RADIOGRAFIA DE RUY VENTURA
por João Francisco Chagas
1. Ruy Ventura amplia e entrelaça nos seus poemas as
heranças da poesia metafísica (Gerard Manley Hopkins, T. S. Eliot e Dylan
Thomas), do hermetismo italiano (Eugenio Montale) e do neo-surrealismo (tal
como foi pensado e praticado por Philip Lamantia e difundido por Andrew Joron).
Matizam esta trama a melhor parte da grande poesia religiosa, a contenção
explosiva de Emily Dickinson, o transcendentalismo de Teixeira de Pascoaes e do
mais secreto Fernando Pessoa, os choques de altíssima tensão provenientes da
obra do “maior poeta em prosa da língua
portuguesa” (Raul Brandão) e toda a discreta e sublime tradição da poesia obscura
(que atingiu em Portugal o seu cume na obra de Fiama Hasse Pais Brandão e fora
de portas na introversão enigmática proposta por Paul Celan), bem como a “esquelética robustez” dos poemas de Carlos
de Oliveira e Nuno Guimarães. Todos os homens possuem uma genealogia – e a dos
poetas nunca se limitará aos oito bisavós de que ninguém se livra.
2. Não quero reinventar a roda, apresentando ex nihilo os traços dominantes desta
poesia; se o fizesse, correria o risco de torná-la quadrada,
impossibilitando-lhe o movimento. Recorro, por isso, aos ensaios de Levi
Condinho, António Carlos Cortez, Pedro Martins e António Cândido Franco, entre
os vários possíveis, onde essa definição já foi em grande parte exposta.
Condinho fala em “elementarismo” (“atenção devota às coisas do mundo”) e em
“religação”; Cortez aponta uma “visão imaginante” em que “os referentes como que se revelam na sua
essencialidade”; Martins regista “uma
visão poliédrica onde se espelha o naufrágio do mundo”; Franco, por seu
lado, salienta a urdidura de um “real
superior”, reconduzindo “a palavra à
sua condição cosmogónica primordial”, nisto sendo um contraponto da “multidão
informe de artefactos inoperantes que por aí se lêem e que resultam num
afunilamento empobrecedor da ideia de real”. Não viram mal, embora não
tenham visto tudo… porque tal não é possível ao leitor humano seja de que texto
for.
3. A poesia do autor de Rua da Outra Rua, apesar da sua linguagem simbólica, figurativa e exigente,
não se pode dizer abstracta nem árida. É, de algum modo, catalisada pela
visualidade, pela iconicidade, pela contenção emblemática. Daí os enigmas que a
povoam, indicando ao leitor inquieto e, por vezes, desorientado, algo de mais
alto e misterioso, a que só se acede subindo a escada da montanha. Será muito
útil ao exegeta que queira tornar-se hermeneuta dos seus poemas a
contemplação/meditação dos desenhos ofuscantes de Domingos António Sequeira,
dos quadros metafísicos de Giorgio De Chirico, das pinturas musicais de
Ciurlionis, das abstracções místicas de Manuel D’ Assumpção, do
sobrenaturalismo de António Dacosta. O melhor acompanhamento para essa tarefa
estará nas composições de Olivier Messiaen. (Ultimamente, a poesia de Ruy
Ventura parece ter encontrado nas fotografias de José Luís Neto algumas das
suas irmãs colaças.)
4. Trata-se de uma obra sem expansões, contida, elíptica
até. Como se “a medo” escrevesse e
falasse, nunca se livrando de um sentimento de temor perante algo indefinido e
numinoso. Talvez, por isso, cubra o seu rosto textual e se exprima por
meias-palavras, por frases cortadas, meio-ditas. Parece ser esse o único modo
que encontrou para dar voz a uma presença-ausência luminosa (geradora de uma theoria) e para, no reverso, exprimir a
sua constante psicomaquia com um mundo tenebroso (que parece obrigá-lo a uma
sucessão de catábases e anábases).
5. Ruy Ventura alterou o seu nome, pondo nele um Y que,
segundo tem afirmado, é homenagem a Ruy Belo e a Ruy Cinatti, “dois cristãos católicos, como ele”.
Não creio que aí esteja, contudo, toda a verdade, anagogicamente falando. O Y é
a letra inicial, em hebraico, do tetragrama sagrado (YHWH) e do nome de Cristo
(Yoshua). Creio que, nesse pormenor paratextual, mostra ele de forma velada (como
é seu hábito) uma filiação judaico-cristã, em cujo cerne se encontra a memória,
entendida enquanto húmus, semente e escrita de uma religiosidade que procura,
sobretudo, o futuro e, nessa síntese, demanda o Amor nas suas mais altas
expressões naturais, sociais e sobrenaturais.