tudo quanto surge
pela via da poesia, um título é simultaneamente imanência e transcendência,
matéria e pensamento. A “Rua da Outra Rua” existe mesmo. Situa-se na pequena aldeia
onde fui criado – Carreiras, a sete quilómetros de Castelo de Vide. Embora hoje
o nome se atribua apenas a uma pequena travessa, até aos anos trinta do século
passado designava um arruamento maior, que ligava a Rua Nova à antiga Rua do
Castelo, ou seja, a novidade à tradição. Renasce, todavia, enquanto título de
antologia. Como diria o poeta Sebastião da Gama, o símbolo visto ou ouvido
tornou-se símbolo encontrado ou pensado, na medida em que o “outro” surge como
elemento transfigurador da realidade. A rua deixa de ser rua ao transformar-se
noutro lugar de circulação, se tivermos em conta a quase total homofonia com o
termo ruah, que significa, como sabe,
“sopro”, “vento”, “aragem”, mas sobretudo, na tradição judaico-cristã, o
Espírito Santo. As epígrafes do livro, colhidas em Dalila Pereira da Costa, De
Chirico e no padre António Vieira, explicam isto muito bem.
O facto de os poemas surgirem em forma de prosopoema é uma
estratégia de comunicação?
Não sei se é uma
estratégia de comunicação, mas é com toda a certeza um caminho da poesia, tal
como a penso hoje em dia. Poderia ter transcrito nesta antologia todos os
poemas tal como foram publicados nos livros originais. Penso contudo que o
trabalho poético é incessante, não dispensando o apuro de tudo quanto publiquei
no passado, mesmo daquilo que já parecia muito apurado. Escrever é reescrever.
Daí que esta antologia seja também um novo livro de poemas meus. Foram todos revistos,
reescritos, depurados, embora respeitando o seu cerne inicial e imaginal. Só
usando os artifícios estilísticos mínimos é que o poema se institui enquanto
demanda da verdade da palavra. E procurar a verdade da palavra será sempre
encontrar aquele “não sei quê” que eleva o homem acima da sua condição
biológica e dos seus instintos, ou seja, que o separa da animalidade ou da
bestialidade e o transforma em ser vivente e não apenas existente.
A ordem dos livros na antologia corresponde à data da
escrita e não à data da publicação?
Nem uma coisa nem
outra. No início da antologia coloquei uma sequência publicada em 2003 na Black
Sun Editores e que, de algum modo, é excêntrica na minha produção. Em termos de
pensamento, é simultaneamente anterior e posterior a tudo quanto tenho escrito.
Acabou por fixar-se neste livro como prólogo e está bem assim, embora também
pudesse ser um epílogo, se este volume incluísse toda a minha poesia escrita e
publicada até ao momento. No que respeita aos outros livros, estão por ordem
cronológica de publicação, embora sem essa indicação, que pode ser contudo
conferida na nota final. Tentei reduzir ao mínimo todos os aspectos
paratextuais. Por isso retirei, também, as dedicatórias originais (o que não
significa um apagamento, mas apenas uma atitude estética, tanto mais que para o
leitor brasileiro nada significariam; só uma edição portuguesa justificaria a
sua manutenção, ainda assim em nota final), bem como todas as menções às
alavancas que levantaram os textos.
Alguns textos poéticos seus ficam excluídos desta selecção.
Existe uma razão especial objectiva?
A edição desta
antologia permitiu-me iniciar o processo de reescrita de todos os meus livros
de poesia que, se algum dia houver editor, serão publicados em volume conjunto.
Tratando-se neste caso de uma reunião de textos que sempre desejei investida de
uma “esquelética robustez”, como dizia o velho humorista, tive de proceder a
uma selecção, não só em função do meu gosto pessoal, enquanto leitor que de fora
já lê os seus poemas, mas também procurando dar alguma coerência ao conjunto.
Não consigo conceber um livro de poesia ou, sequer, uma antologia sem uma
coesão interna. Nunca publiquei colectâneas de poemas, mas sequências poéticas.
Não critico quem o faz, mas estou do lado daqueles que não conseguem fazer
feixes de poemas como se atassem molhos de lenha.
Já com 14 anos de actividade poética permanente,
reconhece-se na frase de Camilo Castelo Branco «A Poesia
não tem presente: ou é esperança ou saudade»?
