DETERGENTE

por José do Carmo Francisco
http://transportesentimental.blogs.sapo.pt/detergente-de-ruy-ventura-342101 (29/1/2017)


Este é um livro especial, insólito e diferente na bibliografia de Ruy Ventura (n.1973) cujo primeiro livro («Arquitectura do Silêncio») recebeu em 1999 o Prémio Revelação de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores. A Poesia é (todos o sabemos) uma arte de fundo pessoal. O poema escreve o poeta; o poeta escreve-se no poema. Mas o poeta não é um organismo sentimental sem raízes, sem passado, sem biografia. Tal como neste livro, no qual surge um diálogo entre dois homens (João e Raul) sob um fundo musical de Olivier Messiaen. Trata-se de um tempo que chega ao fim, um mundo desolado, uma cidade deserta. Raul começa o diálogo na página 7: «Nascem no mesmo dia a força e a pobreza. A casa está cheia de entulho e as ruas não permitem a circulação. Vivemos entre escombros, já muitos o disseram. Por isso páro. Vivo? Sobrevivo? Existimos.» João, por sua vez, faz um inventário pessimista: «Há quem escreva versos mas dispense a escassez, o trabalho, a descoberta. Há quem vá filosofando mas rejeite o amor e a sabedoria. Há quem pinte, molde, filme, dance e represente mas feche os olhos às imagens que nos desafiam, como lava no dia de juízo.» É neste «caldo cultural» que Raul procura um futuro: «Temos de sorrir (dizem). Temos de suportar, ainda que a dissolução nos transforme em vermes, em roedores que voam ou rastejam.» João, por sua vez, proclama a força da escrita: Primeiro na página 9: «Entre a superfície da escrita e a ocultação da morte – não há negrume que nos apague.» Depois na página 10: «Quem escreve encontra o organismo: a instabilidade da matéria – cor e pó, memória e gangrena – um grupo de células que o fogo não destrói, que a terra não apodrece» Por fim na página 23: «Esquecendo, talvez consiga escrever. Excesso ou amnésia, o texto retrocede.» É nesta oscilação entre sangue pisado e estilo que surge o detergente que dá o título ao livro: «A memória descritiva assegura-nos de que a estátua (ou medalhão) é de bronze, de pedra ou cera d´abelhas. Mas no fundo temos a certeza de que o miolo da efígie não passa de sabão ou detergente.»

Sob a forma de peça de teatro, no fundo é de poesia e sua temperatura que trata este livro, Vejam-se as citações: «Odeio este tempo detergente» (Ruy Belo), «O obstáculo ou depura ou torna-nos perversos» (Cesário Verde) E a dedicatória: Para Levi Condinho, Nuno Matos Duarte e Rui Almeida. Em memória de Filipa Barata e Carlos Garcia de Castro. 

(Editora: Licorne, Capa e Foto no interior: Nuno Matos Duarte)-

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