(E O QUE ISSO NOS ENSINA SOBRE OS TEMPOS QUE CORREM)
Naquela terra, mal chegavam o outono e o inverno e
vinham as enxurradas, o problema repetia-se. Não havia meio de atravessar o
rio, o que causava graves transtornos a toda a gente. Ainda que, habitualmente,
o seu caudal fosse pouco volumoso, o tempo de chuva engrossava-o. Da serra
corriam ribeiros e regatos para o leito maior - e era o cabo dos trabalhos. Era
impossível atravessar, pois as alpondras ficavam submersas, e ninguém se
arriscava a morrer afogado.
Havia muito tempo que os habitantes do lugar desejavam
construir uma ponte. A população era todavia pobre e sem rendimentos para tal.
Estavam um dia os homens bons discutindo o assunto, quando apareceu junto deles
um sujeito bem apessoado, com palavras que faziam arregalar os olhos. Fez suas
as dores daquela gente, protestou com eles contra os poderes superiores que não
gastavam um tusto para lhes resolver o grave problema e, no fim de muita
conversa, por vezes em voz vociferada, abriu os braços e apresentou uma
solução:
"Meus amigos, eu e os meus homens construimos a
ponte. E nem vos ficará nada caro, que temos de ser agradáveis para com os
amigos..."
Quem o ouvia rejubilava... Houve todavia um velho, já
batido nos ardis da vida, que lhe perguntou o que teriam de pagar. Bem sabia
que nada era de graça.
"Nem um tusto, meus amigos. Nem um tusto... No
fim de tudo, logo que a travessia esteja pronta, terão apenas de me entregar as
vossas almas. Coisa pouca, bem vêem..."
Pouca gente ouviu as suas palavras finais e o preço a
pagar. Queriam apenas a ponte. E mais nada! O resto que se lixasse... O velho
astuto e mais meia-dúzia de homens resolveram no entanto o problema, pois
haviam percebido a cantiga do bandido.
"Terá de construir tudo numa noite e ao nascer do
sol a ponte terá de estar pronta, sem faltar pedra alguma. Só assim lhe
entregaremos as nossas alminhas. Combinado?"
O sujeito, dono de raros e mefistofélicos recursos,
aceitou prontamente. Trabalhou com uma rapidez inaudita e, ao romper da aurora,
estava a ponte acabada, faltando apenas uma pedra nas guardas. Procurou por ela
que nem doido. Mas nada. Viu então o riso do velho e dos seus companheiros, à
porta de uma tasca. Tinham-lhe dado sumiço e o elegante tipo chuchou no dedo,
regressando às infernais cavernas com não pouca raiva.
Esta narrativa, tradicional, da minha terra de Marvão,
não é apenas uma história para entreter meninos. É, digamos, uma narrativa de
proveito e exemplo que nos permite compreender o que se vai passando nos
Estados Unidos da América, no Brasil, na Rússia, na Hungria, na Itália, nas
Filipinas e em tantos outros países. Os bons homens da raia alentejana
conseguiram sol na eira e chuva no nabal. Livraram-se do diabo e ficaram com a
ponte construída, até hoje. A cada dia que passa pergunto-me todavia se os
americanos, os brasileiros, os russos, os húngaros, os italianos, os filipinos
e tantas outras pessoas conseguirão fazer o mesmo. Queira Deus que sim! Se tal
não acontecer, a nossa desgraça colectiva não será pequena...
(RV)
(RV)
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