Se tiver em conta que
no Arquitectura do Silêncio,
publicado em 2000, saíram poemas escritos entre 1992 e 1997, já ultrapassei as
duas décadas de actividade… Verdade seja dita que este facto me provoca uma
“inquietante estranheza”, como diria o Freud. Não discordando do Camilo Castelo
Branco, autor que leio sempre com gosto não tanto pelas suas narrativas
relativamente banais mas pela força da sua expressão musculada e imaginativa,
que o coloca entre os melhores poetas em prosa da nossa língua, gosto sobretudo
da noção de “saudade” inventada (ou seja, encontrada, descoberta) pelo Teixeira
de Pascoaes, que bem se adapta ao que é a mais alta poesia: a poesia é
simultaneamente esperança e lembrança. Ou seja, não tem presente (a não ser o
da leitura). Esperança, porque é desejo, sonho e imaginação. Lembrança, porque
é dor, regresso e rememoração. É a poesia, ou seja, a criação no mais elevado
significado da palavra, que desfaz esta antinomia, não destruindo os dois
termos, mas associando-os. Por isso a poesia é, simultaneamente, memória e
profecia, recordação e amnésia, lembrança e esquecimento. Mas, sobretudo,
liberdade, não só enquanto subversão dos códigos comunicativos da comunidade
falante, mas enquanto procura desse “manjar” sublime de que falava frei Agostinho
da Cruz, que consiste em “trazer o pensamento / Aceso na divina saudade”. Quem
tiver ouvidos para ouvir, oiça... Talvez não seja fácil escutar algo nos dias
que correm, em que o ruído nos acompanha, nos distrai e nos destrói… Sem
atenção, nunca haverá contudo poesia nem entendimento, o que será decerto uma
auto-estrada para a alienação mental e para o retrocesso civilizacional.
O título Rua da Outra Rua sugere um conjunto de casas. Há uma casa inicial de onde o
poema afinal nunca saiu?
Procurei encontrar e
definir essa casa inicial no meu primeiro livro – e por isso mesmo o intitulei Arquitectura – e em todos aqueles que
lhe sucederam. Andei algum tempo às cegas, mas com muito maior clareza vejo
hoje em dia onde se situa, embora saiba que nunca conseguirei sequer
aproximar-me do seu esboço. Com os simbolistas oitocentistas, também afirmo
convictamente que a poesia e a literatura não são campos coincidentes. Com
frequência, opõem-se. Embora haja muitos textos escritos em verso, com todos os
tiques daquilo a que costumamos chamar “poema”, uma grande quantidade pertence
somente à literatura e nem de perto chega à poesia. Luto para que os meus
textos não fiquem desse lado. Há na realidade uma casa inicial que é também a
casa final. Por isso mesmo, quanto um dia juntar todos os meus poemas num único
volume, hei-de dar-lhe o título de Arqueologia,
na medida em que toda a poesia é uma forma imperfeita de tentar definir
humanamente esse “princípio”, esse “começo”, que os gregos designavam arkhé.
Um dia Alexandre O’ Neill escreveu que o Poeta é o
contrário do publicitário porque este «acrescenta
às coisas aquilo que elas não são». Concorda?
De certa forma
concordo, na medida em que o poeta, enquanto instrumento, pratica uma
hermenêutica da realidade que, como se sabe, é bem mais vasta do que o concreto
e o quotidiano, mesmo quando passados pelo joeiro da memória, quase sempre
inventada ou recriada. Ou seja, procurando a verdade, o cerne, da palavra, do
significante, acaba por descobrir, desvelando, a essência do significado. O que
digo deve arrepiar aqueles que ainda defendem a arbitrariedade do signo, mas só
numa língua de pau, de pau porque pauperizada (como aquela que a comunicação
social, a propaganda e certa universidade nos querem impor, reduzindo-nos à
condição de gagos mentais), é que uma coisa se separa por completo da outra.
Isto vem dar razão a Jorge de Sena quando afirma «ao longo dos tempos a Poesia nunca hesitou em chamar as
coisas pelos seus nomes»?
Primeiro temos de
descobrir que nomes têm verdadeiramente as coisas. E, ao mesmo tempo, encontrar
os verbos que as fazem seres moventes e vivos, e não apenas existentes. Só depois
disso as poderemos chamar, ou seja, invocar. Um velho poeta neoclássico, hoje quase
esquecido, Francisco José Freire (que assinava com o pseudónimo Cândido
Lusitano), dizia com muita razão que trovar, ou seja, escrever poesia, vem de
“trouver”, verbo francês que significa encontrar e descobrir. Essa será sempre
a nossa mais digna tarefa: descobrir, imaginar e interpretar. Não creio no
entanto que o Sena pensasse nisto que digo quando proclamou essa frase. Talvez
pensasse na poesia como veículo de intervenção social. Estou muito longe de
concordar com aqueles que usam e usaram os poemas para fazer proclamações
políticas e sociais. De boas intenções está o inferno cheio… e não consta que
seja um lugar bem frequentado. Não sou como o outro que defendeu a abolição do
“mistério da poesia” enquanto houver problemas económicos, sociais e políticos.
Houve alguma época boa na história da humanidade? Não creio… Nenhum poema
verdadeiramente grande se alheia do seu tempo e dos dramas aí vividos, mas a
partir do momento em que se subordina a um desejo deliberado de transmissão de
uma mensagem filantrópica, deixa de ser poesia para passar a ser literatura em
verso, ou, pior, propaganda rimada. Muitos caíram nesse logro, inclusive alguns
nomes grandes da nossa poesia. Acontece o mesmo com aqueles que julgam agarrar
mais leitores imitando a linguagem anti-simbólica do nosso tempo ou
transformando os seus versos em carrinhos de mão que transportam
micro-narrativas mais ou menos inanes ou descrições jornalísticas… Mas seria
assunto que levaria muito tempo a escalpelizar. Parece-me que não vale a pena
gastar cera com ruins defuntos…
Na dicotomia entre «canção» e «reflexão» qual é o lugar da
sua Poesia?
Não consigo separá-las
e creio que nenhum poeta que deseje ser mais do que um literato o conseguirá.
De certo modo, a canção é um meio e a reflexão o fim, se entendermos este termo
não só enquanto sinónimo de pensamento, mas também, na sua etimologia, enquanto
devolução imperfeita de uma imagem espelhada, não nossa, mas de algo que nos
transcende enquanto seres humanos.
Sente que a Poesia, tal como a Oração, liga de novo os dois
mundos separados pela Morte?
Não sinto, penso.
Imponho todavia uma nuance na frase
que me propõe. O que separa os dois mundos não é a morte, mas a existência, que
será sempre uma redução da vida e até da vivência; a não ser que a existência
sem vida seja um sinónimo de morte; se assim for, a maior parte dos seres
humanos de hoje já morreu. Uma existência sem vida – aquela que o nosso tempo
nos impõe a todo o momento, sem que a maior parte dos seres humanos saiba como
fugir-lhe ou sequer tenha consciência do lugar infernal a que desceu – só
poderá transformar-se numa vivência rumo à vida se nos dispusermos a trilhar o
árduo caminho que nos leva à liberdade. A arte, não enquanto espectáculo ou substituto,
mas enquanto catalisador da religiosidade, será sempre um dos melhores bordões
nessa peregrinação. Por isso, a arte mais importante é simbólica. O que é
simbólico liga, como diz a etimologia, e o contrário de simbólico é diabólico…
Mas quem, neste mundo onde somos seduzidos e reduzidos por toda a tralha que o
dinheiro pode comprar, estará disposto a tornar-se peregrino, ou seja, novato,
aprendiz, estrangeiro no seu próprio país? Nem a maior parte daqueles que se
dizem poetas…
No tempo de Cesário Verde era mais famoso Cláudio Nunes, no
tempo de Camilo Pessanha o conhecido era Augusto Gil. Só o tempo pode decidir?
Sem dúvida. Os alfarrabistas
estão cheios de livros escritos por autores que, em vida, eram idolatrados em
todos os areópagos da moda. Ninguém os compra. Talvez devamos concordar com
Pascoaes, que considerava a arte um ídolo falso que nos leva ao Deus
verdadeiro, ou, como dizia o seu discípulo Sebastião da Gama, uma chave falsa
que abre portas verdadeiras. Também não será má ideia relermos A Capital, do Eça. Este mundo está cheio
de Romas… Como repetia uma senhora que o meu amigo bem conheceu, não têm
qualquer habilidade para fazer o vestido, mas sabem “botar defeito”. Têm para
cinco anos de imortalidade nas prateleiras dos arquivos. Nisto tudo, temos de
ser “simples como as pombas e astutos como a serpentes”. Cristo tinha razão.
Não podemos esquecer que, mesmo agora, os escaparates e as colecções de poesia
de algumas editoras de topo estão cheios de grandes “ilusionistas”. Olhe, o
David Mourão-Ferreira identificou alguns na nossa santa terrinha. Mas quem lê
hoje os Vinte Poetas Contemporâneos?
Identificou alguns, mas nem todos… Cesariny também descobriu a careca a um par
deles, mas quase só na marginália dos livros da sua biblioteca. Só depois da
morte de um poeta, de toda a sua família e de todos os seus amigos e clientes é
que se sabe quanto vale a obra de um escritor de poemas. Mas quem nos saberá
ler daqui por uns anos? Se o vocabulário se continuar a reduzir à velocidade
actual, daqui por cem anos os seres humanos voltarão a grunhir… Aí, batatas…
Valeremos todos o mesmo. Nessa altura, se houver cinquenta leitores de jeito em
cada língua será uma sorte. Ainda assim, a poesia convulsiva será apreciada. Já
estarão debaixo dos torrões ou feitos em cinza todos aqueles que, do seu
pedestal, agora cospem sobre os poetas menos coloquiais, aos quais retiram
direito de cidadania, reduzindo-os à condição de indigentes culturais. Talvez
essa malta tenha sorte e veja os seus restos colocados no canteiro de um jardim
público, onde os canídeos farão aquilo que a natureza lhes manda. Que apoteose!
Não tenho dúvidas: se vivessem hoje e sem abrigo, como muitos poetas do nosso
tempo, T. S. Eliot, Ezra Pound ou Paul Celan seriam autores subterrâneos,
rejeitados pela sua dificuldade. Tiveram a sorte de existir noutro tempo. O que
mais interessa é trabalharmos honradamente, como uma vez me escreveu Fernando
Echevarría. Mas alguém se preocupa com a honra hoje em dia? A maior parte das
pessoas, com tantos versejadores à cabeça, deve responder como um miúdo duma
aldeia alentejana há quarenta anos: “Mais vale morrer sem honra”… Os escândalos
da alta finança e da corrupção, bem como a sede existente nos nossos dias de
ganhar dinheiro sem trabalho, provam que sou capaz de ter alguma razão.
Entre o «sangue pisado» da vida e o «estilo» da escrita
será a Poesia um intervalo difícil de atingir porque difícil de dosear?
A poesia nunca poderá
ser um escape. Ou seja, tem de incluir na sua massa o sangue pisado da
existência e muito mais… Não há evolução humana sem a compreensão e a aceitação
da dor e do sofrimento. Nisso (e em muito mais) ando de braço dado com o Raul
Brandão, o nosso mais importante poeta em prosa, como bem o qualificou o nosso
amigo de São João de Gatão. Tem de incluir na sua massa o sangue, mas não
exclusivamente. Se assim fosse, os poemas deixariam de ser poemas e passariam a
ser qualquer coisa parecida com as morcelas. Brinco com coisas sérias, eu sei.
Quero apenas dizer que metemos as mãos no monturo para descobrir nele uma via
de redenção. Como o pinto da história tradicional, que encontrou um copo de
ouro no meio do estrume... José Mattoso acertou: não devemos ser apenas activos
ou apenas contemplativos, mas praticar uma acção contemplativa ou uma contemplação
activa. Ora, praticar esse caminho em poesia equivale a fazê-lo a tempo inteiro
e de corpo inteiro, nunca num intervalo ou por diletantismo, na medida em que
reconhecemos uma hierarquia, ou seja, um princípio sagrado. O poema é o
intermediário entre a poesia e o poeta. E quem diz Poesia, como escreveu um
vizinho meu falecido em 1952 com 27 anos, diz Verbo, diz Vida e diz Amor. Por
isso tenho como regra de vida as palavras iniciais do salmo 115…(Declarações tomadas em Azeitão por José do Carmo Francisco, a 11 de Novembro de 2014. Uma versão mais curta desta entrevista foi publicada na revista electrónica Inefável, dirigida por Pedro Silva Sena. Esta versão foi editada no nº 50 da revista Triplov, dirigida por Maria Estela Guedes, e pode ser lida aqui. Brevemente será reeditada no Brasil.)
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